A voz do além-túmulo

Ao deixar a sala de aula, naquela noite, Júnia estava particularmente feliz – fora procurada por alguns alunos com dificuldades na resolução de uma equação de física, ajudara-os, ganhara elogios e seu ego fora às alturas: aos 36 anos estava convicta, agora, de que era benquista e aceita por todos os adolescentes do cursinho preparatório para o vestibular. Seguia pela calçada quando Bill Taylor, o professor de inglês, alcançou-a.
– Estava muito desatenta hoje, garota, disse ele, está tendo algum problema?
Júnia fitou-o, surpresa, enquanto caminhavam lado a lado. Não, não estivera desatenta e tampouco enfrentava problemas – Bill Taylor estava usando de uma tática absurda para abordá-la. O professor, meia-idade, magro, pequenino, rosto sardento, envolveu-a com um sorriso calhorda. Júnia sentiu um tremor percorrer-lhe a espinha. Mas que droga! Lastimou a mão a pousar-lhe no ombro, uma mão boba que em ultrajante simulação de inocência pôs-se a fazer-lhe inequívocas massagens. Sentiu-se amargurada – o sujeito estava muito, mas muito mal intencionado. Será que teria, pela terceira vez, que se mudar de colégio? Subitamente o vento gelado do outono a soprar nas árvores foi penetrar-lhe nos ossos. O professor começou a tecer comentários a respeito das pessoas que, depois de certa idade, resolve tomar as rédeas dos sonhos.
– O que me irrita – dizia, levianamente – é ver os deserdados da sorte não aproveitando o tempo para crescer. Com tantas facilidades para se ser alguém nesta vida e o que vemos? Mulheres ignorantes esparramadas em sofás assistindo às telenovelas, homens esfarrapados enchendo a cara de cachaça quando poderia estar numa sala de aula. É isso, o povo brasileiro não passa de uma súcia de vagabundos.
Júnia riu consigo mesma, sufocando a indignação. Que pateta! Há pessoas que só abrem a boca para dizer bobagens. Ao que Júnia sabia, o preclaro professor vinha de família abastada – o pai era pastor de uma dessas ricas igrejas evangélicas norte-americanas de pregação escatológica e fins aviltantemente mercantilístico – e pelo visto sua vida transcorrera na segurança dos desapertos financeiros. O que sabia ele das chagas dos desgraçados, das turbulências rotineiras daqueles que nasceram no lodaçal da miséria, nos charcos da ignomínia, nos pântanos da violência? O que sabia ele das lutas titânicas pela sobrevivência, dos corpos moídos pedindo a alegria efêmera do álcool, a fantasia reconfortante da telinha, para discorrer assim tão calmo, pleno, sorridente? – o que sabia ele de sua tão reles, louca história. Porque, oh!, Júnia possuía a mais simples, insossa e, Deus!, a mais corriqueira e, no entanto, surpreendente história de vida: atacada sexualmente pelo padrasto, contara o fato à mãe e, assim, fora expulsa de casa – tinha então 14 anos. Morou em zonas de meretrício, dividiu barracos com operários, sustentou jogadores inveterados, suportou convívio com viciados – de todos fora vítima de espancamentos. Aos 30 anos conheceu um antigo desembargador com pendores poéticos que nada mais queria senão apanhar de chinelos e ouvir cantigas de ninar. Deu-lhe apartamento e meteu na cabeça que iria instruí-la. Com a paciência implacável dos velhos empedernidos foi substituindo seus gibis por obras literárias – ao cabo de três anos já conseguia ler autores em inglês e italiano. Quando morreu, além da moradia e algum dinheiro, deixou-lhe uma lista de amigos, partidários, como ele próprio, de relacionamentos exóticos. A partir daí Júnia passou a ter conforto financeiro, tempo disponível e com isso veio o desejo de obter um diploma universitário que, talvez, aniquilasse seu aflitivo sentimento de inferioridade – coisa que tanto mal fazia ao espírito. Primeiro fez, por correspondência, o curso de primeiro grau, prestou exame em estabelecimento público autorizado e foi aprovada. Por esse mesmo método concluiu o ensino médio. Mas, a partir do momento em que não mais dependia exclusivamente de si mesma, era aquilo: o assédio de alguns professores. Olhou acintosamente a mão de Bill Taylor acariciando-lhe o ombro. Ele recolheu-a ao bolso do casaco.
– Posso lhe dar uma carona? – perguntou Taylor. Júnia por um momento estrangulou a raiva, até sentir a garganta inundada de bílis, quando o professor arrastou-a pelo braço e apresentou-lhe uma linda, loura e perfumada mulher.
– Sílvia, esta é Júnia.
– Oi – disse Silvia, sorridente.
Júnia voltou-se para o professor.
– Preciso ir. Obrigada por me oferecer carona.
Afastando-se, ainda ouviu a mulher perguntar:
– O que aconteceu?
E o professor:
– Está se fazendo de difícil, a putinha. Vamos dar tempo ao tempo.
Júnia apertou a bolsa a tiracolo e a pasta de material estudantil junto aos seios enquanto caminhava. O vento noturno intensificava-se. Olhou o relógio no pulso – quase onze da noite. Não morava muito longe do colégio, cerca de sete quarteirões. Àquela hora a rua estava praticamente deserta: um industrial passou com o cão Airedale Terrier para o passeio diário na única hora que tinha disponível e acenou-lhe; um casal namorando sentado no meio-fio; respondeu ao boa-noite de dois jovens encostados no muro de uma residência de vasto jardim e que fumavam maconha escondendo o baseado na concha das mãos -–então sentiu um carro atrás de si, deslizando lenta e silenciosamente. Júnia parou sob a luz do poste. Esperou. O carro – uma Mercedes azul – estacionou junto ao acostamento. A porta de passageiro abriu-se.
– Hoje é quarta-feira – disse Júnia.
– Entre, por favor... – A voz vindo do interior do veículo era implorante. Júnia subiu no carro, jogou o material escolar no banco traseiro.
– Tem um cigarro, Padre Xisto?
O homem estendeu-lhe o cigarro e acendeu-o com um isqueiro dourado. Um homem em torno dos 60 anos, gordo, de bigodes e acentuada calvície que, dizia-se, em época distante havia exercido o sacerdócio. Júnia fumou em silêncio, uma expressão contrariada no rosto. O homem remexeu-se várias vezes no banco, como se alguma coisa o incomodasse fisicamente. Afrouxou o nó da gravata, cinza, pôs-se a coçar o pescoço, agoniado. Gemeu:
– Não posso esperar até sexta-feira, gemeu ele.

Com um copo de uísque na mão, Júnia olhava da grande vidraça, ocupando quase a totalidade da parede e cingida por uma cortina azul de brocados, o esplendoroso jardim cortado por uma alameda estreita e sinuosa, muito iluminada por luzes que pareciam brotar por entre as fileiras de árvores sombrias e farfalhantes ao vento. Virou a dose da bebida num só trago e foi servir-se de outra dose no barzinho da sala. Uísque renovado, Júnia passou os olhos pelo recinto, encantada. Nunca se cansaria de fascinar-se com tudo à sua volta. Não tinha memória de quantas e quantas vezes estivera ali e o deslumbramento era sempre o mesmo. Aparentemente, Padre Xisto não tinha empregados residentes – e, no entanto, tudo na casa era de uma limpeza impressionante, o verniz dos móveis estava sempre refletindo; os vidros não tinham sequer a marca de uma impressão digital. Os cinzeiros brilhavam; o imenso tapete distendendo no centro da sala dava impressão de haver acabado de sair de algum riquíssimo bazar oriental. Olhou o relógio – haviam chegado a casa fazia mais de meia hora. Colocou o copo sobre o balcão do barzinho e caminhou para o quarto, acendeu a lâmpada, passou-o em revista: o guarda-roupa de muitas portas, todo entalhado de figuras exóticas; uma cômoda monstruosa com uma aparência de cansada secularidade; a grande cama. Uma cama tão grande que – sempre pensava nisso com um prazer genuinamente infantil – por certo fora roubada do gigante da historinha de Joãozinho e o Pé de Feijão. O colchão estava coberto com um lençol de seda da cor castanha tendo as barras bordadas de estranhos desenhos feitos com fios prateados. E ali, no centro da cama, muito bem distendido, estava o vestidinho de chita florida e, sobre este, a calcinha branca de algodão.
Pegou o vestido, a calcinha, e dirigiu-se ao banheiro anexo ao quarto – um banheiro maior que a sala de seu apartamento. Um luxo de instalações, destacando-se a banheira gigantesca e o espelho encobrindo uma das paredes. Tirou a roupa, mirou-se no espelho – era uma mulher miúda, na verdade seus ossos tinham a configuração dos de uma adolescente, finos, ainda em formação. Júnia era pequenininha em tudo, mesmo os seios pareciam pequenas frutas, dessas pêras desprezadas nas feiras. Dobrou suas roupas com cuidado meticuloso, colocou-as sobre um móvel que talvez acomodasse toalhas. Na pia, tirou com água quente da torneira todo vestígio de pintura, pouquíssima, por sinal: um tico de base, um nada de pó-de-arroz, a sombra de um batom rosado em seus lábios que eram de um natural vermelho tão vivo que às vezes a deixava constrangida quando queria se passar por virtuosa, vaidosa quando tinha a intenção de seduzir. Uns lábios cheios, atrevidos, rasgados, de uma maciez polpuda que pareciam implorar por beijos. Vestiu-se com a roupinha de chita e voltou para o quarto. Padre Xisto já a esperava, sentado na borda da cama, trajando uma antiga batina clerical negra, de aparência muito surrada.

Júnia ajoelhou-se em frente ao Padre Xisto com as mãos postas e cabeça inclinada, em sinal de súplica e arrependimento, e preparou-se para a confissão, aquela ridícula história a respeito de uma garotinha duma pequena cidade do interior que vinha todos os dias, antes do nascer do sol, destruir os ninhos das corujas no campanário da igreja, quando estes surgiam, e também recolher os ratos mortos nas ratoeiras espalhadas pelo vigário ao anoitecer, descobrir suas ninhadas em buracos improváveis, procurar por esconderijos onde morriam ou agonizavam tumefactos depois de ingerir pó de gesso, cal viva e água benta das pias de genuflexão. Mas ao invés de fazer seu trabalho com desprendimento e respeito, a menina usava de artifícios demoníacos para infernizar o padreco em seus mais secretos desejos carnais. Júnia teria que martelar todas as fala – primorosamente decoradas – e também narrar de como ele, o padreco, não tivera alternativa senão esperá-la certa madrugada numa esquina do vilarejo adormecido, estuprá-la, assassiná-la por estrangulamento e, carregando o corpo, andar alguns quilômetros e lançá-lo no riacho que cortava a pequena cidade. Com voz pejada de vergonha e contrição – como mandava o papel – Júnia encenou sua personagem no primeiro ato e esperou pelo seguinte: o interrogatório.
– Por que fazia aquilo comigo, Bebel? Por que, com suas coxas morenas, com seus lábios sensuais, vinha perturbar-me às quatro da manhã? Por que, de gatinhas, andava pelo solo à procura dos ratos mortos, olhando-me lascivamente, provocando-me? Por quê?! – bradou o Padre Xisto em ira divina.
Júnia levantou-lhe os grandes olhos negros, perplexos pela primeira vez. Teria que falar a respeito de sua febril devassidão, de sua inclinação amaldiçoada pelo pecado, de seu fascínio por aquele homem de Deus, santo, belo e solitário, tão carente e amargurado – e enquanto estivesse narrando peripécias dignas de prostituta caleja no ofício, veria Padre Xisto erguer a batina negra – estaria nu sob ela – separar as pernas grossas, varizadas, enlaçar com as mãos balofas o diminuto pênis, uma coisica de criança, e pôr-se a masturbar, os olhos esgazeados, uma baba esbranquiçada escorrendo pelos cantos da boca, os dentes batendo em cio canino. Mas, seguramente, aquela noite não estava propícia aos caçadores. As falas de sua personagem, tantas vezes repetidas, subitamente fugiram-lhe do cérebro – e ali, ao seu lado, Júnia sentiu a presença de alguém. Uma presença tênue, mas real, tatuante, respiratória. Desviou os olhos do Padre Xisto e fitou à sua esquerda – ao seu lado, de pé, viu primeiro umas coxas finas, esqueléticas, depois o vestidinho de chita semelhante ao que o padreco a mandara usar, um busto de seios incipientes, um pescoço destruído, como o de uma boneca renegada, e o rosto infantil, puro, bonito e triste: dos olhos negros escorriam um fio de lágrimas translúcidas.
– Eu nunca tive desejos sexuais, senhor. Eu tinha doze anos e te venerava, Padre Xisto. – Júnia ouviu-se a dizer, repetindo uma voz que entrava em seu cérebro provindo daquele ser ao seu lado. Uma voz chuvosa, pueril, muito diferente da sua própria, rouca, carregada de nicotina e asperezas provocadas pela bebida.
De um salto Padre Xisto foi bater com o corpo na parede, as pernas trepidantes sobre a cama pareciam acionadas por ondas elétricas. O pênis insignificante de erétil transformou-se em bolinha de gude, uma excrescência do grande e enrugado saco escrotal.
– Por que me matou, Padre Xisto? – A voz agora era soluçante, infinitamente triste, desolada como ciprestes empoeirados, descolorida como a saudade de sonhos irrealizados. – Quero que me explique direitinho, Padre Xisto. Por que me matou?