Páginas de Sangue - Parte II

Após alguns minutos de uma lenta caminhada, olhei o relógio. Quatro da madrugada. Silêncio. E lá estava ela. Uma prostituta estagnada envolta pela escuridão. Sua beleza parecia pedir socorro em meio ao nada. Longos cabelos negros fundiam-se a penumbra. Linda. De longe, já me observava. Andei em sua direção. Seu rosto cada vez mais nítido. Não precisei falar nada. De cara, ela já perguntou:

-Quer uma trepada? Um pouco de diversão?

-O que você faz?

-Tudo que sua mulher nem sonha em fazer.

-Sua voz cheirava a sexo. Eu dei um sorriso. Ela então aproximou-se e beijou-me o pescoço.

-Vamos, gostoso. Você parece carente. São apenas cinqüenta pratas. – insistiu, antes de passar a língua em minha orelha.

-Não pode ser em minha casa. – eu disse.

-Tudo bem. Eu sei de um lugar a alguns metros daqui.

Logo ela começou a caminhar em minha frente. Seus saltos altos quebravam o silêncio. Um rebolado magistral. Excitei-me. Muito. Observei suas pernas grossas que sustentavam seu belo corpo. O sangue ficaria perfeito escorrendo por aquela pele cor de creme. Perfeito! Ela entrou em um beco escuro e silencioso.

-Cegamos? – perguntei.

-Sim, chegamos.

Que voz meiga. Nem parecia de uma puta. Não havia vulgaridade em sua tonalidade. ----Pode soltar a maleta. – ela disse, rindo. – O que tem aí? Ouro?

Não respondi. Nem eu sabia ao certo. Apenas repousei a maleta no chão. E então ela colou seu corpo no meu e tirou minha jaqueta. Segurei-a pela cintura e a encostei na parede. Colocou os seios para fora. Eu os beijei. Quentes. Macios. Tirei sua calcinha e a fiz deslizar por suas coxas para depois meter a mão em sua vagina. De sua boca saiu um suspiro quente de prazer que espalhou-se por meus lábios. Continuei por mais alguns segundos acariciando a entrada de seu ser. Um suspiro atrás do outro.

-Mete! – ela disse. – Mete!

-Espere um pouco. – eu falei, afastando-me.

-Aonde você vai?

Ajoelhei-me diante da maleta e a abri. O punhal. Agarrei o punhal. Levantei e virei-me para ela. Vi o medo tomar conta de seu rosto:

-O que você...

Tampei rapidamente sua boca. Seu corpo agora debatia-se diante de mim. Tentou gritar. Em vão. Enfiei o punhal o mais fundo possível em sua vagina. Pude sentir o sangue quente misturado com porra escorrer por meus dedos. Olhei-a diretamente nos olhos. Uma lágrima deslizou sutilmente por seu rosto para então explodir em minha mão. Não havia mais suspiros de prazer. Rasguei também o peito, separando simetricamente um seio do outro e abrindo seu corpo para a noite. Dava para ver a vida afastando-se lentamente de seus olhos azuis, os quais se fechavam romanticamente. E eles diziam adeus. Adeus para a penumbra. Então ela morreu em meus braços. Deitei seu corpo no chão. Sangue. Sangue por todo lado. Meti minhas mãos em suas entranhas e arranquei-lhe o coração. Era dele que eu precisava. Carne quente. Repousei-o lentamente ao seu lado. Nossa! Mesmo morta ela continuava linda. Atraídos pelo cheiro de morte, os ratos começaram a sair do boeiro para lamber seu sangue e mordiscar o que sobrara de sua carne. Mas no coração eles nem tocaram. Parecia que já sabiam. Sabiam que possuía dono. Andando de costas, afastei-me dali, sem desviar os olhos do rosto dela, que agora reduzia-se a um pedaço de carne ensangüentado abandonado em um beco escuro.

No caminho de volta a minha casa, após lavar as mãos em uma poça, só conseguia pensar em uma coisa: sexo. A vontade de mergulhar em delírios de prazer me corroia a espinha. Precisava jogar-me no calabouço das emoções carnais. E foi o que fiz quando cheguei. Julia. Acordei-a no meio da madrugada para clamar por um pouco de prazer. De início, ela estranhou. Enquanto esfregava os olhos, tentava entender o que estava realmente acontecendo. Mas ela cedeu. A sensação de penetrá-la era idêntica a de enfiar o punhal na prostituta. E enquanto eu observava seu rosto contorcendo-se de prazer, lembrei-me do olhar desesperado que pedia socorro enquanto seu corpo era rasgado. O calor que vinha de sua vagina era igual ao do sangue espirrado em meu rosto. Depois de vários minutos o orgasmo veio finalizar aquele emaranhado de pensamentos sombrios que me vinham à mente. Dormimos em meio ao suor, repousados em lençóis com cheiro de sexo, enquanto naquele mesmo momento, um pedaço de carne parecia boiar em um mar de lamúrias.

“Prostituta retalhada em beco escuro.” Era o que diziam as manchetes do dia seguinte. Ao lado da imagem de um rosto sem vida, a foto de uma bela jovem esboçando um já extinto sorriso encantador. Viviane Argento, uma garota de 22 anos com ascendência italiana. Os jornais destacavam que além de um crime bárbaro, o estranho era que o coração estava faltando. A maleta e o punhal haviam sido encontrados ao lado do corpo, mas a polícia não encontrou digital alguma. O estranho é que em momento algum usei luvas. Minha pele pôde sentir cada respingo de sangue. Mas parecia que alguém havia apagado as digitais. As portas estavam abertas para que eu agisse novamente, pois depois de espalhada a sujeira, alguém viria para lamber as bordas do prato.

Morávamos no sétimo andar de um prédio em cima de uma cafeteria, onde tomávamos o desjejum na maioria das manhãs. E enquanto eu lia o jornal e degustava uma xícara de café quente, Julia e eu conversávamos sobre o ocorrido:

-Você leu sobre o assassinato da prostituta? – ela perguntou.

-Sim, por quê?

-Sem coração. Bizarro, não?

Como trabalhava como fotógrafa para uma revista de pornografia mórbida, Julia tinha um certo apego por bizarrices, como fotografar casais ensangüentados fazendo sexo em meio a cadáveres forjados e coisas do tipo. Mas eu não ligava, pois era isso que me chamava atenção nela. Afinal, somos todos insanos.

-É melhor eu começar a tomar cuidado. – ela continuou – E foi apenas há alguns quarteirões daqui, você sabia?

-Como você sabe? – perguntei.

-Eu já li.

-Não se preocupe. Você está segura comigo.

-Será? – ela perguntou, com um sorriso malicioso - Depois da madrugada de ontem é melhor eu me cuidar. Afinal, acho que estou morando com algum maníaco sexual.

-Por quê? Você não gostou?- perguntei também com um certo ar de malícia

-Muito pelo contrário. Já fazia alguns dias, não é? Nossa! Você estava furioso. Acho que gozei umas quatro vezes. Espero que se repita.

E então nos olhamos calados por alguns segundos. Quando a garçonete interrompeu:

-Mais uma xícara de café?

Apenas eu aceitei.

-Meu Deus! – exclamou Julia, olhando o relógio. – Que horas são? Preciso trabalhar. Você vai subir?

-Sim, acho que sim. Vou escrever um pouco.

-Ah, vejo que a noite de ontem lhe trouxe inspiração. – ela disse, novamente com um sorriso malicioso. – Preciso ir para ajeitar a exposição.

Nos beijamos e ela partiu. Julia estava certa. A noite de ontem me trouxe inspiração. Muita. E enquanto terminava minha xícara de café, observava o corpo de Viviane Argento. Sem coração.

Minutos após, lá estava eu, sentado diante daquilo que já não me era mais uma tortura. O fim de todo um reinado de inaptidão agora pairava diante de mim. Um silêncio absurdamente mórbido parecia esmagar meus tímpanos. Mas ele foi quebrado pelo primeiro bater de um singelo indicador na primeira letra. Pude girar lentamente a maçaneta da porta que até então permanecia trancada dentro de minha mente e assim fui apresentado a um novo eu. Nada até aquele momento havia sido tão claro como aquele pedaço de papel, que com toda sua imensidão infinitamente branca cuspia palavras como uma apunhalada. Apunhalada! Sinônimo de um mundo onde as idéias fluem, onde o bater de meus dedos nas teclas marcava o som de uma nova sinfonia. Compasso por compasso. E diante de todo aquele emaranhado de palavras, nascia o núcleo de uma nova criação, que processava minhas idéias involuntariamente. Como que se antes do começo eu já soubesse o desfecho, pois nas paredes de meu cérebro residia o início, o meio e o fim. Logo ele estaria completo. E em suas páginas estaria o porquê de tudo. Somente assim faria sentido.

-Querido? Acorde!

Sem que nem percebesse, acabei adormecendo. Julia me despertava delicadamente. Olhei a janela e pude notar que já era início de noite. O sol havia ido embora e levado consigo todo o vestígio de uma tarde de idéias.

-Você adormeceu escrevendo?

-Provavelmente. – respondi, esfregando os olhos com as mãos e organizando um bolo de papéis já escritos que espalhavam-se pela mesa.

-Aposto que nem almoçou.

-Acho que não. Que horas são?

-Quase sete.

-Nossa! Escrevi o dia inteiro.

-Pelo jeito sim. – ela, acrescentou, pegando uma das folhas para dar uma olhada e ver em que meu dia inteiro havia sido dedicado. – É isso que está escrevendo? Não sabia que estas eram suas novas tendências.

-Por quê? Não gostou?

-Não, está bom. É diferente saber que está tomando novos rumos. Já escreveu isso tudo? – ela perguntou, olhando a quantidade de papéis em cima da mesa e devolvendo-me o que estava lendo. E então afastou tudo que estava por perto e sentou sobre meu colo, ansiando por um pouco de sexo. Julia tinha um que de ninfomaníaca. Quando lhe batia a vontade, ela simplesmente precisava satisfazer-se imediatamente. Tirou a blusa para que eu beijasse seus seios. Durante o sexo, pude observar os pingos de suor que escorriam de seus cabelos e estouravam nas teclas da máquina de escrever. E ela parecia ofegar assim como nós, como que se cada letra se contorcesse ao som dos gemidos de prazer de Julia.

01h16min. Deitado ao lado de Julia eu a observava dormir. Mais o sono não se pronunciava para mim. No teto, o ventilador girava lentamente, achando talvez que sua persistência sem sentido um dia iria tirá-lo dali. Mas sabia que era em vão. Estava fadado à mesmice. À rotina. Todos nós estamos. E tudo é sempre igual. Resolvi levantar-me um pouco para tentar escrever enquanto o sono não dava suas caras. Sentei-me diante da máquina e postei minhas mãos sobre as teclas. Mas uma porta imaginaria pareceu bater-se diante de mim e novamente fui arremessado a um emaranhado de inaptidão. Por mais que tentasse, as palavras não me vinham à mente. Tudo era branco. Um papel branco sem razão. De repente tudo fez sentido. Era preciso que houvesse um novo sacrifício. Alguém na noite aguardava para fazer parte do processo de criação. E mesmo que involuntariamente, cederia um pouco de seu sangue para que mais uma página fosse preenchida. Mais uma das páginas de sangue.

Continua...

Gabriel Rosa
Enviado por Gabriel Rosa em 06/05/2011
Código do texto: T2953534
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