Páginas de Sangue - Parte I
O buraco no peito trouxe consigo o cheiro de ferrugem. Carne recém morta. Fresca. O sangue ainda quente borbulhava hemoglobina viva. Um rasgo entre os seios confessava a falta de um coração agora arrancado. E eu o segurei sutilmente, pois ainda era possível sentir cada batida. Enquanto minhas lágrimas pingavam e misturavam-se timidamente ao vermelho abundante, aquele pedaço de carne murmurava seus últimos momentos em minhas mãos. Por um instante hesitei. Mas era preciso realizar a última entrega. Era preciso...
Antes...
Já estava sentado há algumas horas, esperando algum lapso cretino de inspiração qualquer que me facilitasse martelar algumas palavras em minha máquina de escrever. E para piorar, o barulho da chuva vinha violar o silêncio inspirador de uma noite escura, trazendo consigo alguns pingos que estouravam melancolicamente ao tocar o vidro embaçado da janela. Maldita chuva! Tirava minha concentração. Há alguns dias atrás, minha mente havia se bloqueado de uma maneira assustadoramente sádica, como se algum muro me separasse de um mar de idéias, onde eu suplicava para mergulhar. Tal complexidade nem parecia pertencer a uma mente que já havia escrito vários contos e poemas anteriormente. Por vezes nem me reconhecia. Tinha vontade de pegar uma furadeira e encher minha cabeça de furos. As idéias precisavam fluir.
-Você não vem deitar? – ela gritou do quarto. Ela. Já havia me esquecido. Minha noiva Julia me esperava na cama para mergulhar em uma noite de prazer. Mas eu não conseguia. Não estava pleno o suficiente. A falta de inspiração já me era mais incômoda que a falta de sexo. Talvez nunca ninguém tenha se sentido tão incomodado com falta de idéias como eu, mas o mundo terreno e cru não me era satisfatório. A escrita me servia como porta para um outro lado além da percepção humana, mas parecia que eu havia perdido a chave desta porta.
-Estou sem calcinhas! – ela continuou, mas fiquei calado. Não que eu não a amasse, é claro. Sim, eu a amava. Mas precisava fugir de mim mesmo. Permaneci calado por mais uns vinte minutos até ela adormecer. Desistiu. Isto já era uma coisa que também me incomodava, pois a porra da falta de inspiração já atrapalhava até meu relacionamento com minha noiva. E eu não queria magoá-la. Julia já fazia piadinhas infames afirmando que trepava com a máquina de escrever. Merda! Precisava sair um pouco. A chuva já havia passado e então resolvi dar uma caminhada pelas sarjetas para talvez buscar inspiração em qualquer rato nojento de esgoto que cruzasse meu caminho. Certifiquei-me de que Julia já estava dormindo e sussurrei em seu ouvido que ia sair. Ela murmurou algo que não entendi. Beijei-lhe a boca e parti em direção a uma noite vazia, regida pela grande orquestra sinfônica do silêncio.
Caminhava em meio à brisa gélida da noite, ouvindo apenas o som do bater de meus sapatos que ecoavam pela escuridão. O bairro onde morava era tranqüilo, não havia muitos vagabundos. Os seres noturnos que habitavam a madrugada eram apenas ratos e prostitutas. Sentia-me seguro caminhando em meio a profissionais do sexo e seres do esgoto. Eles não me fariam mal algum. Mas se eu fosse um ser com vagina não arriscaria andar sozinho pela madrugada. Nunca se sabe. A vida é cheia de surpresas. A lua pairava solitária em meio à imensidão negra do céu. E eu me sentia como ela, solitário em meio à escuridão, a perturbação, ao vazio. Continuei caminhando, como se houvesse algum destino para ir. Mas não havia. Um mendigo deitado na calçada me ergueu a mão e pediu um trocado. Parei durante alguns segundos, mas não falei nada. Ele repetiu:
-Tem um trocado?
-Não. Não tenho.
Percebi que ele cutucava com o dedo as tripas de um rato estraçalhado na sarjeta. Continuei minha caminhada e o deixei para trás. Resolvi parar um pouco em uma praça escura e vazia. Sentei em um banco e acendi um cigarro, contemplando a fumaça esbranquiçada que sumia no ar. E ali permaneci durante vários minutos. Olhava para os lados e não via ninguém. Apenas eu, a fumaça e o silêncio. Não havia vento. A noite parecia não respirar naquela madrugada. Mas em meio à escuridão percebi que alguém se aproximava de longe. Alguém cuspido pela penumbra. Uma figura que parecia caminhar a esmo assim como eu. Será que ele também buscava inspiração na escuridão noturna? Percebi que carregava uma maleta preta, vestia-se alinhadamente com um sobretudo também preto. Sempre olhando para frente, como se a órbita de seus olhos fitassem o nada. Seus passos eram lentos, seu semblante soturno e seu rosto careciam de expressão. Parecia vir em minha direção. Realmente. Era de mim que se aproximava. E então durante segundos senti que ali estava minha inspiração. Uma figura que parecia materializar-se através da neblina trazia consigo talvez tudo aquilo que eu procurava. Esperava o momento em que ele realmente estivesse em minha frente para que eu o observasse melhor. A escuridão mandou-me alguém. A chave. Naquele momento encontrei a chave.
-Boa Noite, senhor! Posso me sentar? - ele perguntou, com um peculiar cavalheirismo.
-Sim, claro.
E ele foi direto:
-Sei o que lhe aflige, meu caro.
-Sabe?
-Sim. Noite após noite você perde o sono e fica atordoado. Sua mente explode de fúria.
-Minha mente?
-Mentes como a sua muitas vezes sofrem com a falta daquilo que as alimenta; a capacidade de inspirar-se para então viajar pelos labirintos de seu próprio delírio. Em vários momentos você se vê perdido no mundo visto a olho nu. Mas sente que precisa sair. Precisa olhar no microscópio do desconhecido. E eu posso ajudá-lo.
-É mesmo? E quem é você? O Diabo? – perguntei ironicamente.
-Não vamos nos prender a meros clichês criados pela sociedade, meu caro. - ele respondeu, olhando diretamente em meus olhos pela primeira vez - Digamos que sou apenas um amigo.
-Um amigo?
-Sim, um amigo. Não são as calçadas que lhe trarão salvação, pois o que você procura está mais perto do que imagina. Não é o silêncio que lhe manda palavras a mente. São apenas os gritos que ecoam na escuridão. E se quiser, você pode ouvi-los.
-Sim, mas o que posso fazer? – perguntei, curiosamente. Mas já sabia. De alguma maneira, já sabia.
-Entregue-se a devoração da carne e anule seus ideais básicos, pensando apenas em seu propósito. Apenas o que busca. Faça jus à lamentação do mundo.
-E o mundo me será grato?
-Nós seremos gratos a você. Não espere nada do mundo. Ele precisa de muito mais do que pode oferecer. Nós precisamos apenas do coração.
-O que devo fazer?
-Basta seguir seus próprios passos. E não esqueça: o coração feminino – ele respondeu, levantando-se e caminhando novamente em direção a penumbra. A maleta ele deixou sobre o banco. Sem que ele dissesse nada, já sabia que era para mim. E eu o observei ir embora. Passos lentos. Soturno. Macabro. Mágico. Sua sombra projetada pela luz da lua parecia desfazer-se para então se fundir a escuridão das calçadas. Depois disto, afastou-se e sumiu. Percebi que a primeira nota da sinfonia havia sido dada. As cortinas abriam-se para iniciar o primeiro ato. Bateu-se a claquete. Apanhei a maleta e comecei a ouvir o som dos meus passos novamente. A anulação dos ideais básicos em prol do real propósito.
Continua...