Olhos Brilhantes (2. Versão)
- Bom dia Pedrão! - Antônio chegou com entusiasmo.
“Bom dia?! Chega 13:00 e ainda diz bom dia?!”, pensou Pedro com ligeira revolta, enquanto labutava desde as oito da manhã.
- Bom dia! - Respondeu Pedro com um sorriso amarelo.
Antônio era filho do dono da empresa, mas diferentemente do pai, não trabalhava para o sucesso dos negócios da família, pelo contrário, atrapalhava e fazia um belo show teatral quando o pai aparecia para conferir as coisas. Para mostrar que desejava dar continuidade aos negócios, construiu até uma sala para si, mas a sala era mais frequentada por moscas do por ele mesmo. Por alguma razão, Antônio parecia gostar de Pedro, rapaz simples, vindo do interior que conseguiu construir sua vida na grande capital. No entanto, essa apreciação por Pedro tinha uma estranha motivação. Antônio tinha o estranho hábito de sentir prazer mostrando o qual rico e superior era para os “pobres mortais”, trabalhadores da empresa do pai. Tinha especial prazer em fazer isso com Pedro, talvez por ele ser do interior e se mostrar sempre muito humilde. Pedro por sua vez entendia esse comportamento, para ele, era uma doença, e para não contrariar, já que era o filho do dono, normalmente se mostrava muito impressionado com a ostentação de Antônio, embora não desse a menor importância para luxos e perdularismo. Talvez isso fizesse de Pedro o “alvo” preferido de Antônio.
Próximo de um feriado, Antônio de praxe anunciou em alto e bom som para quem quisesse ouvir que faria um “churrasquinho” na enorme fazenda do pai que ficava no interior. Adorava falar alto e deixar claro que enquanto estaria se divertindo usufruindo as riquezas que tinha, os assalariados estariam amargando um churrasco com cerveja barata e carne de segunda ou apenas um passeio no parque, já que é de graça. Desta vez porém, Antônio convidou Pedro.
- Vamos lá Pedro. Vai ser bom para você, ver coisas diferentes. Acho que você nunca viu uma fazenda como a de meu pai, nem lá onde você morava.
A primeira intenção de Pedro era de negar veemente, mas refletindo por um instante, pensou ser útil fazer esta “social”, afinal politicagem e influências ainda serão sempre pontos a favor quando você está em meio a um grupo de pessoas, especialmente dentro de uma empresa. Pensou no lado bom, poderia fazer contatos profissionais de qualidade, já que somente pessoas seletas estariam nesse churrasco.
- Tudo bem! Eu irei!
- É assim que se fala amigão! - Antônio respondeu dando tapinhas nas costas de Pedro.
“Amigão?!”, surpreendeu-se Pedro em seus pensamentos.
Dias depois, no feriado, Pedro recebeu uma mensagem no celular, "Chegamos aqui no sítio. Traga mais carne, o açougue da cidade não estava muito bom. Nos vemos à noite!"
Essa foi a mensagem que recebeu de Antônio. Todos já estavam no sítio, há muitos quilômetros de distância. Pedro teve que trabalhar no feriado, não conseguira finalizar a tempo suas pendências, portanto, partiria somente no final da tarde e o churrasco aconteceria a noite.
"Além de ficar para trás ainda tenho que levar a carne?!", indignou-se Pedro em seus pensamentos. Já chegando o fim da tarde, Pedro finalmente deixou o escritório, que estava deserto, exceto pela presença do vigia, que a cada 10 minutos vinha contar-lhe piadas sem nexo e sem graça, fazendo-o perder ainda mais tempo.
Como era feriado, Pedro conseguiria encontrar as carnes que desejava somente em um grande supermercado, não pareciam tão boas e frescas como a do açougue, mas era o que dispunha no momento. Enquanto esperava na fila, recebeu outra mensagem de Antônio.
"Traga muita carne, a daqui está horrível! Te pagamos depois!", ao ler que iriam pagar depois, Pedro ficou aliviado, saiu do caixa e foi atrás de mais carne. Comprou vários tipos de carne, em quantidade considerável, teve ainda que comprar uma caixa de isopor e um saco de gelo para manter a carne resfriada durante a viagem.
Dirigindo o mais rápido que podia, logo Pedro viu as luzes da grande cidade ficando para trás, e a sua frente e ainda movimentada, a rodovia. Impôs grande velocidade, queria chegar logo, precisava chegar logo, ou a carne no porta malas poderia estragar. Chegando em determinada localidade após algumas horas, adentrou uma pequena estrada de mão dupla, que apesar de remota, conservava ainda o asfalto sem buracos. O que impedia Pedro de ir mais rápido era a falta das faixas contornando a pista, pois na escuridão total em que se encontrava, somente seu farol iluminava o caminho e sem as faixas contornando a pista as curvas apareciam de forma repentina, pois o asfalto escuro confundia-se com o ambiente, ir mais depressa seria muito arriscado. Enquanto seguia seu ritmo lento, pois já não estava tão afoito quanto antes, viu algo adiante na pista, eram dois pontos brilhantes, pareciam dois olhos. Pedro pensou ser um gato, que tem olhos brilhantes no escuro. Reduzindo a velocidade do carro e aproximando a cabeça do pára-brisa para identificar o que estava bloqueando o caminho, observou tratar-se de um cão, de porte médio, pêlo curto e cor negra. Sem a luz do farol seria impossível distinguir a silhueta do animal camuflada na escuridão. Pedro, sendo respeitoso com os bichos, devido sua origem próxima a eles, foi gentil com o animal, que parecia estar doente de tão magro. Parou o carro a alguns metros do cão e tocou na buzinha duas vezes, mas o animal não se moveu.
Pedro suspirou frustrado e olhou para cima em gesto de desapontamento com a tranquilidade do cão que não se movia diante do carro. Insistiu um pouco mais na buzina, mas o animal continuou irredutível. Pedro então foi mais agressivo e avançou com o carro para cima do raquítico cão, que desta vez moveu-se, saindo para o lado com dificuldade. Pedro sentiu pena do bicho, provalmente estava doente e com fome e mal podia movimentar-se. O cão acabaria morrendo ali na estrada se encontrasse com alguém menos respeitoso com os animais. Apesar da pena que sentiu, Pedro deu-se por satisfeito ao ver que o cão sentou-se na beira da estrada, ficando fora de perigo. Pedro não poderia ajudá-lo na situação em que se encontrava, apressado e com um carregamento de carnes no porta-malas.
Não dirigiu por mais que alguns minutos, quando novamente a frente, Pedro avistou os olhos brilhantes. Novamente era o cão raquítico. "Como passou por mim tão rápido?!", Pedro estava espantado. "Deve ter algum atalho nesse mato afora.", tentou racionalizar rapidamente uma explicação. Buzinou novamente e o cão não se moveu, pelo contrário, deitou no chão, parecia muito debilitado. Tentou ser mais agressivo, acelerando e buzinando, mas novamente sem resultado. Pedro desceu do carro e caminhou até o cão, aproximando-se, examinou-o mais de perto. De fato, ele não estava muito bem, além de magro, tinha uma expressão de tristeza, devia estar com muita fome. Pedro acariciou-lhe o cocuruto, que correspondeu com uma leve lambida em sua mão. Compadecido com situação, Pedro foi até o porta malas e pegou um dos pedaços de carne que lá estava. A carne estava dura e gelada, Pedro abriu o capô do carro e depositou a carne numa área quente do motor, em pouco tempo a carne estava macia e Pedro lançou-a ao animal, que avidamente abocanhou o pedaço ainda no ar.
- Você está realmente com fome! - Pedro conversava com os animais, sem o menor acanhamento.
O cão respondeu com um latido. Animado com o novo amigo, Pedro pegou mais alguns pedaços de carne, esquentou-os no motor e lançou-os novamente, para que o cão com precisão os abocanhasse no ar. Após alimentá-lo, Pedro examinou a coleira, pois notou uma placa metálica presa a ela, onde estava escrito "Juninho".
- Juninho? Você não tem cara de Juninho! Vou chamá-lo de... Negão!
O animal respondeu com um latido, parecia concordar com o nome.
- Será que Juninho é seu dono? Se for, ele deve ter te abandonado, sem comida. Acho que vou levar você para o sítio, tenho certeza que não vão se importar em ter mais um cachorro por lá!
Pedro conduziu Negão até o carro, colocou-o sentado no banco do passageiro ao seu lado, e este por sua vez comportou-se muito bem. Como todo o cão, Negão colocou a cabeça para fora, curtindo a vento que batia em seu focinho.
Pedro avistou ao longe as luzes do sítio, e já pode ver a movimentação das pessoas vindo em direção a entrada, pois também tinham avistado o carro pelos faróis. Parando o carro na entrada, Antônio veio a seu encontro.
- Até que enfim, achei que íamos ficar sem nosso churrasco!
- Demorei, mas cá estou, com a "encomenda". Podem levar pessoal!
Alguns outros homens retiraram a carne do porta malas e levaram até a cozinha, enquanto Antônio e Pedro conversavam. Negão, o cachorro, acanhou-se com a presença das pessoas e ficou encolhido no banco, passando despercebido, até Antônio notar.
- Ei, o que é isso ai no banco?
- Ah, é um cachorro que encontrei abandonado na estrada aqui perto. Vem aqui garoto!
Prontamente o cachorro pulou para fora abanando o rabo. Sem conter a alegria, Negão pulou sobre Antônio, sujando-lhe a camisa com as patas.
- Que merda de cachorro sarnento! - Antônio desferiu um tapa na cabeça do cachorro, que com um ganido de dor correu e escondeu-se embaixo do carro.
- O que você está fazendo?! - Pedro questionou indignado com a brutalidade.
- Olha o que esse cachorro fez? - Antônio esticou a camisa mostrando as marcas das patas. - O que pretende fazer com ele??
- Bem, achei que seu pai não se importaria em ter mais um cachorro por aqui.
- Você está maluco!? Isso aqui não é canil! Tira esse bicho sarnento daqui, não quero ve-lô! E por favor, lave bem as mãos!
- Tudo bem, tudo bem! Não precisa ficar nervoso! E ele não é sarnento!
Antônio voltou para junto dos outros, batendo na camisa tentando limpar as marcas de patas de cachorro.
- Venha cá garoto, está tudo bem agora. - Pedro tentava tirar Negão de debaixo do carro.
Negão veio cabisbaixo com o olhar triste de outrora.
- É... Parece que você não deu sorte mesmo, é melhor você ir embora, não quero vê-lo sendo maltrado.
Pedro despediu o animal, tentando fazê-lo abandonar o local, no entanto o cão ficou por ali, camuflado na escuridão. Pedro entrou no carro e adentrou o sítio. Após algumas horas, o cheiro de churrasco já inundava o local, risos de alegria eram ouvidos por todos os lugares, finalmente tinham tudo o que queriam, paz, churrasco e os amigos. Enquanto todos se divertiam, a imagem do cachorro mal-tratado veio a mente de Pedro novamente. Discretamente, Pedro pegou alguns pedaços de carne já assada, e foi até a entrada do sítio, onde havia deixado o cão, imaginava que o animal ainda estivesse por perto. Passando pela porteira, já na estrada, estava bem escuro, mas percebeu que Negão se aproximara, fungando em seus pés e pernas, tendo certeza que era de fato Pedro.
- Olá amigão, trouxe algo pra você. - Pedro depositou a carne no chão.
O cão avidamente saboreou o churrasco. Pedro acariciou-lhe o cocuruto e voltou para dentro do sítio.
Passado aproximadamente trinta minutos, o cão entra no sitio, e vai até onde estão a pessoas, afim que conseguir mais alguns pedaços do delicioso churrasco. Ingenuamente, aproximou-se de Ana, namorada de Antônio, que com a visão não muito agradável do animal, gritou e chamou por seu namorado.
- Mas que diabos! - Antônio apressou-se e aproximando-se do animal, e sem a menor preocupação chutou-lhe a barriga com brutalidade. - Vai embora bicho nojento!
O cão ganiu alto de dor, mas num instinto de defesa, rosnou e latiu, os pêlos do dorso se eriçaram, e as outras pessoas pensando que o cão atacaria, atiraram-lhe pedras. Mas o que aquele pobre e raquítico cão poderia fazer? Novamente, Negão ganiu de dor com o impacto de algumas das pedras lançadas.
- Parem! - Pedro tentou intervir.
- Eu já falei pra você mandar esse cachorro embora! - Praguejou Antônio.
- Ele já está indo!
Pedro aproximou um pedaço de carne do focinho do cão e deixou-o cheirar, depois lançou a carne o mais longe que pode, assim, o cão correu em disparada atrás da carne e sumiu na escuridão.
Passado algum tempo do evento desconcertante da invasão de Negão no churrasco, eis que surge da entrada do sítio, um pequeno garoto, de uns seis anos, sujo e com roupas rasgadas. Ninguém notara sua presença, no entanto ele foi em direção a Ana, namorada de Antônio.
- Oi...
- Oi! Quem é você? - Ana surpreendeu-se ao ver uma criança.
- Eu sou o Juninho!
- Oi Juninho, você está perdido? - Embora sendo simpática, a moça claramente estava incomodada com o garoto maltrapilho, pois pensou que iria esmolar por alguma coisa.
- Não...
- Não? E onde está sua mãe?
- Não tenho.
- E o que você está fazendo aqui?
- Meu cachorro quer carne!
- Ah entendi, você sentiu o cheiro de churrasco!
- Não... meu cachorro quer carne!
- Tudo bem, mas acho melhor você voltar para sua casa.
- Não... meu cachorro quer carne!
Ana já sem paciência, chamou Antônio.
- Você conhece esse moleque?
- Nunca vi antes! Deve ser uns desses que moram nas redondezas e ficam pedindo coisas, manda esse moleque embora porque eu não vou dar nada, bando de vagabundos!
- Ele ta dizendo que o cachorro dele quer carne.
- Ah, então ele deve ser o dono daquele pulguento! Manda ele embora logo, antes que eu o expulse daqui como fiz com o cachorro dele.
Ana, voltou-se para o garoto, e tentou despedí-lo, no entanto ele continuava a insistir que o cão dele queria carne e não ia embora. Ana já irritada com o garoto, chamou Antônio novamente para dar um jeito no menino.
- Muito bem moleque, não tem nada aqui pra você! Vai embora, vai vai vai! - Com rudeza, Antônio foi empurrando o garoto para a saída do sítio, ambos sumindo no escuro.
- Mas meu cachorro... quer... - A fina voz do garoto ainda tentava argumentar.
- Não quer nada!
Enquanto Antônio empurrava o menino, subitamente o garoto ficou rígido como uma estátua, e Antônio espantou-se ao notar que não conseguia mais empurrar o pequenino ser.
- Que droga é essa? Anda garoto!
- Eu disse que meu cachorro quer carne... - A voz fina e angelical do menino ficou grossa, como a de um homem bruto.
Antes que Antônio dissesse qualquer coisa, sentiu as pequenas mãos do garoto segurando rigidamente seu braço, e com um único movimento para baixo, Antônio foi posto no chão de joelhos.
- O que é você??? - Já em pânico, Antônio tentava compreender a situação.
- Eu? Eu sou o devorador! E meu cão está com fome!
- O que está acontecendo???
- Aquilo que você prende, você perde!
- Do que está falando?
- Eu vim fazê-lo perder. Homem mal! Cerberus, sua carne!
Da escuridão, Antônio viu dois olhos brilhantes de cor avermelhada. Formou-se sob a parca luz a silhueta do raquítico cão que Pedro trouxera, mas desta vez sua aparência era terrível, além dos olhos vermelhos, a boca estava espumando e possuía um rosnar que não combinava em nada com um cão daquele porte. Num rápido movimento, o cão saltou sobre o pescoço de Antônio, pondo fim a sua via em segundos.
- Antônio! - Chamou Ana, percebendo a demora do namorado.
Ana viu então a pequena silhueta do garoto, indo em sua direção, mas não viu Antônio.
"Ai, esse moleque de novo!", pensou Ana, sem saber o tinha acontecido metros a frente, na escuridão.
- Onde está o Antônio? - Perguntou ela ao garoto.
- Não sei... mas meu cachorro encontrou carne! - Disse o garoto já com a voz fina de antes.
- O que??? Ora, se você tiver dado nossa carne para seu cachorro eu vou te pegar!
- Não, olha lá! - O garoto apontou em direção a escuridão.
Surgindo em meio ao escuro, o cachorro vinha arrastando uma grande carga.
- O que é aquilo? - Ana não conseguiu identificar o que o cão estava arrastando, apenas viu que era grande. As outras pessoas notaram a movimentação de Ana e o estranho garoto, e viram algo sendo trazido por um cachorro. Ana aproximou-se e com grande espanto viu que o cão estava arrastando um corpo pelo pescoço. Maior foi seu terror ao reconhecer o corpo já desfigurado do namorado.
- Não!!! O que é isso??? - Ana entrara em pânico.
Os outros correram para junto dela para ver o que tinha acontecido.
- Meu cachorro quer carne! - Novamente disse o garoto.
- Que carne?! Você tá louco moleque?! - Um dos amigos que lá estavam respondeu rispidamente ao garoto.
- A carne de vocês!!! - A voz fina tornou-se novamente grossa e áspera.
O cão assumiu sua aparência aterradora novamente, e com grande força e velocidade avançou sobre todos os outros, abocanhando-lhes o pescoço, fazendo-os cair indefesos no chão. Caídos, agonizavam com a perda de sangue. Rapidamente o cão matou a todos, com precisão de uma animal caçador, não deixou que nenhum fugisse. Exceto Pedro não fora atacado, estava estático sem entender o que estava acontecendo. O cão avançou sobre Pedro, que acordando de seu transe de horror disparou a correr, pulando e desviando-se dos corpos sem vida no chão, alguns ainda agonizavam. Olhava para trás para ver seu algoz e a cena era aterradora, como o pequeno e raquítico cão poderia ter se tornado tão assustador? Essa era sua dúvida. Entrou rapidamente na casa e fechou a porta, ouvindo as violentas pancadas de Negão, ou melhor, Cerberus contra a porta. Esta parecia que não resistiria por muito tempo, Pedro correu então para o piso superior e trancou-se em outro quarto.
- O que está acontecendo aqui?! - Pedro desesperou-se, fazia orações, o sinal da cruz e tudo mais o que havia aprendido para as horas de necessidade.
Sua apreensão aumentou quando ouviu os sons vindos da escada. Depois houve silêncio, que finalmente fora quebrado com a voz do garoto.
- Oi! Oi! Oi! - Dizia o garoto repedidamente
Pedro continha até mesmo a respiração para não fazer barulho. E o garoto continuava com seus “Oi's” continuamente.
- Tem alguém ai? - Perguntou o garoto - Quer brincar de esconde-esconde? - Sugeriu o garoto inocentemente.
“O que é isso? O capeta em forma de criança?!”, pensou Pedro enquanto encolhido no canto do cômodos onde estava.
- Começa comigo, vou contar até dez. - O garoto iniciou a contagem.
Cada número contado multiplicava grandemente o medo e o desespero de Pedro. Aquele cachoro, aquele garoto, tudo aquilo parecia surreal, no entanto, o sangue das pessoas na sola de seu sapato era bem real. E neste momento Pedro deu-se conta, deixou as marcas pelo chão, logo o garoto o encontraria. Finalmente o garoto contou dez, Pedro então inicou um choro intenso e soluçava.
- Lá vou eu! - Gritou o garoto lá de fora.
Segundo depois Pedro viu a porta do quarto onde estava tremer com muita violência. Parecia que um homem truculento batia do outro lado, mas após alguns instantes, percebeu que era o cão, que aos poucos foi destruindo a porta com muita violência, até que a parte abaixo da maçaneta foi destruída, liberando caminho para o raivoso animal. Pedro pôs-se de pé, aguardando seu fim iminente. Cerberus avançou sobre ele pulando na altura de seu peito, fazendo-o cair no chão mantendo as patas sobre seu peito. O garoto aproximou-se.
- Você cuidou do meu cachorro! - Dizia a angelical voz do garoto - Deu carne pra ele.
Pedro continuou calado, com olhos arregalados e extremamente assustado com a situação. Reunindo o pouco da sanidade e coragem que possuia, perguntou:
- Quem... quem é você?
- Eu sou o devorador, e meu cão estava com fome! - Apresentou-se o garoto novamente. - Tudo aquilo que você prende, você acaba perdendo.
- O que...?
Pedro não compreendia. E o garoto continuou.
- Meu cão tem fome dos inchados?
- Inchados...?
- Sim, os inchados! - O garoto falava mesmo como uma criança inocente - Aqueles que ficam inchados de tanto segurar as coisas! - Tentou representar, fechando com força as pequenas mãozinhas e cerrando os dentes.
- Não entendo...
- Eles seguram, seguram, seguram... ficam inchados, inchados, inchados... e de repente... "bum"! Estoura! Aí meu cachorro gosta, come os inchados. Os inchados são maus, não dão nada! Pegam tudo até ficarem inchados!
Pedro continuava confuso.
- Mas quando eles ficam inchados eu gosto, fazem "bum", igual bolhinha de sabão! Meu cachorro pega eles e eles fazem "bum"! É engraçado, hehehehe! Aqui tinha um monte de inchados.
Pedro começava a compreender o que o garoto falava. Ao contrário do que pensou Pedro, não havia uma única pessoa ali que seria um bom contato profissional ou sequer uma boa amizade. Eram todos abastados como Antônio, a maioria não trabalhava, ou fingiam que trabalhavam, assim como fazia o anfitrião. Gostavam de esbanjar o dinheiro que seus pais ganharam com suor e viviam de maneira vã e sentindo-se alheios ao mundo, em seu próprio mundo, longe da “pobretada”, como constumava dizer Ana, namorada de Antônio. Tanto fizeram que ficaram “inchados”, atraindo o misterioso garoto.
- Você é homem bom! Você não é inchado! Você não faz "bum"!
O cão assumiu a forma no qual Pedro o encontrara.
- Meu cachorro sempre tem fome! Aqui não tem muita comida pra ele, só de vez em quando, porque ele só gosta de fazer estourar os inchados pra fazer “bum”! Mas agora, ele quer brincar com você, lá na cidade grande deve ter muito gente pra ele fazer "bum"!
- Mas eu não posso...
- Ele é seu! Eu cansei dessa brincadeira, você vai brincar de devorador agora! Tchau!
O misterioso garoto deu as costas e foi embora, suminu na escuridão. Pedro olhou na coleira, e onde outrora estava escrito "Juninho", agora estava escrito "Pedro". Pedro decidiu correr, lançou-se escada abaixo e disparou em direção ao carro. Entrou no carro e desesperadamente deu a partida, mas ao olhar para o banco do passageiro, lá estava o cão.
- Você não vai me deixar não é?
O cachorro latiu confirmando.
- E eu vou ter que te alimentar...?
O cachorro latiu novamente.
- Vou ter que procurar "inchados" para você...?
O cachorro latiu duas vezes, parecia feliz...