Fogo e Paixão

Por Ramon Bacelar

Ela era pura libido, fogo e desejo: tinha cabelos negros, olhos puxados, pernas bem torneadas... E a profundidade de um pires.

Pelo menos essa foi a impressão de Márcio no primeiro contato fracassado, antes da réplica. Mal sabia ele que, até mesmo nas mais frágeis e delicadas porcelanas chinesas, o esmalte não passava de um mero revestimento; quanto à profundidade...

“Têm fogo?”

Foi a primeira coisa que escapou dos seus lábios carnudos naquela desastrosa noite de sexta-feira; pela primeira vez se deu conta do quanto os quinze anos de um casamento falido e um lento processo de separação o tinham consumido. Olhou para seu reflexo no copo de uísque: um Ronaldo Fenômeno: obeso, sem ritmo de jogo, sem saber o que responder.

“Têm fogo amor?... Não ouviu?”

Suspirou como se tentasse jogar as lembranças daquela noite no mesmo fedorento lixão comunitário onde agonizava as brasas do seu casamento.

“Se eu tenho fogo? Porque que não verifica a validade do meu lança chamas princesa?”

Recordou sua resposta estupidamente precipitada, precipitadamente estúpida e para amenizar a intensidade de seu senso de incompletude e mediocridade, consolou-se na lembrança das palavras da chinesinha, à altura de sua precipitação e estupidez: “Pela sua altura, talvez esteja mais para um extintor de incêndio vencido queridinho!”

Uma vez absorvido o impacto das palavras, pela primeira vez Márcio vislumbrou parte do complexo e intricado processo de maquiação e revestimento da profundidade de uma superfície enganadoramente frágil e caprichosamente esmaltada.

***

-Mais outra cerveja senhor?

-Não. – Por um momento o barman achou falar com um manequim desarticulado.

-Olha garota, queria te pedir desculpas pela última sexta; pela minha estupidez quando...

-Garçom, outro Bloody Mary.

Separado por dois bancos e uma fileira de copos vazios no balcão, fingiu que não ouviu: ele um fantasma: ela um iceberg indiferente.

Márcio suspira e gira o banco no mesmo instante que um decote em V e uma auréola de fumaça captura sua visão como uma implacável rede sensória: um anjo do inferno em vermelho, exalando enxofre vaporoso das narinas como fumaça de tabaco.

Olha, suspira, investe:

-Só queria te dizer que naquela noite...

-Recarregou?

-Como?

-Recarregou seu extintor de incêndio vencido? - A risada emanou como névoa amarela.

Pensou... Perguntou:

-Ainda quer fogo? – Estendeu a mão.

A chinesinha amassou o cigarro, apagando o isqueiro com a palma da mão.

-Não... Hoje eu dou.

-Fogo?

-Tudo.

-Quanto?

Balançou as chaves do carro sem responder.

***

O céu estrelado riscava a janela e o velocímetro da pickup enferrujada como fios de prata celestes: 120 km.

-Gosta de velocidade princesa?

-Não... Quanto mais cedo terminar, melhor.

-Uuhúú... Profissional. Mas você não me deu o preço.

-Acho que não.

-Não vai dar?

-Claro que dou. Têm fogo? – Riu.

Márcio escalava a muralha de mistério e desejo como um alpinista cego: acendeu o cigarro e observou a mistura do batom e Bloody Mary escorrer dos lábios como um filete de sangue semi coagulado.

-Gosto de vampirinhas orientais.

Ela não respondeu.

- Não dá para quebrar o gelo mesmo hein?

-Seu picador de gelo simplesmente... Não pica.

-Mas você machuca, perfura... e humilha. – Márcio abriu um sorriso sem graça, porém antes de prosseguir foi jogado para frente no mesmo instante que o cheiro de borracha queimada invadiu suas narinas.

-Por que parou?

-Chegamos. – Suspirou. - Na verdade, quase.

-Onde? – Olhou para os lados e se viu cercado pela indefinição da escuridão: uma superfície de piche salpicada por pontos brilhantes.

-Cale a boca.

Jogou a ré, pegou uma trilha de terra batida e atravessou uma cerca de arame farpado no meio do nada.

-Estamos quase... Lá. Pense em um vulcão orgásmico queridinho.

- Onde estamos, que lugar...

Antes de concluir, olhou para os lados e notou o brilho lunar emoldurar curvas, ferrugens e formas metálicas.

-Maluca, um cemitério de carros!

Desligou o motor.

- Prefere carne podre ou ferrugem?

-Prefiro um motel com...

-E eu isso!

A chinesinha pulou em Márcio como uma loba faminta: batom ressecado no sangue das mordidas e arranhões imobilizaram sua capacidade de reação.

-Carne e ferrugem, eu gosto dos dois.

-Maluca.

-Porquoi?

-Porque...

-Eu gosto!

Desabotoou as calças de Márcio e olhou para baixo.

-Que tal vampirinha, quer fogo?

-Não... Falei que hoje “eu” dou tudo.

-Nesse caso...

-Feche os olhos.

Fechou, aguardou... Suspirou e só abriu quando um ruído metálico o fez suspender o pescoço:

- Puta que pariu que porra é essa!

-Eu avisei.

Márcio tentou se mover, mas só percebeu que as algemas imobilizando suas mãos no volante não eram um mero fetiche quando sentiu a pressão nos pulsos.

-Quando fico por cima gosto do controle benzinho.

-Doida.

-Tesudo.

-Selvagem.

-Controle “total”.

Colocou uma venda nos olhos do parceiro e com um beijo saltou do carro.

-Para onde está indo!

Silêncio.

-Onde foi?! - Ouviu um ruído metálico no fundo da pickup seguido de um leve balanço.

- Cadê você!

O silêncio do silêncio.

-Doida miserável!

-Me chamou benzinho?

Pulou em cima de Márcio como uma cadela no cio.

-Me solte, está machucando! Onde você esteve?

-Me aprontando.

- O que está fazendo?

-Hoje eu dou tudo!

Massageou as orelhas com a ponta da língua liberando a saliva densa no umbigo e virilha:

-Maluca... Quente... Tesuda...

-O que você quer mais benzinho?

-Tudo!

-Uma coisa por vez gulosão.

-Quero, quero...- Tentava falar enquanto ela besuntava seu corpo com saliva e lubrificante. – Quero, quero... Fogo princesa.

-Seu desejo é uma ORDEM!

Foi a última coisa que ouviu, antes da chama do isqueiro no óleo diesel lubrificante transformá-lo em um tronco de brasa agonizante.

FIM

Ramon Bacelar
Enviado por Ramon Bacelar em 30/04/2011
Código do texto: T2939934
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