O MISTÉRIO DA RUA CINCO

Que a Marlene um dia ia se dar mal todo mundo sabia. Ou pelo menos, era o que se pensava lá no bairro. Principalmente as mulheres mais velhas e as outras meninas, que não perdoavam o fato de ele ser muito “dada”. Dada era o termo usado pelos mais educados para a garota muito namoradeira. Para a maioria era “galinha” mesmo.
Aos quinze anos a Marlene já havia namorado a metade dos rapazes da vizinhança. Entre as outras meninas era um falatório só. Talvez fosse a rigidez da educação que elas tinham naquele tempo, que as fazia tão sérias. Ou talvez fosse apenas inveja, mas o fato é que nenhuma menina queria andar com a Marlene. Bastava isso para ficar falada também. Por isso ele só era vista com meninos. E era isso que machucava as outras. 
Entre os meninos também havia muito falatório com respeito à Marlene. Só que, na verdade, todos estavam esperando a sua vez. Era como aquele negócio de fazer fila. Quem já foi? Quem é o atual? Qual será o próximo?.
Feio ou bonito, todos tinham esperança com a Marlene. Ela distribuía o seu produto com a equidade de um socialista que realmente acredita que as pessoas devem ter iguais oportunidades de consumo. Por isso ela ficava com todos sem muita distinção de cor, tamanho, aparência ou idade. Ora era o Siqueira, um baixinho de 1,50, ora era o Peixoto, um sujeito que tinha uma cara e um cheiro insuportável de peixe(trabalhava numa peixaria), ora era o Zecão, um cara tão grandão, que só andava com as mãos no ombro dela, porque de mãos dadas não dava altura.
Certo que o ficar, como se diz hoje, naqueles tempos, não era como se faz agora. Saia, quando muito, um beijinho depois de uma semana, um amasso mais firme depois de um mês, e uma ou outra passadinha de mão mais ousada, quando a coisa se tornava um pouco séria.
Antes disso era levar tapa na cara com certeza. As meninas se guardavam para a noite de núpcias. Havia até uns caras ─ os mais estudados, ou lidos ─, que ainda chamavam a noite de núpcias de himeneu. Noite do hímem. Por isso, se descoberto, nessa noite mágica, que a menina não era mais virgem, no dia seguinte ela podia ser devolvida ao pai e o casamento anulado. Isso está no Código Civil até hoje e continua a ser tradição em alguns lugares do país, mas na época era lei mesmo e muito aplicada.
Os meninos diziam que a Marlene não dava tapa quando a mãozinha boba rolava. Ao contrário ela deixava a coisa rolar até onde as outras só liberavam depois do padre, do cartório e da festa. Mas ninguém, entre os meninos com que ela ficou, podia jurar, de pés juntos, que tinha conseguido ir além disso, pois segundo era a queixa geral, na hora, ela sempre deixava o cara com o negócio na mão.
Agora, que a danada era bonita, isso era. Talvez a melhor imagem que se possa fazer dela é que ela parecia a Gabriela do Jorge Amado. Todo mundo dizia que era. Na aparência e na personalidade. Com aquela pele da cor de jambo e aqueles cabelos compridos que batiam na cintura, que de tão negros pareciam azuis-metálico, ela era fogosa e brejeira como a arisca morena de Ilhéus, que deixava os velhos e babões coronéis do cacau de queixo mole e negócio duro.
Quando a Marlene passava pela Rua Cinco ela também provocava um arrastão de olhares gulosos e uma banda inteira de assobios e gracejos que ela respondia naquela linguagem corporal de rebolados e sorrisos matreiros que só ela sabia falar com tanta fluência e significado.
Exibida, diziam as outras meninas. Gostosa, diziam os rapazes, escandalosa, diziam as mulheres mais velhas. Mas não havia quem não a olhasse, quem ficasse indiferente.

Escândalo mesmo ela provocou quando começou a namorar o Pai João. Pois esse era um negão com mais de quarenta anos de idade (ela não passava dos dezesseis), e tinha má fama no bairro. Todo mundo sabia que ele era bicheiro e havia quem desconfiasse que ele também distribuía erva.
Isso que hoje é tão banal, encontrável em toda esquina de qualquer cidade, naqueles tempos era uma verdadeira raridade. Mas já começava a se tornar hábito entre os rapazes mais ousados “dar uma bola na chiba”, que era a expressão usada na época para fumar um baseado.
Pai João tinha também a fama de ser macumbeiro e fazedor de sortilégios. Havia quem afirmasse que ele capaz de fazer macumbas para separar casais, uni-los, matar uns e curar outros, fazer gente se apaixonar e desapaixonar assim, sem mais nem menos, com um simples despacho na encruzilhada.
Verdade ou não, o fato é que no cruzamento da rua Cinco com a rua Sete, onde ele morava, todas as sextas-feiras havia lá uma garrafa de marafo das boas, acompanhada de charutos, velas, às vezes doces e outras comidas, tudo disposto num arranjo artisticamente preparado, ora em formas geométricas, ora dispostos em estranhos desenhos que formavam mandalas e arabescos incompreensíveis.

Evidente que o Pai João tinha feito alguma mandinga para a Marlene se apaixonar por ele. Não era possível que a menina mais bonita e liberal do bairro fosse se engraçar, de forma definitiva, justamente com aquele negão, que além de marginal, macumbeiro e feio como um rascunho do capeta, ainda tinha mais que o dobro da idade dela.
Dizem que quem ama o feio bonito lhe parece. Essa era a frase do dia. Outros justificavam o fato dizendo que o coração tem razões que a razão desconhece. Eram apenas frases, mas as outras meninas se sentiam vingadas, as mulheres mais velhas sacudiam a cabeça, como quem não entendia o que estava acontecendo e os meninos estavam com a sua auto-estima no pé. Não gostavam nem um pouco de ter sido passados para trás por um “nego véio mutreteiro”.
Mas para alegria deles o namoro da Marlene com o Pai João não durou muito tempo. Marlene tinha um irmão, o Maurão, que não era um cara fácil de lidar. Tinha fama de brigão e arruaceiro. Enquanto os arrufos da irmã eram com os garotos do bairro ele não se importou muito porque sabia que a irmã era fogosa mesmo, mas que também era muito esperta e jamais deixaria que as coisas passassem dos limites que ele mesmo costumava chegar com as meninas que ele também pegava.

Só que quando entrou em cena o Pai João, a coisa ficou feia. Aí ele resolveu interferir. Primeiro por que havia o preconceito. Afinal, o cara era negão.  Não havia lei Afonso Arinos que fizesse ele ficar quieto com um negócio desses. Segundo porque o cara tinha idade para ser pai dela. E um sujeito com uma idade e uma fama daquelas não ia ficar só nos beijinhos e nos amassos. Terceiro porque a família começava a ser a gozação do bairro. A irmã dele era a namorada de um  negão bicheiro, marginal e macumbeiro.
Assim, a primeira tentativa foi com ela. Tinha que largar aquele cara. Foram inúteis todos os argumentos, as ameaças e os pedidos. Os pais também entraram em cena. Pediram, choraram, ameaçaram. Nada conseguiram. A menina ficou irredutível. Amava o Pai João e ia casar-se com ele custasse o que custasse, fizessem o fizessem. Se enchessem muito o saco ela ia fugir com ele. Foi o que ela prometeu que faria e eles sabia que ela cumpriria a promessa. Eles sabiam a filha que tinham e o Maurão conhecia bem a irmã.
Diante da irredutibilidade dela, que só podia ser mesmo produto de uma mandinga bem feita pelo negão, só cabia mesmo falar com ele. E lá foram os pais da Marlene tentar fazer com que o Pai João ouvisse a voz da razão. “Você tem o dobro da idade dela”, disseram. “Quando ela estiver com trinta, você já estar com mais de sessenta. Acha que isso vai dar certo?”
Bem, Pai João não queria saber o que iria acontecer dali a trinta ou quarenta anos. Ele queria viver a sua paixão naquele momento, enquanto ele tinha vigor suficiente para dar para a Marlene aquilo que ela queria. “No longo prazo”, dizia ele, filosoficamente,“ estaremos todos mortos”. Por isso o único futuro que lhe interessava era o dos outros, dos consulentes que o procuravam para que ele lhes desvendasse os sortilégios que ele dizia ser capaz de fazer para que as pessoas se dessem bem em seus negócios e nos seus relacionamentos. O dele não. O dele era agora e com a mulher da sua vida. O resto que se danasse.

Apesar dos comentários maldosos que a maioria dos rapazes fazia a respeito do comportamento da Marlene, um bom número deles seria capaz de qualquer coisa para melar o namoro dela com o macumbeiro. Mas nenhum deles era tão apaixonado quanto o Zé Mineiro, um jovem soldado da Policia Militar, que também já havia passado pelas mãos da Marlene, ou o contrário, e não havia conseguido esquecer nem se conformar que ela o houvesse esquecido e trocado por um sujeito como o Pai João. Afinal, como costumava dizer, ele entrara para a Polícia Militar justamente para ter um emprego estável para poder casar com ela.
Foi então que o Zé Mineiro e o Maurão resolveram bolar um plano para acabar com o romance da Marlene com o Pai João. Foi fácil como tirar doce de criança. Zé Mineiro era da polícia. Todo dia ele pegava uns caras dando bola na chiba, como se dizia dos caras que gostavam de fumar maconha. Não demorou muito para ele juntar uma boa quantidade da erva. Pai João já tinha fama de bicheiro e traficante. Mas nunca ninguém o pegara com a erva. Também jamais o viram traficando e nenhum dos garotos do bairro que costumavam puxar um fuminho jamais tinham pego o bagulho com ele. Se traficava, era longe dali.
Para o Zé Mineiro bastou ficar uma noite de tocaia na esquina onde o Pai João ia fazer suas macumbas e surgir na hora em que ele fazia os arranjos da sua oferenda para os santos. Não deu outra. Com o testemunho do irmão da Marlene e mais dois garotos que se ofereceram espontaneamente para assistir o flagrante, o Pai João foi preso e pegou cinco anos de cana.
No dia do seu julgamento, ao ver que o advogado que havia contratado para defendê-lo não conseguira destruir as provas que foram habilmente forjadas contra ele, prometeu que os caras que tinham armado aquilo iam se arrepender amargamente. Como isso ia acontecer, ele não disse para ninguém.

Com feitiço ou sem feitiço, o fato é que o fogo da Marlene era mais forte que qualquer sortilégio ou mandinga que o Pai João pudesse ter feito. Ou pelo menos todo mundo assim pensou. Pois com o seu negão na cadeia, ela logo recomeçou o rodízio de rapazes. Pegou mais uns dez antes de finalmente, com dezenove anos, casar-se com o Zé Mineiro, que não havia desistido e nesse tempo todo, ficou pacientemente esperando a roda girar para ele entrar outra vez. Entrou e não saiu mais.

Marlene e Zé Mineiro estavam casados há dois anos e o bairro estava em paz. Eles moravam numa casa que os pais dela haviam construído nos fundos do terreno da residência deles. Ela havia se transformado numa dona de casa normal, que já não provocava mais comentários no bairro quando passava com o seu rebolado provocante e as meninas e as mulheres mais velhas da Rua Cinco já até haviam se esquecido da garota espevitada e escandalosa que tanto as irritava.Tinha, segundo se dizia, socegado o pito.  Algumas delas tinham até se tornado amigas dela.
O Bairro nunca se esqueceu daquele dia. Mais de duzentas pessoas se ajuntaram em frente à casa da Marlene para saber do que tinha acontecido. Era cerca de cinco horas da tarde quando os gritos começaram. Todo mundo ouviu sons de coisas quebrando, voz de homem em plena fúria agredindo uma mulher e depois barulho de homens brigando entre si. Depois um estampido surdos e abafado, como de uma arma sendo disparada. Em seguida o silêncio inquietante, sinistro e tétrico que acompanha a tragédia que todo mundo sabe que aconteceu, mas ninguém tem coragem para  ir ver de perto. Depois de uns dois minutos, outro estampido surdo, abafado foi ouvido. Depois mais nada.
Quando a polícia chegou e algumas pessoas conseguiram entrar na casa, não conseguiam acreditar no que viam. Dois corpos agonizantes, abatidos a tiros, estavam no chão, exalando os últimos suspiros. Um eles era o Maurão,  o irmão da Marlene. O outro era o Zé Mineiro. Este estava com o rosto todo arrebentado, olhos inchados, nariz esguichando sangue. Num canto, acossada como um animal, com um rosto marcado por muitas pancadas, estava Marlene, com um revólver ainda quente e fumegante nas mãos.
O inquérito conduzido pela autoridade policial apurou que a briga começara entre o casal. Zé Mineiro começara a bater em Marlene porque descobrira, ou desconfiara que ela tinha um amante. Nunca ninguém soube ao certo se isso era verdade ou apenas uma desconfiança dele. O fato era que, no curso da discussão, ele se tornara violento e começara a espancá-la com força. Ele gritara e pedira por socorro. Seu irmão ouviu os gritos e correu  para acudi-la.  Começou uma briga com o Zé Mineiro. Mauro era mais forte. Zé Mineiro ficou em desvantagem e não gostou de apanhar. Entou pegou a sua arma e disparou contra o cunhado. Depois, exausto e prostrado pela enormidade da tragédia que havia se abatido contra ele, deixara cair o revólver e começara a chorar como uma criança. Marlene pegara o revolver e disparara contra ele. Depois se acostara num canto, como uma fera encurralada, com olhos vazios e frases sem nexo, onde a única coisa que se entendia era o nome do Pai João.

Marlene não foi condenada. Ela respondeu ao processo em liberdade e no julgamento seu advogado conseguiu convencer o júri de que ela havia atirado em seu marido em legítima defesa. Nessa altura ela já havia sumido do bairro e ninguém nunca mais a viu por aquelas bandas. Também não se ouviu mais falar no Pai João. Disseram até que ele havia morrido na prisão.
Mas um dos antigos namorados da Marlene, que trabalhava na companhia de distribuição de energia elétrica e fazia leitura dos relógios de luz afirmou um dia tê-la encontrado, cinco anos mais tarde, vivendo em um belo apartamento numa cidade vizinha. Ele estranhou por que a luz estava ligada em nome de um cara chamado João Ribeiro, que segundo os vizinhos, era um negão bem mais velho que ela e tinha fama de macumbeiro.
Quanto aos moradores do bairro, a tragédia foi esquecida. A única coisa que ainda incomodava o povo do lugar era o despacho que toda sexta-feira aparecia na esquina onde o Pai João costumava entregar suas oferendas para os santos. Era sempre umas coisas dispostas num arranjo artisticamente preparado, ora em formas geométricas, ora em maneira de bizarros desenhos que formavam mandalas esquisitas e arabescos incompreensíveis. Segundos alguns dos moradores da rua, até hoje, mais de cinqüenta anos depois, de vez em quando ainda aparecem por lá essas estranhas encomendas. Isso continua sendo um grande mistério para os moradoresda Rua Cinco, que hoje até já trocou de nome.




João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 25/04/2011
Reeditado em 26/04/2011
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