O Peso das Palavras (O horror da vida real)

Por Ramon Bacelar

Júnior tinha acabado de acordar, quando o pedido de Júlia na secretária o obrigou a largar o fone e tomar um banho rápido.

Um amor platônico por parte dela e uma paixão secreta e atormentadora dele, o impediu por dois anos de se declarar. E agora, um pedido de ajuda para a festa de aniversário de sua mãe; como poderia deixar passar? Perder essa chance?

Imaginou miríades de situações, talvez elaboradas em algum ponto escuro de seu passado recente, mas nunca postas em prática... Até agora: sopraria as bexigas de olhos fechados, sentido sua proximidade pela intensidade do perfume; beberia do seu vinho por engano, degustando a textura da saliva e a aderência do batom na taça de cristal; esbarraria ousadamente em seus ombros, desculpando-se enganadoramente por tamanho atrapalho; e por fim, avaliaria o humor pela tonalidade de sua voz, cruzando os dedos para exorcizar a possibilidade de uma maldita TPM, antes que o peso de sua declaração, as palavras mágicas, escapasse de sua boca: Júlia, eu te amo.

***

-Entre querido, estou na cozinha preparando o bolo.

“Será que ouvi... ‘Querido’? Começamos bem.” Pensou e sorriu.

Subiu os degraus lentamente pesando as possibilidades, avaliando as chances e saídas para possíveis silêncios e constrangimentos em potencial.

“Se não posso aniquilar o fator surpresa, pelo menos amenizarei com... com...”

Atravessou a sala tentando não antecipar; enxugou o suor e suspirou, mas antes de adentrar, a voz de Júlia o impulsionou:

-Bom dia Júnior; tenho uma surpresa!

-Bom dia Júlia. Surpresa?

Com a mãe fora, Júnior concluiu que a hora tinha chegado.

-Quer uma taça? Este vinho seco é ótimo. – Degustou.

-Quero sim... Não, não quero! Quero dizer... - Olhou para a mancha de batom na taça como se encarasse um desejo tornado carne: uma inacessível miragem de existência fugaz e encanto duradouro.

-O que deu em você?

- Nada. – Suspirou - Você me falou que tinha uma surpresa?

-Sim. Na verdade uma BIG surpresa.

“Querido: exclamação: vinho: surpresa: ‘Júlia, eu te amo.’”, concluiu para si mesmo.

-E eu mereço tanto?

Júlia sorriu.

-É por isso que eu te adoro. Você é tão, tão...

- Sou curioso mesmo. – Retribuiu o sorriso. – Eu quero a minha surpresa agora.

- A surpresa é para a mamãe seu bobo.

Júnior emudeceu.

-Não gostou?

-Claro.

-Comprei outro carro para ela e queria que você me desse uma mãozinha.

-Quer o meu emprestado?

-Não. Pela tarde iremos para a emplacadora, e na volta passaremos na concessionária para deixar suas folhas de cheque como caução... Meu talão está bloqueado; algum problema?

-Não, claro que... Não.

-Não quer mesmo uma taça de vinho?

- Obrigado, mas... - “Claro que quero.”, pensou.

-Júlia.

-Sim?

-Precisamos conversar.

-Pode pegar aquela assadeira em cima da despensa? – Pausou. - Não, a arredondada debaixo da forma de pizza.

-Como eu estava falando, querida... Há tempos que eu... Eu...

-Desembucha Juninho; hoje você tá que tá. – Júlia estudou-o antes de continuar. – Porque você não vira meu Marlon Brando e mete a mão na manteiga?

-Como?

- Um pseudo-cinéfilo que nunca viu O Ultimo Tango em Paris? Use os dedinhos para untar a assadeira... Amor. – Gargalhou. - Eu te adoro! –Beijou-o na bochecha.

“Porque que esse humor irônico-catastrófico tinha que vir justo agora?”: a ficha caiu e Júnior sentiu, mas continuou:

-Você sabe que nossa amizade... Nossa sintonia...

Silêncio.

-Júlia eu gosto de você, eu te amo... Muito!

-Júnior v-você...

- Não, agora falo eu! Eu sempre te amei, sempre... Desde o primeiro dia que te vi.

Júlia olhava para baixo como se sua face tivesse despencado na assadeira.

-Vou repetir, eu te amo. – Continuou. – Sou perdidamente apaixonado por você! – Pausou. – EU TE A-MO! Você sabe o que isso significa? Têm ideia do peso destas palavras?

Julia suspendeu o pescoço, pegou as palavras, colocou-as na balança e falou:

-Apenas 50 gramas... Sinto muito queridinho!

FIM

Ramon Bacelar
Enviado por Ramon Bacelar em 23/04/2011
Código do texto: T2925548
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