Corsário
(Em homenagem à canção de João Bosco e Aldir Blanc)
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Pirata. Corsário.
Um jogo de palavras e sua vida estava se acabando ali, em La Tabla, Nova Granada, Espanha. A imensa formação rochosa em forma de mesa abrigava a prisão de La Tabla, destinada principalmente a presos políticos.
Um jogo de palavras, semântica pura. Para a coroa inglesa, ele era um corsário, nobre aliado do rei para resgatar as riquezas de Ásia e África que Portugal e Espanha ousavam negar aos outros reinos europeus, ofendendo-os com a petulância do Tratado de Tordesilhas: metade do mundo, para a Espanha, outra metade para Portugal.
Corsário. Pirata.
Para os espanhóis, ele não passava de mais um pirata imundo. A carta de corso que levava consigo no momento de sua captura o transformara em um prisioneiro político, pois era um terrorista de estado, enviado por um soberano. Uma injúria que a Invencível Armada Espanhola cobraria do trono inglês com juros de sangue.
A febre era furiosa. Seu coração tropical parecia repleto de neve. Não tinha esposa nem filhos para sentirem saudades dele e chorarem sua prisão, ou sua morte que se mostrava certa, lenta e impiedosa. Não sentia falta de nenhum ser humano, homem ou mulher que houvessem cruzado seu caminho: sentia a falta apenas do mar. Havia perigos, havia morte, havia dúvidas - mas tudo se dissipava na certeza de que haveria também o mar.
Ele bem que tentara fugir. Bendita lâmina perdida por um dos guardas estúpidos num dia de revista. Mas a bendita lâmina aguda agora era grave, perdera seu corte nas muitas tentativas de abrir um túnel de volta à única paixão de sua vida: o mar. Bendita lâmina grave que fere a parede. Bendita até cortar-lhe a mão num acidente, trazendo a febre.
Os roseirais cultivados na planície abaixo de sua cela eram agora um mar de flores, e a febre se encarregava de deixá-lo incapaz de vislumbrar onde terminavam os roseirais, onde começava o mar.
Sua esperança se esvaia. Se fosse um náufrago, poderia mandar mensagens em garrafas, soubera de um capitão de navio que passara um ano perdido nas Antilhas, mas fora encontrado porque um marujo de um navio percebeu que havia uma mensagem na garrafa que passava boiando sem destino. Uma chance em milhões.
Ele não teria esta chance...
Era um prisioneiro, não um náufrago.
Mesmo que mandasse em garrafas mensagens por todo o mar...
Não havia mais tempo. A prisão, a ferida, a febre. A morte era a próxima, naquela estranha e lógica sequência.
Resignado, aceitou sua condição. E percebeu a ironia do momento.
Bendita a lâmina grave que fere a parede e trás as febres loucas e breves. Se ela não lhe deu um túnel, lhe deu outra chave para sair dali.
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As águas envolveram o corpo, já envolto em bandagens e pesadas correntes. Deveria afundar e não voltar mais. Era essa a intenção dos soldados quando atiravam o corpo dos prisioneiros ao mar.
Ele partiu na geleira azul da escuridão.
Foi buscar a mão do mar.
***FIM***
Notas do Autor
1 - Se você não conhece "Corsário", de João Bosco e Aldir Blanc, vai agora pra esse link: http://letras.terra.com.br/joao-bosco/46512/
Lá tem a letra e um vídeo da música. É maravilhosa.
2 - Eu, normalmente, sou um porre de chato com essa história de pesquisar a geografia, a história, não deixar uma vírgula faltar com a parte real do conto. Hoje, excepcionalmente, minha única preocupação foi com a geografia da música, não da Espanha. Nem sei se tem roseirais em Nova Granada, Espanha. Se não tiver, a culpa é do Aldir Blanc, não minha. A prisão de La Tabla é criação minha, foi baseada no Chateu Diff, do Conde de Monte Cristo, e no nome de um restaurante que tem aqui em São Paulo.
3 - A Invencível Armada Espanhola tentou cobrar a Coroa Inglesa com juros de sangue, mas afundou no mar, sob uma tempestade descomunal, antes de chegar à Inglaterra. Seria a vingança de algum corsário? Nunca saberemos...
4 - O Tratado de Tordesilhas é aquele mesmo que você viu em História do Brasil, se não durmiu durante a aula.
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