Deus no aquário (O horror da vida real)
Por Ramon Bacelar
Não foram os sonhos nem as cartas, muito menos os sinais. Talvez a súbita onda de calor tenha contribuído para o início de uma quase imperceptível inquietação mental, despertado o desejo antes inconsciente; ou então a história Maia e Nostradamus lido nas entrelinhas, para uma mente convulsiva e imaginativa, tenha cristalizado um antes latente otimismo sincero e credulidade exacerbada; mas nada, nada fazia crer que no dia 21 de dezembro de 2012, precisamente às 8:00 da manhã, não apenas o mundo ainda existia, como Deus, surgido na casa de um pacato cidadão, mais um João entre os Joãos, tenha retornado: materializado, disformemente antropomorfizado, meditando serenamente em um aquário de 1.500 litros, onde no dia anterior ficava uma escrivaninha que rangia sobre o peso de pensamentos, calculadoras e pilhas de contas a pagar: Deus... Sim, mas um Deus no aquário, surgido em um mundo decrépito, raquítico e agonizante que pouco tinha a oferecer, e muito a desejar.
João não se deu ao trabalho de se beliscar, tinha consciência se tratar de mais um sonho desperto, mas esse era diferente: vívido, lúcido, “real”. Um aquário de feitura delicada, envolto em moldura dourada adornada com pérolas, conchas e esmeraldas de infinitos tamanhos, formas, radiâncias e intensidades: um mosaico multicor de emanações prismáticas e mistério aquoso, ferindo a credulidade como um afiado fio de navalha.
Em seu interior, mergulhado no líquido cristalino não apenas um Deus, mas “o” Deus, e como toda divinidade, moldada a imagem e semelhança do imaginador, ou melhor, à semelhança de seus sonhos, metas, anseios, desejos e vitórias: a fortaleza de sua existência.
João contemplou sua divinidade examinando-a como um atalho para o início, uma memória tornada carne: olhou para a cauda pontuda e escamosa recordando suas tardes solitárias, quando fugia de uma infância difícil assistindo aos filmes do Godzilla e a destruição de Tókio pela milésima vez; imaginou as orelhas grandes como as do seu cocker spaniel lhe fazendo companhia, aquecendo-o no conforto da pelagem espessa:da mesma densidade que revestia a corcunda irregular e a cabeça babuína; dos movimentos mecanicamente pausados dos olhos e pescoço lhe vieram à mente as criações fantásticas do Ray Harryhausen e os robôs do Asimov, porém sem o charme artificial do primeiro, nem a ingenuidade sedutora do segundo. Um brusco movimento lhe revelou um papo com manchas arroxeadas, semelhantes as da sua mãe quando agredida por uma ébria caricatura de pai, não distante em feiúra do seu Deus, mas, diferente da alcoolizada, confortadoramente libertadora: o paradoxo que não era: um pai que poderia ter sido... A caricatura da caricatura.
Piscou os olhos e fechou... Abriu, mas não assimilou: se ainda sonhava de olhos abertos, ou despertava, com olhos fechados, de um sonho desperto, não sabia... Mas sentia. À sua frente a mesma cadeira e escrivaninha e em cima dela, aquilo que não devia existir: a Realidade da Realidade.
Fechou os olhos tentando esquecer, e mesmo lutando...
Sua realidade material lhe retornou com a fúria de uma represa arrebentada: cerrou os punhos, suspirou, esmurrou, expirou, socou, gritou, lamentou, socou e quando não mais força lhe sobrou, não parou: continuou: socou, berrou, fechou, abriu, fechou... Despertou.
Sentiu a mão em fogo e acompanhou o sangue borbulhante fundir-se ao líquido de um aquário estraçalhado; apalpou o pulso adornado com partículas de vidro espesso e veias expostas, agonizantes em um grito mudo. Encarou os boletos e contas na escrivaninha: inquietações numéricas afogadas no mar rosado de sangue e geléia aquosa que agora inundava seu presente; e da periferia de sua mente, como um temor desabrochado, vislumbrou o mesmo mar revolto asfixiando seu futuro com jorros de líquido gelatinoso e vermelho denso.
Afastou-se envolto em uma dolorosa inquietação sonora, semelhante ao estalo de um cordão umbilical; abriu a porta, respirou fundo e como um ensanguentado zumbi sonambúlico, cambaleou para fora e foi procurar outro Deus.
FIM