A Balança (revisado)
A Balança (um mórbido pesadelo cômico-horrífico-absurdista sobre dieta e obesidade mórbida)
Por Ramon Bacelar
Aviso: Esta é uma obra puramente ficcional, qualquer semelhança com pessoas e fatos pode ser A MAIS PURA VERDADE, afinal de contos (sim isto é um conto, uma estória de mentirinha, tão falso como o nariz do Pinóquio)...parafraseando o invejosamente magérrimo Nelson Rodrigues A Vida C.. (intromissão e alerta do chato editor: cuidado com o plááááágio). Assinado: Eu.
Triiiiiiiiimmmm...o doce, suave e trêmulo despertador arranca-me de minha existência secreta e penumbrosa com esse barulhinho que para muitas pessoas soa irritante. Um dia eu pensei como elas, um dia eu fui como elas e como a maioria dos obesos, facilmente irritável, que escondia sua frustração e inchamento mórbido irreversível em uma capa de sorrisos e amabilidade que só não era mais falsa graças à direta e sincera manta de gordura que, irritada e com um fiozinho de inveja, travava batalha na reconquista do seu território com suores fedorentos, sebosas exalações e peidos catastróficos destinados a abalar a confiança e minar a auto-estima até que, sem forças e cabisbaixo, retornava ao meu estado natural: frustrado, irritadiço e... morbidamente obeso.
Sim, hoje eu sou uma nova pessoa, alguém que enxerga a vida com novos olhos, apesar da miopia progressiva e catarata em estágio avançado. Sim, meu pequeno, bagunçado e mofento quarto agora me parece um luxuoso harém (cadê a mulherada?? vai entender...) e o odor de mofo fora substituído, graças a minha nova existência, por um suave e refinado odor de incenso e perfume francês exalando do vaso sanitário: a vida é bela (cuidado com o plááágio). A bruxa caquética do 302 continua a mesma, mas eu... não: sua voz é doce e suave e suas palavras jorram de seu carnudos e deliciosos lábios sensíveis, delicadas e confortadoras; a finura dos seus traços, se não faz sombra com os da Giselle Bundchen... aaaaaaahhh Preta Gil.
Em sintonia com meus leves e renovados passos tocando levemente o carpete da escada, meus pensamentos agora vagam pelo meu recente passado mórbido e me descortinam tristes experiências e situações que a minha magra memória recente não tem meios nem força física de apagá-los: noites de insônia e refluxo, arrotos de odor cadavérico, mofados antiácidos efervescentes (o de limão com água gelada é uma delííícia), alvas e líquidas magnésias bisuradas de textura grossa que revestiam meu inchado e insaciável estômago com uma capa de brancura semelhante a uma nojenta massa corrida de quinta categoria; amizades abaladas e amigos perdidos...amigos e amizades triturados e destruídos: triturados como um pacote de sonrisal limão estocado em baixo de caixas de leite em pó (dietético), destruídos como barras de chocolates (aquela que engorda) em noites de insônia e crises de ansiedade. Sim, mas como não existe mal que não venha para o bem, em meu lento porém recompensador processo de reconstrução física, mental e emocional, um novo amigo me veio em socorro... ou melhor, amiga: construída em forma de T em aço de alta qualidade , borracha aderente e a precisão digital de um analógico relógio suíço, A BALANÇA, como um fiel, babento e vigilante pit bull, me orientava e abria caminho para meu brilhante e esbelto futuro.
Parece que foi ontem: olhei para ela, e ela, com dois olhos em forma de zeros digitais, me encarava ameaçadoramente, e quando seu visor pertubou minha retina com cinco vermelhos e precisos numeruzinhos, suei e tremi dos pés a cabeça, era como se meu espírito fosse sugado e uma incômoda leveza me possuísse: 130 kilos, nada mais... nada mais...
Suco de abacaxi, boca fechada e...vergonha na cara: um ano depois e... cinqüenta quilos mais magro: a vida é bela!!!!
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Sorrisos abertos, vozes suaves, bruxas bonitas, fedores cheirosos e... visitas diárias a minha melhor amiga, que me olhava nos olhos e nunca mentia, e agora...: cinco quilos mais gordo!!!
Das esbeltas entranhas de minha renovada auto-estima uma força misteriosa me impele a banir de vez os magros excessos gastronômicos dos últimos meses mas...: Bob’s, Mcdonalds, batata frita, feijoada, lasanh...NHAAAAAAAAAMMMMMMM, meu deus... só é bom o que não presta, a carne é fraaaaca...e se for uma picanha ao ponto melhor ainda: continuo engordando!!!
Por um desconhecido (d-e-s-c-o-n-h-e-c-i-doooo) motivo, minhas visitas a minha fria e sincera amiga diminuem na medida em que meus contornos e curvaturas ganham formas harmoniosamente arredondadas, minhas exalações, no último ano raras e espaçadas, adquirem uma constância que fazem me sentir como um esférico, gorduroso e suculento pastel de boteco; apesar de não mais visitar minha amiga...tra-lá-lá... estou f...
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Exalações e suores de liga e odores duvidosos me atormentam e dominam meu ser, ganham território e fincam bandeiras de mastros sebentos nas bases de minha ansiosa e abalada auto-estima. Tento aniquilar a idéia de domínio territorial, de contornos arredondados e a noção de piscantes números crescentes; sinto-me angustiado, deslocado, mal amado, mal cheiroso e, com a sensação dos meus pés “não tocando” a calçada quente, sinto-me enganadoramente leve e o meu andar...não ando, eu “rolo”: agora sou uma ansiosa, gigantesca, rolante e profundamente solitária bola de gordura sebosa: vou à procura de minha fria, sincera e fiel amiga para me desculpar e reatar o que nunca deveria ter partido e enquanto...”rolo”, memórias do meu seboso passado recente retornam como uma panela de barro me tentando com seu gorduroso e saboroso conteúdo de “comeu morreu”. Parece que foi...: boca fechada resistindo as mais diversas tentações e a cada nova vitória diária... uma grama que sumia (detesto folha) e a cada grama que sumia um quilo de auto-estima que subia, queria me fartar de satisfação e felicidade, me entupir de bom humor e morrer saciado, morrer de uma obesa e mórbida auto-estima . Os dias passavam, a fome aumentava e eu resistia, não comia e minha antes baixa auto-estima agora se transmutava em alta auto-estima que subia, subia, subia...e hoje... esférica e pútrida bexiga de banha que sou, de cabeça baixa... olho para...ELA!! Ela me olha com hipnotizantes zerinhos digitais e eu sonambulicamente toco com meus pés na borracha aderente e ela, como uma fogosa, obesa e carente coroa de meia idade, em frenéticos tremores orgásmicos , me mostra a terrível realidade de minha condição por meio das entranhas digitais que transformam impulsos e choques elétricos em numerizinhos que mudam a cada microsegundo: 90...99,102,110...145 KG ... CACEEEEEETTAAAA!!!! Como dois salsichões alemães presos a minha cintura, minhas cilíndricas pernas agora chutam a herege e insensível monstruosidade de metal por ter me mostrado a cara da verdade, A Face da Desgraça, O DEUS DA RISADA NEGRA HO HO HO HO HO!!! Transpiro, ofego e chuto...chuto...peido, chuto, chuto, PUUUMMM... arroto e antes de me vir um refluxo comandado pelo fogo do inferno, o dono da farmácia invade minhas retinas e junto com ele dois obesos policiais empunhando sebosos cacetetes...em minha direção! Como um rosado porco consciente segundos antes do abate, desembesto avenida abaixo e atrás de mim... um rastro de peido e frustração. Corro, corro e quanto mais corro, ofego, transpiro, arroto ,corro e, com a sutileza de uma baleia no oceano, despenco de cara em uma entrada que meus abalados sentidos não identificam...
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Desperto com a frieza do chão invadindo meus sentidos, incomodando meus lábios; ruídos de carros distantes e vida corrida aguçam minha memória e o silêncio contínuo seguido de uma sutil inclinação do pescoço me revelam a imagem de um longo espaço vazio flanqueado por bancos de madeira: estou na Casa do Senhor. Tolhido de qualquer força física, como uma minhoca fugindo do anzol, rastejo ao banco da frente à procura de um obeso e generoso conforto espiritual. Me ajoelho e com as mãos empalmadas encaro A Face na cruz, a cruz em forma de ...T!! Dois zeros piscando !!! ELAAAA!!!!!! Com impulso adrenalínico fujo da Morada Herege e novamente desembesto avenida acima, e em meio a olhares estupefatos e cochicos no pé da orelha (mamãe, o que é iiiiisso?) alcanço a calçada do meu prédio; paro, suspiro, ofego,...turva... BUUUUURRRP...
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Desperto com a sensação de pele tocando pele, levanto o pescoço e a visão de uma gigantesca aranha com garras dominando minha face e sentidos, por um instante petrifica meus globos oculares; pisco os olhos e um impulso sensorial me aremessa em minha fria realidade: a bruxa caquética, acariciando minha mão num gesto de compaixão e solidariedade, me olha nos olhos e percebo que o que eu tomava por uma criatura prestes a me atacar nada mais era que suas rugas e pés de galinha embaçados pelo meu magro (que saudade!) sentido de visão. Retorno o olhar e a bruxa... era a bruxa (nota do editor: saudades da Preta Gil heeeiin?) e o que antes era um carnudo e delicioso lábio agora não passava de um imenso abismo exalante de uma substância vulgarmente conhecida como bafo de bode. Na medida que a minha (velha) nova realidade gradualmente me martelava a cabeça como pesados e descartados sacos de gordura de lipo-aspiração, meus resquícios de vontade e auto-estima me davam o impulso final: me levanto e em retribuição ao meu magro senso de gratidão ela me retorna, num gesto de despedida, com sua costumeira voz de vinil arranhado.
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VÊ SE ANDA PUDIM DE BANHA!!
MAIS RÁPIDO CRIATURA SEBOSA, GORDUROSO FODIDO!!!!!
Subo pateticamente a escada em direção ao meu quarto enquanto vozes pressionam e atormentam meu espírito: o meu magro (novo) antigo eu, agora substituído pelo obeso (antigo) novo (e fodido) eu, com voz cavernosa e palavras afiadas, cava minha futura, larga e obesa sepultura. Entro no meu haré... agora transformado ao seu estado original: sofás furados, paredes cascudas, carpetes mofados e o perfume de bosta humana que exala do vaso atiça meu intestino...mas eu seguuuro. Passado o choque transicional e perfeitamente acomodado a minha (velha) nova realidade, me dirigo ao CRAAASSHHHHH, levanto a cabeça e como um periscópio embriagado vasculho o ex-harém-e-agora-lixão à procura da origem do baru CRASSSSSHHHHH, minha cabeça lateja mas eu procuro, vasculho ..., vidraças, mesas, cerâmicas e espelhos inteiros simbolizam a resposta que não me satisfaz e transmutam em vaporosos mistérios e obesas interrogações: tudo inteiro, inteiro, inteir...
-AAAAAAHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!
Minha cabeça se inflama, arde e explode em convolutas pulsações internas, sinto um líquido quente escorrendo do nariz, passo os dedos e percebo que não passa de uma sensação; cabeça gira, visão turva, continuo procurando, vasculh...
-AAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHH!!!
CRASSSSHHHHHH, CRAAAASSHHHHHHH no inferno da batalha pela sobrevivência e reconquista da realidade absoluta giro involuntariamente o pescoço e me deparo com O Adversário: de cabeça erguida vou de encontro a fera e me estilhaço junto com o espelho, me cubro de vermelho REAL e reconquisto a realidade em sua totalidade: o barulho vinha de dentro: minha mente se estilhaça e meu cérebro se transforma num denso, nojento e gorduroso mingau. No inferno da visão alucinada olho ao redor e enxergo ELA... ELASSSS! Estou cercado de balanças que me intimidam com seus ameaçadores zeros piscantes, me subjugam com olhos enfurecidos e a falsidade de um pisca-pisca de natal.
PISCINA DE SEBO! PÃO DE BANHA!!!
SUPOSITÓRIO DE BALEIA!!!!!!!!
As vozes me atormentam, me perseguem, olho as balanças e agora elas (ou eu?) me direcionam gestos obscenos com línguas de metal e bocas de borracha, me defendo fechando os olhos mas não protego os ouvidos: se são as balanças, minha consciência estilhaçada , meu antigo (novo) eu ou meu novo (antigo) e fodidíssimo eu me recriminando pela minha(antiga) nova existência... estou confuso, o mundo roda,o chão cai, a mente lateja, a consciência... abro os olhos:
80, 95, 110, 130, 145 KG AAAAAHHHHH, avanço num inútil ataque externo a ameaça interna e bato com a cabeça na janela que me arremessa em direção ao chão: caio sentado. Imóvel e pensativo, aos poucos a respiração retorna ao seu ofegante normal. Descanso...descanso... medito...medito... e da periferia da minha mente um impulso me obriga involuntariamente abrir uma sorriso de felicidade: felicidade REAL. Me levanto e firme em meu objetivo em dar fim a minha mórbida realidade, alcanço a calçada.
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Retorno ao quarto com o mesmo sorriso e em minhas mãos um objeto de metal aguarda impaciente o seu uso.
Num suspiro de coragem me apronto, estilhaço todos os espelhos e em um gesto de bravura livro o objeto do papel pardo, ajusto-o, e num último suspiro de infelicidade (prenúncio de felicidades duradouras), coloco os pés na desgastada borracha de uma enferrujada e desregulada balança analógica que me mostra a mentira verdadeira e me arremessa a minha nova (nova) e eternamente feliz realidade: a vida é bela!!!!! BUUUURRRPPPP!!!!!
Nota do editor aos leitores: Tsss, tsss, tsss esse autor é caso perdido... tem que tratar do obeso cérebro num Spa.
FIM