Eus

Sempre fui muito estranho. Fechado em meu mundo.

Minha visão das coisas sempre me pareceram distorcidas, não condizentes com a realidade.

À medida em que o tempo foi passando, fui criando personagens para conviver com o sistema.

Fui o cara que estava sempre com uma palavra de consolo para as horas difíceis dos amigos.

O cara sempre honesto e acima de qualquer suspeita.

O inteligente, o esperto, o sabe tudo.

A pessoa simpática, e às vezes o cara mal educado.

Tudo dependia do ambiente, das circunstâncias. Me tornei muitos e ao mesmo tempo fui ninguém.

Meu estado de espírito mudava cerca de trinta vezes ao dia, ou mais.

Me escondia atrás de meus livros. De minhas ideias, por vezes esdruxulas ou totalmente fora do contexto.

Até que um dia me dei conta que não mais sabia ser eu, se é que soube algum dia.

E aí tudo mudou, para pior.

Me lembro que certa tarde voltando do trabalho, parei o carro numa rua com pouco movimento, desci e continuei a caminhar sem rumo.

Não sei se fechei o carro.

Só sei que caminhei por muito tempo e quando me dei conta notei uma pessoa a meu lado.

Como eu estava de cabeça baixa, a primeira coisa que notei foi seus sapatos, eram de um brilho que eu nunca tinha visto.

E sua roupa também era toda negra.

Ele me acompanhava mas seu olhar era fixo para frente.

Sem me olhar ele me chamou pelo nome, o que achei estranho uma vez que eu nunca o havia visto.

Não te conheço, disse.

Mas eu te conheço desde sempre, ele respondeu.

Senti um frio estranho. Um arrepio.

Quer ser você mesmo? Quer se encontrar?

Ele questionou.

Sim, quero. Respondi.

Mas e os outros? Que será deles? Seus personagens?

Morram todos. Respondi sem pensar.

Tem certeza que quer asssim? Perguntou.

Ele continuava a olhar para frente.

Fiquei sem saber se realmente eu queria isso.

Não, não queria.

Me distraio e quando percebo, ele não estava mais lá.

Quando volto para casa já é bem tarde da noite.

Me jogo na cama e fico lá a olhar para o teto.

De repente vejo o mesmo homem na minha frente.

Ali parado, assustadoramente imóvel.

Olho para ele e digo: Sim eu quero.

Muito bem, ele me diz.

Dessa vez está olhando dentro de meus olhos.

Não sinto medo, não sinto nada.

Você vai ser você outra vez, sem dor, sem personagens, só você.

Me levanto e pego a lâmina afiada que ele trás nas mãos.

E continuo a olhar fixamente para ele.

Sinto o fio gelado da lâmina em meus pulsos e o líquido escorrendo.

Manchando o tapete branco.

Não sinto nada. Vejo todos meus eus indo embora.

Cada um por sua vez.

Apenas eu mesmo ficando ali.

O homem continua ali.

Ele estende a mão para mim.

Sinto que devo ir com ele.

Quando estou saindo do quarto lanço um olhar para minha cama e só vejo eu mesmo.

Ou o que sobrou de mim.

Continuo a caminhar e sinto a escuridão tomando conta de meu quarto.

Apenas eu fico lá.

Apenas meu corpo. Branco e sem vida.

É hora de ir embora.

Paulo Sutto
Enviado por Paulo Sutto em 11/04/2011
Reeditado em 12/04/2011
Código do texto: T2903012
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