Eu Sou o Pianista

Mais uma vez, o bar estava completamente vazio. Eram quase cinco da manhã e eu havia acabado de expulsar Dick Mort, aquele bêbado inveterado, que praticamente vive aqui.

Terry Guts logo se retirou para seu apartamento no andar de cima desta espelunca. Deixou tudo embaixo em alguma ordem, depois se mandou para descansar. Pobre Terry, nunca tirou muito dinheiro dali, apesar de que estava quase sempre com a casa cheia.

Eu e ele somos velhos amigos de estrada. Quando éramos mais jovens, e tínhamos o mundo a nossos pés –ou pelo menos achávamos que tínhamos–, rodamos boa parte dos EUA em nosso velho Chevy Truck, conhecendo tudo e todos que podíamos. Foram tempos difíceis, mas confesso sentir saudades do frescor destes dias, onde não nos preocupávamos com nada a não ser onde passaríamos a próxima noite. Éramos homens livres, sim senhor, isso é o que nós éramos.

Quando as viagens começaram a nos cansar, decidimos nos estabelecer neste pequeno distrito do Dallas. Somos os dois da Califórnia, mas não tínhamos nenhum lugar, nem ninguém a quem pudéssemos voltar.

Vivíamos como podíamos. Nunca chegamos a passar grandes necessidades desde que chegamos. Éramos homens fortes e viris, aos quais trabalho jamais faltou.

Contudo, não foi com a minha força ou a minha virilidade que consegui melhorar a minha situação.

Sempre gostei de ler. Durante nossas andanças, sempre carregava um novo livro comigo, hábito do qual Terry sempre caçoou. Conheci Kafka, Oscar Wilde, Conan Doyle e muito outros, ao mesmo tempo em que conhecia os diversos buracos do território americano.

Quando aqui chegamos, estava há algumas semanas com uma idéia em minha cabeça, sobre a qual escrevi um esboço de romance em uma velha máquina de escrever que comprei ao chegar ao Dallas. Por acaso um dia topei com um homem que trabalhava em uma pequena editora local, e mencionei meu texto. Ele se interessou, leu e levou para aprovação e publicação. O livro foi aprovado com louvor. Disseram que era original e pungente. Um provável sucesso comercial.

E não é que minha história emplacou? Tornou-se um dos livros mais comentados dos últimos tempos.

Pois bem, consegui passar a ganhar minha vida assim.

Escrevi mais dois romances até então, também muito bem recebidos pela crítica e pelo público. Hoje ganho a vida com meus textos, tanto em forma de livros quanto pequenos artigos e crônicas que publico em jornais e revistas país a fora.

Seria de se esperar que o velho Terry ficasse radiante por isso, não?

E acho que ele se esforçou para, mas simplesmente não conseguiu.

É como diz aquela velha canção, “nós odiamos quando nossos amigos se tornam bem sucedidos”. Acho que foi difícil para ele ver o grande sucesso que seu antigo amigo sem rumo havia alcançado.

Ofereci-me para ajudá-lo a abrir um negócio maior, de modo a tentar ele também dar um largo passo rumo a uma vida mais confortável.

Infelizmente, ele nunca deixou que eu fizesse algo assim. Apesar de todos os anos que passaram desde que tínhamos nossos vinte e poucos anos, Terry continua sendo o mesmo carinha orgulhoso que era naquela época.

A maior participação que ele deixou que eu tivesse por aqui desde então, foi ser o pianista das noites de sexta, geralmente as mais movimentadas. Ainda tive de insistir para que não me fosse pago nenhum tipo de cachê. Terry Guts não aceita caridades, ele me disse.

Enquanto faço a parte musical das noites, me esforço para ajudá-lo, pagando rodadas de bebida para os vagabundos que aqui habitam.

Porém, confesso que de uns tempos para cá, o comportamento de Terry tem sido bastante desagradável em relação a mim, e que o único elo afetivo que tenho com ele, vem do passado.

Nunca exibi qualquer soberba, ou gabei-me pelo que consegui com meus livros. Seria algo terrivelmente deplorável fazê-lo a qualquer um, principalmente a um amigo.

Entretanto, aquele idiota insiste em gritar que sou somente o pianista enquanto estiver aqui, e nada mais. Ninguém se importava se as porcarias que eu escrevia estavam no New York Times, ou no San Francisco.

Joanna, minha mulher, insiste em saber por que ainda me sujeito a este tipo de coisa, depois de tanto tempo. Por vezes, eu mesmo me faço esta pergunta. E a resposta, apesar de talvez não ser convincente, é simples e direta: não consigo deixar o velho Terry sofrer sem me preocupar. Não consigo separar este verme insolente do jovem que um dia foi meu melhor amigo, e com quem dividi tantas experiências boas e ruins.

Ou pelo menos não conseguia. Como já disse, estou no meu limite de paciência.

Na noite de sexta-feira passada, enquanto eu teimosamente martelava as notas no piano do bar, ocorreu um dos acontecimentos mais bizarros e amedrontadores que já presenciei.

O horário era praticamente o mesmo de agora, quase cinco horas da manhã. O bar estava, porém, ainda mais vazio, pois nem Dick se encontrava mais. Provavelmente resolveu variar um pouco, e deve ter caído em outro lugar da cidade.

Um fato que eu ainda não mencionei, é que o Terry’s é situado a apenas algumas quadras de um velho cemitério, o mais antigo da cidade. Hoje em dia está um tanto quanto abandonado, como esta parte inteira da cidade parece estar.

Quando o álcool já subiu às mentes dos homens, não raro alguém grita histórias sobre o local. São chamados de mentirosos por outros bêbados, e às vezes alguns insultos e socos são trocados, mas nada demais. Na verdade, até as compras do mês são motivo para isso por aqui.

Sou um homem um tanto quanto cético. Apesar de meu primeiro livro, que me rendeu a guinada de vida, ser sobre um amor quase impossível que acaba se tornando real por força do destino –sim, um grande clichê, mas modestamente, muito bem escrito– não acredito em coisas de algum modo sobrenaturais. A não ser que tenha visto com meus próprios olhos.

Voltando à madrugada de semana passada, estávamos apenas eu e Terry no local naquele horário. Ele havia acabado de arrumar o balcão e preparava-se para subir à sua casa. Estava especialmente de mau humor naquele dia. Passou mais um grande sermão em mim, sobre como eu deveria me colocar em meu lugar enquanto fosse o pianista do bar, ou ele faria questão de que eu não mais aparecesse por lá. Tudo porque um leitor meu levara seus exemplares de meus livros para que eu os autografasse. Aguentei calado, como fiz durante tanto tempo.

Terry então subiu as escadas nos fundos, e foi para seu conjugado. Eu ainda fiquei por lá para tomar mais algumas doses de uísque, uma vez que Joanna não deixa bebida entrar em nossa casa. Como um bom marido, obedeço fielmente.

Desloquei-me do banco do piano para um alto em frente ao balcão, com meu copo e a garrafa. Virei mais uma dose e olhei para fora, onde ainda estava escuro.

Ao fixar meu olhar através da grande fachada de vidro transparente, pensei ter visto alguns pontos prateados, brilhando como mercúrio na escuridão. Normal para quem bebeu um bocado durante as últimas horas. Eu estava com uma das minhas fortes dores de cabeça de bebedeiras e fechei meus olhos, pesados como chumbo, por um instante.

Ao fazer isto, ouvi um barulho. Abri os olhos lentamente, com os cotovelos apoiados no balcão, e enxerguei apenas a rua ainda escura e vazia à minha frente.

Votei a fechá-los. Imediatamente, o mesmo barulho voltou, porém muito mais alto, e facilmente identificável.

Era o som de arranhões em vidro. Soube disto na fração de segundos antes mesmo de abrir meus olhos e me deparar com aquela cena horrenda.

Os pontos prateados brilhantes estavam agora mais perto. E eram acompanhados de corpos maltrapilhos, sujos e pálidos. Corpos de zumbis.

Minha respiração parou e minha espinha gelou. Deixei escapar um gemido–não fui capaz de gritar–, e o copo escorregou de minha mão e se quebrou no chão. Por um momento pensei estar sofrendo um derrame, não consegui esboçar qualquer movimento. Por alto, distingui cinco pares de pequenos círculos cor de prata, olhando para mim através do vidro.

Para minha sorte, as criaturas não se demoraram por ali. Pude vê-las indo embora resmungando, na direção de volta ao cemitério, que ficava a nordeste do bar. Não pude esconder meu alívio quando elas se foram. Neste dia, constatei que não sou tão corajoso como achei que fosse.

Ponderei se deveria ir falar com Terry. Decidi por chamá-lo, e o jeito que fui tratado por ele foi a gota d'água em nossa relação.

Subi e bati em sua porta. Após alguns minutos, ele apareceu e me perguntou secamente o que eu queria, se eu não poderia simplesmente ir para casa e deixá-lo em paz. Ainda assim, insisti em contá-lo o que havia visto.

Leve seu rabo bêbado para longe daqui, ele gritou, assim que terminei minha história. Seu bafo de uísque está tão forte que não acreditaria em você nem se me contasse a maior verdade da vida, quanto mais uma alucinação alcoólica como essa. Suma daqui, seu verme. Você é só o pianista.

Terry então bateu a porta, e me deixou sozinho no corredor. Senti um ódio tão profundo daquele imbecil, que me contive para não arrombar a porta e arrebentá-lo. Dei as costas e voltei para casa, furioso, decidido a nunca mais tornar a vê-lo.

Estacionei o carro na garagem, e entrei silenciosamente me casa. Joanna ainda estava dormindo, e não queria acordá-la. Deitei-me ao lado dela e dormi, tentando esquecer o que havia visto. Antes, porém, fui ao banheiro e vomitei algumas vezes. Não comentei sobre os zumbis com ninguém, e julgo não ter aparentado preocupação ou algo parecido durante o fim de semana, e na semana que se sucedeu.

Escrevi meus artigos como sempre, e trabalhei no meu novo romance, de título provisório “A caçada”. É sobre dois jovens exploradores, que percorrem a Europa em busca de alguma coisa, que ainda não sei o que será. Provavelmente, agora acharei um espaço para criaturas ressurgidas da morte.

Logo, já era quinta-feira.

Apenas por curiosidade, passei pelo bar de Terry à noite. Nenhum sinal de mortos-vivos ou qualquer coisa fora do normal. Ainda estava cedo em relação ao horário em que os zumbis haviam aparecido, mas eu não esperaria até o fim da madrugada. Além disso, tinha certeza de que não era o dia deles voltarem.

Quinta-feira é dia de música country, e um sujeito cantava algumas velhas canções ao som de seu violão. Fiquei observando a distância, de dentro do meu carro, por alguns minutos, e então fui para casa. Na noite seguinte eu voltaria, e sabia que não voltaria sozinho.

Cheguei então no dia seguinte por voltas das seis. Terry ainda não havia descido, e me servi de uísque. É, eu gosto muito de uísque, como já deve ter ficado claro. Logo depois, meu velho amigo e os primeiros fregueses apareceram. Os de sempre. Mas para mim, não importava nenhum deles. Estava convicto de que em algum momento entre aquele e a manhã posterior, teria a visão mais fascinante e inacreditável de minha vida.

Não prestei qualquer atenção ao que Terry ou qualquer outro me falou durante a noite. Meus sentimentos por aquele que um dia fora meu mais leal companheiro, já estavam cimentados por tudo o que sofri partindo dele nos últimos anos. Era uma estrada sem volta, por mais que eu tenha demorado a admitir.

Tudo ocorreu como qualquer outra sexta-feira. Por volta das quatro, todos haviam deixado o recinto. A madrugada fria e escura urgia lá fora, e minha adrenalina substituía o sono que geralmente me apanhava nesses momentos. Como já mencionei, além de mim, sentado ao balcão, e Terry, arrumando o salão, Dick Mort era o único que insistia em não deixar o local. Como sempre, estava completamente embriagado, e meu deu trabalho tirá-lo de lá. Uma vez fora do bar, tomou seu rumo. Provavelmente o errado, mas ao menos estava fora de vista, e não havia partido na direção do velho cemitério.

Durante meia hora, tudo permaneceu como estava. Terry, então, subiu a seu lar naquele local deprimente.

"Leve seu rabo preguiçoso daqui, pianista", ele gritou para mim enquanto virava as costas para se dirigir à escada.

Não me dei o trabalho de responder, ou sequer de olhar para trás. Estava completamente sóbrio, a não ser por pequenas doses do uísque ao longo da noite. Sóbrio o suficiente para logo depois, ouvir o som distante de passos, trazido pelo vento. Não passos de uma ou duas pessoas, mas certamente de um batalhão, que embora a uma grande distância, já se faz audível. Talvez audível somente para quem os estivesse esperando. E eu estava. Um sorriso de canto de boca tocou meus lábios.

Minha respiração acelerou, assim como as batidas de meu coração. A cada minuto o som ainda fraco, mas identificável, de um exército se aproximando ficava mais próximo. Por volta de dez minutos depois, aquelas passadas macias estavam tão perto a ponto de seus donos projetarem sombras visíveis para mim, sob a luz da noite.

Logo depois, todas as minhas intuições foram confirmadas. Lá estavam eles, de volta, como havia de ser. Dei-me conta de que era madrugada de sexta-feira treze, para sábado. Não sou supersticioso, mas foi um fato interessante de se tomar nota.

Pouco a pouco, toda a frente do bar estava cercada. Os olhos prateados agora facilmente alcançavam a casa das dezenas. A fraca iluminação dos postes de luz era suficiente para me deixar ver as expressões horrendas nas faces de cada um daqueles seres. Suas peles enrugadas e acinzentadas eram uma visão simplesmente feia e inacreditável. Minha excitação lentamente se transformava em medo, mas mantive-me firme. Afinal, por algum motivo, não era o que eu havia esperado encontrar? Talvez esta nova sensação me rendesse bons escritos, pensei. É, mas primeiro preciso garantir que sairei daqui.

Ainda olhando para fora através da fachada de vidro, reparei algo que ainda não havia observado. Boa parte dos mortos-vivos carregava toras e pedaços de pau, alguns em chamas, e dirigiam-se para o bar brandindo-os aos céus com seus murmúrios baixos, mas incessantes. Três deles começaram a esmurrar a porta de vidro que começou a rachar, enquanto os outros aglomeravam-se em torno do local. A situação parecia estar ficando fora de controle. Levantei-me depressa e corri em direção à porta dos fundos, onde havia estacionado meu carro. Do lado de fora, tomei um grande susto. Um bando dos zumbis estava agora se reunindo para cercar também os lados e os fundos do lugar. Logo estaria tudo tomado. Pela primeira vez, também, vi aquelas criaturas sem nada me separando delas. Espero ter sido a última. Além da aparência repugnante, o cheiro era terrível.

Por sorte, ainda não haviam chegado ao meu carro. Continuei correndo até alcançá-lo e dirigi até uma distância segura.

Quanto a Terry, tenho de confessar que logo antes de sair pela porta dos fundos, o ouvi gritar lá de cima "Mas que raios de confusão é essa? Não me faça descer, seu idiota!". Senti assim mesmo algum impulso em ajudá-lo, mas não durou muito.

Estou agora a assistir o motim de dentro do meu Ford. Pelo bar ficar em uma área afastada da cidade, não há muitas casas por perto. Na verdade, não há quase nada em um raio de cem metros, exceto por um pequeno comércio, obviamente fechado a essa hora.

No entanto, acredito que não irá demorar até que se criei uma enorme confusão de bombeiros e pessoas, porque o local está completamente em chamas e repleto de zumbis. Não é algo que se vê todo dia.

Deve haver alguma razão para um ataque desses, e é algo que vou pesquisar. Maldição, magia negra? Estou me sentindo inspirado, para falar a verdade. Vou procurar saber mais sobre este lado deste pequeno distrito.

Confesso que há alguns minutos, ouvi gritos. Sem dúvidas eram humanos, e sem dúvidas também, poderiam vir de apenas uma pessoa, agora a razoáveis cento e cinqüenta metros de distância. Alguém que jamais sairá de lá com vida.

Acabei de ligar o Ford. Vou para casa, e talvez mais tarde me arrependa do que fiz, ou, na verdade, deixei de fazer.

Mas, ora, não tenho por obrigação avisar nada para ninguém. Afinal, quando no bar, eu era só o pianista. E nada mais.

Como eu queria um uísque com bastante gelo, agora mesmo!

Dylan Jokerman
Enviado por Dylan Jokerman em 06/04/2011
Reeditado em 14/12/2011
Código do texto: T2893454
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