A geladeira

Giuliano Pagano pertencia a uma família de rechonchudos criadores de gado de corte. Sua vida se desenrolara diante dos olhos imensos de bois e vacas destinados à morte impiedosa pelas mãos de matadores de olhos minúsculos. E de criança cruel e gorda, ele se tornou rapidamente um adulto cruel e gordo demais até para os padrões aos quais os familiares haviam se acostumado desde os primórdios da comercialização da boa carne embalada a vácuo.

Giuliano tinha seu próprio matadouro, local também onde mantinha um santuário de ídolos eviscerados que balançavam suavemente, dependurados em ganchos de aço inoxidável. Era uma imensa geladeira, onde, de vez em quando, ele se retirava por uns instantes a fim de orar ao deus do churrasco, que vinha agraciando-o com lucros exorbitantes. Ele mesmo comia uma churrascada admirável todos os fins de semana. Suas tripas andam fodidas até a alma, diziam os empregados, sem soltar nem meia risada, pois não era engraçado quando a alma da pessoa se estragava daquele jeito.

O homem podia estar nadando na riqueza proveniente do apetite voraz de milhares de consumidores da carne que saía do seu abatedouro, mas ele não gozava do respeito de ninguém. Muito pelo contrário: quando se começa a apreciar a companhia de carcaças bovinas congeladas, é sinal de que as coisas vão muito mal.

No caso de Giuliano, no entanto, elas não piorariam muito mais. A última vez que ele entrou na geladeira para refletir foi quando sua noiva, uma não tão cruel, tampouco tão gorda, desistiu de vez de colocar uma bela aliança dourada em dedo tão inchado de pessoa tão desprezível como ele, que dirá para o resto da vida, como manda o deus dos laços matrimoniais.

Altas horas da noite e quando todo o resto parece desabar, o único porto seguro geralmente é a fé. Giuliano tinha fé em montes de potenciais picanhas, maminhas e filés mignon, talvez por isso, tudo tenha terminado do jeito que terminou.

Ele estava fora de si quando chegou à porta da geladeira. Ignorou todos os protocolos de segurança e de higiene e entrou no compartimento gélido como estava. Havia ruminado durante horas, em completo desgosto, o fim de todas as suas esperanças de interação razoável com outro ser humano. E ao pensar por que ninguém podia ser como uma simples e estúpida vaca, tão pronta a satisfazer as vontades básicas de outrem? De outrem que fosse como ele? Uma luz brilhou em sua mente e ele se lembrou de que, afinal de contas, tinha tudo de que precisava ao seu alcance, sempre tivera e não conseguia atinar como fora burro ao ponto de se esquecer.

A fim de apreciar cada segundo da companhia de que dispunha, trancou a porta. Ao contemplar os cadáveres animais congelados, sentiu-se mais leve. Chegou a rir e ao fazer isso demonstrou quão estragada sua alma se encontrava.

Ele tocou em um jovem e esfolado boi, que o observava com olhos vidrados, gotas de sangue congelado no piso de azulejo branco. Giuliano tocou-o com uma das mãos, vestígios de sorriso no rosto. Não parecia, mas estava sentindo frio. Carne sob seus dedos. Ela pulsou um dia, foi quente e cheia de sangue corrente. Ele havia feito com que ela parasse de fazer essas coisas inúteis. Indiretamente, claro, afinal, nunca participara das execuções que aconteciam diariamente em instalações não muito distantes de onde se encontrava no momento.

É. Ele gostava muito de ficar ali. O frio o incomodava, era verdade. Se viesse com roupas mais quentes poderia permanecer ali o tempo que quisesse. Fazer novos planos para o futuro. Refletir a respeito de formas diversas de aumentar os rendimentos da empresa, criar uma cadeia de frigoríficos pelo país!

Giuliano riu, dessa vez abertamente. Mas apenas beiços paralisados pelo gelo e pela morte acompanharam-no numa muda gargalhada.

No momento em que decidiu voltar para casa, sentindo-se calmo, tão diferente de como se encontrava quando chegara ali, percebeu que sua mão, que acariciava o boi esfolado, encontrava-se pregada à superfície das costelas do bicho. Estava entorpecida e começava a ganhar uma tonalidade arroxeada em decorrência da exposição ao frio intenso.

Giuliano praguejou e deu um puxão, libertando a mão e perdendo vários centímetros quadrados de pele da palma ao fazer isso. O boi balançou no gancho, produzindo um ruído metálico de fazer arrepiar os pêlos do braço. E, numa falta de jeito típica de um hipopótamo, Giuliano escorregou com os calçados de couro no piso congelado e caiu de costas. O peso de seus quase duzentos quilos de pura banha, mais a implicação da força da gravidade, foram o bastante para fraturar-lhe a coluna vertebral, condenando-o a uma permanente paralisia dos membros inferiores.

Só que Giuliano não viveria para descobrir essa tragédia.

Ele congelaria até a morte em seu santuário, sob os olhares vazios de uma dezena de estúpidas e mortas vacas peladas.

Em algum lugar no Além, havia um pasto cheio de bezerrinhos mugindo felizes da vida, mas algo muito diferente aguardava Giuliano pelas próximas longas e frias horas.

Andhromeda
Enviado por Andhromeda em 03/04/2011
Reeditado em 05/04/2011
Código do texto: T2887057
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