Vida Vazia
- O dia finalmente acabou! - diz muito cansada Natália, se jogando em uma cadeira de sua diminuta sala-cozinha.
Passou a manhã toda trabalhando em uma escola estadual, em pé, aquentando adolescentes ensandecidos, que praticamente a ignoravam. A tarde após um breve almoço, resumido a um sanduíche que comera no trem a caminho de seu outro emprego, uma loja de roupas populares, trabalhou também em pé, atendendo até as nove da noite clientes que nada mais queriam do que “Dar uma olhada” e nunca se dirigiam a ela diretamente. Essa era a parte pior do seu dia, baixar sapatos e levar roupas daqui para ali, sem que as clientes comprassem nada que pagasse o esforço.
- Melhor que ficar desempregada e passar fome! - comenta para si mesma em voz alta. Com o estresse de tanto trabalho não tinha tempo para sair e se divertir um pouco, logo falava sozinha para simular companhia na sua vida vazia e triste.
As suas pernas latejavam quando permanecia sentada na sua cadeira de segunda mão, que compunha o conjunto de mesa da “cozinha”. Pensava que precisava de uma mudança logo, ou iria enlouquecer. Sair um pouco, divertir-se com algum amigo ou amiga, conhecido... Lembrou-se que não tinha ninguém que se encaixava nesses termos, sentiu-se muito sozinha, tanto quanto se pode sentir.
Saindo do corredor, o seu único “amigo”, não humano, olhando com seus olhos de gato e vindo se esfregar nas suas pernas. Miando alto, fez com que Natália pensasse ter ouvido ele dizer: Como foi seu dia? - numa voz arrastada de gato. “Voz de gato? Esse bicho não fala!” a mulher fala para seu animalzinho de estimação.
- Estou maluca? Ou muito cansada? - pergunta para Niu, o gato, esse olha para dona sem entender.
- Você diria muito cansada, não é Niu? - e afaga o pelo macio do seu único amigo.
Levanta-se e segue para o banheiro, a fim de tomar um banho. Quando termina de tirar a marca do dia de trabalho de seu corpo, veste uma roupa nova que a muito queria estrear. Uma calça Jean com brilhos no cós, uma blusa leve azul com uma gola redonda e botas pretas de cano curto.
- Vou sair - explica para Niu - O que? Não me olha com essa cara?
O gato mia novamente, e dá a impressão de dizer um “naum” bem arrastado. Natália olha fixamente para o bicho e pergunta irritada:
- Tu disse “naum” pra mim ou fiquei maluca? - e o gato olha com o mesma expressão confusa de um felino tentando entender um humano, a mulher espanta o gato para a sala-cozinha e coloca um pouco de ração na tigela vazia.
Há muito tempo não saia de casa para passear. Sabia que era perigoso sair sozinha pelas ruas de seu bairro, mas não tinha muita opção. Os seus colegas de trabalho simplesmente a ignoravam, como se não existisse, era realmente muito incomodo ser tratada como um fantasma.
Andando a esmo durante um bom tempo, Natália pensa, em qual foi o dia ou mês exato que saiu para tomar uma cerveja com alguém ou passear com uma outra pessoa. Estranho não se lembrar, tinha a recordação de alguém que gostava muito dela, seu ser seu fiel gato. Alguém, mas quem era essa pessoa?
Enquanto pensava nisso distraída, um assalto ocorria bem perto da rua em que caminhava. Um homem tentava em um cabo de guerra com o ladrão, para impedir que esse levasse sua mochila, o outro com roupas muito sujas e aparência esquelética o ameaçava de morte aos gritos mesmo sem nenhuma arma. Natália observa a cena chocada e sem pensar muito corre para tentar ajudar. Agarra a cabeça do ladrão e finca as unhas no rosto dele, que solta a mochila e cai no chão gritando.
- O que foi isso? - pergunta o rapaz que estava sendo assaltado e chuta o outro no chão que com as mãos no rosto gritava enlouquecido.
- Seu drogado! Está tendo uma viagem ruim? - e sai de perto do ladrão que agora chorava no chão da calçada. Passa do lado de Natália, que vira para ele indignada e diz:
- Não vai nem agradecer? Acho que até quebrei as unhas! - e olha para as mãos, intactas, segue o rapaz que se distanciava pela calçada sem olhar para trás. A mulher o toca no ombro com força tentando vira-lo e ele se encolhe em uma parede, sentindo um frio repentino e apressa o passo.
Natália o deixa ir e fica olhando as próprias mãos assustada, tinham atravessado o rapaz. “O que está acontecendo?” pensa confusa e volta correndo para perto do ladrão que escorado numa parede tentava aquecer os braços esfregando com as mãos. O rosto do ladrão estava sem nenhum arranhão, nada, como se a luta não tivesse nenhum efeito sobre ele. No mesmo instante um gato preto de rua muito surrado, passa olhando para ela e diz na mesma voz arrastada de Niu:
- Volte para casa - segue caminho até uma lata de lixo com o saco rasgado e enfia o focinho procurando restos.
Agora em pânico Natália corre para sua casa e sobe os degraus da entrada, sem perceber atravessa a porta como se fosse nada. Como se ela não existisse. E pensa em quem não existe ela mesma ou a porta? Ao entrar dessa forma na casa percebe seu gato a olhá-la e o observa com atenção apurando os ouvidos:
- Vamos ter que ir embora - diz em um miado estranho alongando as palavras e completa para o espanto da mulher - Alguém comprou a casa, vou ficar sem larrr - e ronrona na última palavra atravessando as canelas de Natália.
- Niu,tu fala? E como assim comprou a casa? Ela é minha eu moro aqui desde... - não consegue lembrar-se há quanto tempo vivia naquele lugar, o que era tão estranho, também não lembrava direito de sua vida sem ser os dois trabalhos e a casa.
No dia seguinte dentro da sala dos professores, na escola em que “trabalhava”, Natália tenta sem sucesso chamar atenção de seus colegas. Gritava alto, tentava empurrá-los, batia neles e ninguém sentia nada. Somente comentaram do frio naquela sala e um dos professores desliga o ar-condicionado. Alguém comenta no grupo parecendo muito triste:
- Nesse instante, me lembrei de alguém que sinto muita falta - diz Cátia uma das professoras - Lembram da Natália, era tão dedicada ao trabalho e muito minha amiga.
Todos na sala concordam que por algum motivo se lembram da colega que havia morrido a caminho do trabalho vítima de um assalto, como se ela ainda estivesse lá, indo todos os dias dar aulas e almoçar com o grupo de professores. O silêncio permanece na sala por um bom tempo, então todos continuam suas vidas um tanto tristes pela perda da amiga.
Natália aparece de repente em sua casa, abalada com o fato de estar morta e não perceber nada durante tanto tempo. Niu seu gato fiel a olha triste e diz miando:
- Vamos embora, hoje os novos donos vem morar aqui - e se esgueira pela janela saltando para a rua.
A mulher fantasma o segue muito triste por perder sua vida e alguns gatos se juntam a procissão. Andam um bom trecho até que Natália se dissolve no ar como fumaça e Niu mia um grito muito desolador e deprimente expressando a perda de sua única amiga.