Não tenha medo, querida...

Pelo quarto entra a luz ofuscante da lua cheia, uma lua tão grande e brilhante que chega a ser absurda. A senhora Maria Haziel lembra-se que é tempo em que ocorre o plenilúnio duas vezes no mesmo ano. Agora em janeiro e também em março – uma incidência só verificada a cada dezenove anos. Quantas vezes em sua longuíssima vida já vira este fenômeno? O ventinho que acompanha a luz lunar balança docemente a cortina diáfana da janela, é um brisa muito fresca, suave, perfumada pelo cheiro agreste de alguma chuva longínqua.
Vivera muito, muito mais do que jamais sonhou, afirma para si, e agora, no leito de agonizante, fica a olhar logo ali, sentado na cadeira de visitas, um velho de idade indefinível, longas barbas de um branco rútilo, o amassado chapéu de palha enterrado na cabeça até as orelhas, um paletó de linho azul rebrilhando de antiguidade, a camisa xadrez nas cores verde e vermelho, fechada no colarinho; o cinto artesanal de couro apertando umas calças da cor cinza e os pés estão desnudos, bem, na verdade não são pés, mas cascos de bode. O velho é tão grande que mal cabe na cadeira, assim a posição tão desconfortável parece levemente ridícula e se Maria Haziel pudesse falar, certamente ririam de alguma coisa espirituosa. Gostaria de lhe dirigir a palavra, mas o tubo atravessando a traqueia é um empecilho. O velho faz com a mão imensa um gesto de pouco caso e Maria Haziel compreende que estão mentalmente conectados.
Aonde já nos vimos? pergunta. Os olhos antigos do velho senhor sorriem, plácidos.
Logo se lembrará, diz ele. A frase que Maria Haziel capta cerebralmente é suave como o trinar de corruíras. Vem-lhe ao peito um aquecimento de ternura perdida no tempo.
Já sei! Tolstoi!
Na primeira vez que nos vimos, eu ainda não era Tolstoi, lembra-se?
Maria Haziel pisca os olhos como que para apreender as lembranças do outrora vadiando por sua memória.
Sim... na primeira vez eu o chamei de Bode Velho. Tinha então seis anos.
Seis anos, concorda o velho, você ia caindo num poço.
É verdade. Eu perseguia borboletas. Não... apenas uma, uma borboleta amarela.
Então todas as lembranças brotam à mente de Maria Haziel de modo muito delicado. Era Natal. Sob o pinheirinho, entre tantos presentes para si, estava uma rede para se pegar borboletas. Os pais e o restante dos parentes reunidos na fazenda ainda dormiam, encharcados de bebida, empanturrados de comida, e lá fora o dia se fazia majestoso, um sol de indizíveis cintilações mágicas. Devia ter caído alguma breve e torrencial chuva durante a noite, porque, no quintal, além da varanda, poças minúsculas se formavam no chão de terra batida e, nelas, centenas de borboletas estavam suspensas em bailados. Maria Haziel muniu-se da rede e saiu a correr atrás daquelas maravilhas – então lhe atraiu especial atenção uma borboleta enorme, do tamanho de uma mão adulta espalmada, de um amarelo-dourado, e veio o desejo de possuí-la. Fez-se assim uma brincadeira de pega-esconde: entretida na diversão, Maria Haziel cada vez mais se afastava da casa; atravessou um córrego florido de miosótis selvagens e libélulas multicoloridas, ganhou o pasto, passou por uma cabana abandonada e foi então que a borboleta enfiou-se por um poço antigo, nas imediações da velha habitação. Maria Haziel debruçou-se no punteal para olhar as imensidões do fundo e seu corpo minúsculo começou a deslizar inapelavelmente para a escuridão abissal. Antes de despencar para as funduras, viu-se segura pelos pés e recolocada em segurança junto à borda. A borboleta alçou-se do esconderijo e ganhou as imensidões verdes do campo, fundiu-se no plastificado azul do céu. Maria Haziel começou a chorar, mais lamentando a perda da rede e o desaparecimento da borboleta que propriamente de medo ou susto. Aquele homem incrivelmente grande, de longas barbas brancas, chapéu de palha e cascos fendidos acariciou-lhe os louros cabelos emplastados de suor, limpou-lhe o vestidinho da poeira dos tijolos carcomidos pela ação do tempo.
Vou lhe mostrar umas coisas mais bonitas que a borboleta, disse o velho, estendeu o dedo anular, grosso, nodoso, e nele Maria Haziel enlaçou a mão pequenina. Puseram-se a caminhar, andaram por longo tempo sem que ela sentisse o menor sinal de cansaço, pararam junto a uma fonte brotando numa elevação coberta de arbustos.
Veja, disse ele. Do meio das águas cristalinas surgiam alguns diabinhos vermelhos com rendadas asas de morcego, numa dança pululante, e logo após, juntaram-se a eles alguns anjos, uns negros, outros azuis e outros ainda cor-de-rosa. Começaram a brincar de roda e logo todo o ar se fez música. Ficaram muito tempo observando os pequeninos seres fazendo evoluções, mergulhando nas águas, soltando risadas pueris.
Maria Haziel sorri sem ao menos sentir a ridícula dor dos lábios emurchecidos e gretados pela febre – são tão vívidas e deliciosas tais lembranças! Quando voltaram para casa, já então os familiares a procuravam afoitamente pelas redondezas. Ouviu reprimendas de todos – ninguém prestou atenção ao velho ao seu lado e Maria Haziel absorveu naquele instante a nebulosa e transcendental consciência de que só ela era capaz de vê-lo. Quando quiseram saber por onde andara, limitara-se a responder que estivera passeando com o Bode Velho.
Você resolveu me chamar de Tolstoi quando tinha dezenove anos, recorda-se? diz o velho. Maria Haziel fecha os olhos e deixa que as lembranças inundem-lhe o coração.
Com uma determinação audaz para a época, fora para São Paulo, onde acabou tornando-se secretária de seu velho tio-avô. Então conheceu Odulfo. Sua primeira paixão madura, profunda, tresloucada – assim pensava na ocasião. Lembra-se que ficava horas e horas se enfeitando em frente ao espelho, meticulosa na maquilagem, angustiada diante dos vestidos que deveria usar – o amante elogiaria? –, vaidosa por ser dez mil vezes mais bonita que Helena, a esposa. Pelo menos era isso que Odulfo dizia: Helena não passava de uma mulher muito gasta em seus quarenta anos, ranzinza, amargurada, sinônimo do desleixo e na cama uma pedra de gelo. Ele, Odulfo, merecia a tortura de conviver com tal criatura? Odulfo era esbelto, musculoso, elegante, os cabelos grisalhos nas têmporas dando-lhe um ar de responsabilidade, auto-suficiência, segurança e autoridade. O protótipo do vencedor. Tanto mal Odulfo falou da esposa que certo dia Maria Haziel resolveu conhecê-la. Por que fizera tal coisa? Mais tarde teve que admitir que seus objetivos eram os mais torpes, mesquinhos, desumanos: queria simplesmente sentir a íntima satisfação de massacrar Helena, humilhá-la exibindo-se com todo o seu esplendor tão decantado pelo amante.
Naquela ocasião eu merecia morrer, diz Maria Haziel, os olhos fechados, vendo perfeitamente o velho homem, sentado na cadeira.
Absolutamente, discorda o ancião, por que pensa assim?
Eu nutria por Helena os sentimentos mais baixos, mais abjetos.
Você se acreditava apaixonada.
Isso não é desculpa, retruca Maria Haziel.
O velho sorri.
Na verdade, você estava terrivelmente insegura. Recorda-se de como chegou à casa de Helena?
Maria Haziel deixa um sorriso compassivo bailar em seus lábios murchos, descoloridos. Odulfo naqueles dias estaria viajando a negócio. Às sete da noite Maria Haziel tomara a resolução de encarar a rival. Esmerou-se na pintura, colocou seu mais lindo vestido, tomou um táxi – carro de aluguel, diziam – e as nove chegou à residência de Helena. O primeiro impacto foi a luxuosidade da casa. Amplo jardim, colunas imensas sustentando a cobertura do terraço, até mesmo uma estátua equestre de Becheret a destacar-se solitariamente entre sebes e relvados. Foi tomada pelo pânico. Retirou da bolsa o pedaço de papel contendo o endereço conseguido na Casa Exportadora de Café, da qual Odulfo era um dos sócios. Não havia dúvidas, era ali. Desceu, pagou a condução. Ficou plantada junto ao portão por um momento eterno até que um criado veio perguntar-lhe o que diabos afinal ela queria. Desejava ver a madame. A quem devo anunciar? quis saber o sujeito. Maria Haziel respirou fundo, informasse que era a outra, a amante de Odulfo. O homem, atônito, levou o estranho recado. Voltou. Foi introduzida na sala da casa e ali deixada a sós, desoladamente sozinha em meio àquele luxo nunca visto. Sentiu-se um caramujinho rastejando em um orquidário. Mesmo que Helena fosse uma bruxa, como Odulfo a descrevia, o fato de possuir uma residência tão imponente demonstrava uma personalidade esbanjando refinamentos.
Pela escada em caracol ligando o primeiro ao segundo andar desceu, lenta e aristocraticamente, a imaginada gasta, desleixada e frígida Helena. Não, não devia ter mais de trinta e cinco anos. Era de um moreno suave, cabelos longos e corpo que seria naturalmente curvilíneo, caso não se apresentasse inchado pela gravidez de, pelo menos, sete meses.
Sente-se, disse Helena. Maria Haziel acomodou-se na borda do canapé. Estava trêmula de raiva, emoção, amargura e vergonha. Por todo o corpo o sangue fora substituído pelo ácido da revolta. Revolta por sua ingenuidade, por sua audácia, por seu credo às mentiras do amante.
Não quis tomar o drinque oferecido e, mesmo esforçando-se ao máximo para não ouvir, engoliu o fel das verdades nascendo dos lábios de Helena. Ela, Maria Haziel, não era a primeira a disputar o direito de ficar com Odulfo. Bem, ela, Helena, sempre estivera disposta a abrir mão do marido.
Não vou e nem quero lutar com você, garota, disse Helena. Se deseja o Odulfo para si, pois não, faça bom proveito. Mas você é muito novinha, portanto vou dizer-lhe algumas coisas e pouco me importa se você acreditar ou não. Odulfo continuará usando você até enjoar e depois a jogará às traças com um piparote de repugnância, o desprezível não passa de um Napoleãozinho infantil, apesar de toda aquela pompa de homem altamente respeitável. É egoísta, mesquinho, vaidoso e hipócrita. Você é mais uma entre tantas e não será a última. Sei exatamente o que ele falou sobre mim para você, quer ouvir? – E repetiu, como se fosse o próprio Odulfo, todas as conversas do amante vilipendiando a esposa, repetiu tintim por tintim todas as artimanhas e ofensas de Odulfo. Maria Haziel estava aturdida, nauseada, sentia-se mergulhada num mundo de faz-de-conta terrível. Uma velha, talvez babá ou governanta, como que representação da realidade, surgiu na sala arrastando pelas mãos um casalzinho de gêmeos de uns três anos, chorosos.
Hora de dormir e ponto final, dizia a velha. Sorriu para Helena, curvou a cabeça cumprimentando Maria Haziel e deu uma ordem peremptória às crianças para que cessassem de choramingar. Enveredaram-se por uma porta misteriosa.
Aposto que, além de frígida, ele não cansou de dizer que eu era estéril como o deserto do Saara, ouviu Helena dizer, mordaz. Tão fortes eram os abalos emocionais que Maria Haziel aceitou agradecida o copo com água e açúcar trazido por uma empregada. Bebeu, sem se despedir saiu da casa, carregando na alma o peso brutal das decepções, a dor multifacetada em cacos de sentimentos corroídos... e ao ganhar a rua sentiu-se desfalecer. Apoiou-se no muro até a vertigem passar. Já não acreditava mais em nada e perguntas inúteis e milenares tomavam-lhe o cérebro – qual o sentido da vida, o que fazia neste mundo, por qual razão, com que objetivo? Caminhou por longo tempo dentro da noite, o cérebro fervendo, a angústia exaurindo-a, o desânimo mastigando-lhe as entranhas. Topou com um empório ainda aberto àquelas horas, entrou, comprou uma lata de raticida granulado. Continuou a caminhar no âmago da noite e as lágrimas por fim correram céleres pelas faces; entrou num bar, audaz como uma prostituta, e sob os olhares curiosos dos poucos fregueses pediu conhaque – bebeu uma, duas, várias doses. Um homem sentou-se ao seu lado no balcão, disse gracinhas a respeito das vicissitudes das mulheres da vida, deu-lhe o lenço para que limpasse o rosto borrado de maquilagem, ofereceu-se para confortá-la, acabou desistindo da conquista, decepcionado com o silêncio marmóreo daquela mulher esburacada pela amargura. Maria Haziel comprou um litro de vodca, meteu-o na bolsa, acertou as contas e saiu.
Andou a esmo pela noite fúnebre, sem se aperceber do gelado vento noturno, sem temor de um assalto, de maníacos sexuais, dos ancestrais demônios da escuridão. Por fim veio o cansaço, um peso de carvalho nas pernas, nos braços, na cabeça. Ao encontrar uma pracinha esquálida, mergulhada em luzes mortiças e tendo como vigilante apenas uma velha paineira em cujo tronco convidava-a um sujo banco de granito, sentou-se. Abriu o litro de bebida e deu um gole generoso. Então viu que tinha companhia: sentado ao seu lado, um velho com amarrotado chapéu de palha, longas barbas brancas e roupas surradas – os pés estavam escondidos debaixo do banco. Veio-lhe a lembrança uma foto vista não se lembrava de onde de Leon Tolstoi – uma das últimas imagens do escritor russo.
Quer um gole, Tolstoi? disse, oferecendo o litro de vodca.
O homem fez sinal negativo com a cabeça.
Não, obrigado. Li seu livro de contos, Maria Haziel.
Me conhece? indagou ela, surpresa, apesar da embriaguez.
Claro.
Pois eu não o conheço.
Conhece sim.
Ora, vá se danar! explodiu Maria Haziel. Deu mais um grande gole, mamando avidamente no gargalo. Quis permanecer naquele silêncio emburrado, mas uma curiosidade mórbida começou a lhe atazanar. Havia publicado um livro, às próprias expensas, há cerca de seis meses. Editara mil exemplares, conseguira vender oitenta e cinco. Exatamente oitenta e cinco. Distribuíra gratuitamente cerca de quarenta volumes entre conhecidos, o restante ainda estava na tipografia, para desespero do proprietário.
Onde comprou o livro? quis saber.
Em lugar nenhum. A bem da verdade, vi você escrevê-lo.
Maria Haziel sorriu. O velho era doido de pedra.
E o que o senhor achou? É uma obra-prima?
O velho abanou a cabeça.
É muito ruim. Com o tempo você escreverá melhor.
Maria Haziel levantou-se, cambaleante.
Ora, é isso que acontece quando damos confiança a mendigos!
Jogou o litro de vodca no meio do maltratado gramado e pôs-se a caminhar. Já não sentia cansaço, sentia-se, isso sim, possuída de uma fúria danada. Insultada por um mendigo! Curiosamente, tinha a sensação de apoiar-se em alguém para não cair de bêbada. O mais estranho ainda foi achar um ponto de carros de aluguel dois quarteirões além da pracinha. Quando chegou a casa, conseguiu subir a escada da pensão, abrir a porta do quartinho – sempre apoiando-se na sensação de uma presença. Lançou-se na cama com o firme propósito de tornar-se a maior escritora do País. O raticida para o suicídio ficou esquecido na bolsa.
Ah, a juventude... diz Maria Haziel, vem aqui, Tolstoi, segura a minha mão...
O velho levanta-se da cadeira e vai sentar-se na borda da cama. Segura a mão de Maria Haziel entre as suas.
Foi você quem abriu a janela? ela indaga.
Sim, a noite está muito bonita, calma, amiga...
Maria Haziel dá um longo suspiro.
Por que nunca mais nos encontramos, depois daquela noite?
Mas a gente se encontrou, Maria Haziel... Só que você não podia mais me ver. Lembra-se de quando tinha quarenta e cinco anos e quase foi morta por seu amante de dezenove com um tiro? Pois então. Eu desviei a mão que empunhava o revólver...
No duro? Eu merecia o tiro. Brinquei com os sentimentos do garoto, como outrora Odulfo fizera comigo...
Do mesmo jeito, querida. Mas fiz aquilo não só por você, mas também pelo rapaz. Um crime por causa de uma paixão juvenil custaria uma distorção violentíssima no destino dele. Hoje ele é um velho respeitável, muito feliz com o bando de netos.
Maria Haziel respira profundamente, cordata.
Ainda não compreendo por que não pude mais te ver, Tolstoi.
Você compreende sim, querida.
É... eu compreendo... Está aqui para me ajudar na passagem?
Isso mesmo.
Estou com tanto medo, Tolstoi...
Você cumpriu com eficiência seus desígnios aqui na terra. Não tenha medo, querida...
Lá fora a lua começa a crescer no céu muito estrelado. Fica do tamanho de uma roda de trator, maior que a tenda de um circo. Vai se espremendo no quadrilátero da janela.
Ela vai nos engolir, Tolstoi! diz Maria Haziel, sorrindo com uma ternura vaga e travessa.
Sem dúvida, concorda o velho. Ela já quase nos roça. Dê uma mordida na lua, Maria Haziel.
Maria Haziel trinca com as gengivas nuas uma fatia de brancura leitosa.
Não tem gosto de bolo de aniversário? indaga o velho.
De fato, constata Maria Haziel, o pedaço de lua é macio e delicadamente adocicado.