O INSTINTO DA MORTE
Desde pequeno sempre senti essa presença sutil impressionando os circuitos da minha mente. Em meio aos pensamentos normais, aqueles que eram construídos com os elementos da educação diária que eu recebia, de vez em quando se intrometia um pensamento intruso que me mandava executar comportamentos completamente diferentes daqueles em que eu estava sendo educado.
As ações que as crianças da minha idade praticavam, nessas ocasiões, me pareciam tão ridículas e idiotas, que eu me recusava a participar delas. Alguma coisa me dizia que eu era diferente.
Não acredito em espíritos, mas a única forma de explicar uma sensação dessas para alguém que jamais teve semelhantes sinestesias é que eu me sentia possuído por alguma entidade diferente do meu próprio ego, quando isso acontecia. Era algo assim como se outra pessoa estivesse dentro da minha cabeça, me fa-lando de coisas que nada tinham a ver com aquele mundo em que eu estava sendo educado.
Tudo começava com um zumbido estranho que ressoava dentro da minha mente, como se alguém tivesse ligado um rádio em ondas curtas dentro dos meus ouvidos e aquele som intermitente e metálico me injetasse no cérebro uma nova personalidade. Então me vinha aquele frêmito, aquela vontade de extinguir, de quebrar, de destruir alguma coisa. E principalmente de morder.
Lembro-me que a primeira coisa que destruí foi um boneco que ganhei de um de meus tios. Era um palhaçinho todo risonho que soltava sonoras gargalhadas quando a gente coçava a barriga dele. Eu tinha, acho, uns cinco anos naquele tempo. Lembro-me bem daquele sentimento, pois foi a primeira vez que o prazer de matar alguma coisa foi registrado em meu sistema neurológico e desde então ele se tornou uma âncora poderosa para os meus centros de prazer.
Eu aprendi que destruir, ferir, matar, era gostoso. Lembro-me bem disso. Veio primeiro o chiado da onda curta, e então eu olhei para aquele boneco risonho ali na minha frente, soltando aquela gostosa gargalhada, com aquela boca enorme, pintada de felicidade e regozijo, e de repente me vi odiando a alegria dele, e me senti sofrendo com a felicidade que ele parecia estar sentindo; e no momento seguinte lá estava eu, mordendo e rasgando com os dentes e as unhas, com uma fúria canina, aquele boneco de pano. Sentia, ao praticar esse ato, uma volúpia, uma febre, um prazer imenso ao retalhar aquele boneco, como jamais sentira em nenhuma outra atividade até então.
Depois, para completar o prazer que me trouxera a vista do boneco ali, retalhado, dilacerado, destruído, ateei fogo os seus restos e fiquei a vê-lo queimar até o último pedacinho de pano, imaginando como seria delicioso se ele fosse vivo e pudesse sentir a dor da sua carne queimando, o cheiro nauseabundo da gordura se derretendo, como aqueles padres da Inquisição devem ter sentido quando mandavam para a fogueira os seus concorrentes mais temíveis, as bruxas, os magos e os feiticeiros.
Como já disse, as atividades dos meninos da minha idade me aborreciam. Lembro-me de quão ridículo eu achava aquelas brincadeiras com massinha, aqueles desenhos idiotas que meus coleguinhas de escola faziam. E também odiava ficar jogando bola no pátio ou praticando qualquer outro tipo de esporte. Só havia uma brincadeira que eu gostava de participar. Era o garrafão. Coitado do moleque que tinha o azar de ficar na boca do garrafão. Eu dava tanta porrada nele que aquilo que devia ser uma mera atividade lúdica acabava se tornando um verdadeiro massacre. Nessa brincadeira o menino que fica na boca do garrafão tem que atravessar um espaço em forma de garrafa desenhado no chão, pulando numa perna só, como um saci. Se ele falhar, os “inimigos” que estão nas bordas do garrafão, podem correr atrás dele e dar pancadas, com o punho fechado, nas suas costas. É claro que essas pancadas deviam ser leves, mas eu dava porrada mesmo. E batia com toda a minha força. Depois de um tempo não me deixaram mais brincar porque eu machucava os colegas.
Quando eu me tornei adolescente comecei a praticar boxe. Não pelo esporte, mas pelo puro prazer de bater mesmo. Minhas lutas geralmente acabavam em briga. Eu queria sempre bater, arrebentar, ver o sangue correr. E nem importava que o sangue escorrido fosse o meu. Aliás, era quando eu sentia o gosto do sangue na boca, nas vezes em que era ferido, ou o calor dele na minha pele, que eu me sentia mais motivado para brigar. Ai então me vinha aquele ímpeto de matar, de extinguir, de arrebentar quem estivesse na minha frente, que me dominava por completo e eu não via mais nada além das manchas vermelhas que se formavam nas minhas retinas, nem ouvia mais nada além da voz que dizia mate, mate, mate...
Fiquei jovem e essa disposição não mudou. Brigar, bater, ferir continuaram a ser a minha diversão preferida. A outra era caçar. Mas essa, infelizmente eu não podia praticar porque há muito a caça se tornou proibida neste país. Eu então costumava comprar pequenos animais domesticados, como coelhos, galinhas, patos e praticar com eles a arte da caça, caçando-os como um cão faria, e matando-os da mesma forma.
Não tinha amigos, apenas companheiros de rixas, que provocávamos amiúde, quase toda noite, só pelo prazer de machucar alguém.
Mas claro que eu sabia que essas coisas que a minha voz interior me inspiravam não se podiam fazer impunemente. Era pecado, era errado, era contra a lei de Deus e dos homens verter o sangue dos outros somente por puro prazer. Desde pequeno sempre me ensinaram essa ladainha. E eu sempre soube fazer essa distinção. Fui á Igreja, aprendi os mandamentos, os ensinamentos da religião e sei muito bem a distinção entre o bem e o mal. Não sou um psicopata. Aliás, conheço a diferença entre um louco e uma pessoa sã. Sei que a pessoa sã consegue distinguir entre o que é realidade e fantasia e o louco não. Entre o que a sociedade escolheu como certo e o que ela definiu como errado.
Eu apenas sinto gosto pela destruição. Lembro-me bem da primeira vez que eu destruí uma vida. Foi uma formiga. Lembro-me disso, não pelo ato em si, que é banal, mas pelo sentimento que eu experimentei na ocasião. Foi o requinte com que eu pratiquei o ato, o ritual, a intenção e o prazer que tudo isso me deu que me faz lembrar disso até hoje. Aliás, quando garoto, especializei-me em torturar e matar insetos. Pegava-os com uma pinça de tirar cílios que a minha mãe tinha jogado fora, e ia dissecando-os, com um canivete, pedacinho por pedacinho, tirando primeiro os ferrões, depois as patas, a cabeça e por fim o corpo, imaginando, em cada seccionamento, a dor que eles poderia estar sentindo. Era uma delícia.
Fiz isso com formigas, caracóis, minhocas, grilos, lagartixas, ratos, coelhos, galinhas, até que, com dezoito anos de idade, resolvi experimentar essa minha habilidade com um gato. Matar um gato é coisa muito fácil. O difícil é pegá-los. São bichos muito ariscos e desconfiados. É bobagem o que dizem deles, que tem sete vidas e mais. Na verdade, eles são animais de vida extremamente frágil.
Observei isso um dia, quando uma cadela que eu tinha em casa pegou um gato de jeito. Ela era uma enorme cadela da raça pastor alemão, e o idiota do gato foi cair do telhado justamente na boca da danada. Ela o abocanhou de um golpe só e com uma técnica espantosa cravou os dentes pontiagudos no corpo dele, como se fosse um médico fazendo incisões no corpo do felino com seus afiados bisturis.
Cada mordida parecia ter sido estudada meticulosamente. Mordeu primeiro no peito, depois nos flancos e por último na garganta. E o infeliz bichano entregou a sua maldita alma sem um gemido, sem um gesto de defesa, como se aquilo tivesse sido tudo combinado.
Vocês não podem imaginar o prazer que senti ao observar aquela cirúrgica operação praticada pela minha cadela, e ver a vida do gato se extinguindo como um pavio de lampião que alguém apaga aos poucos.
Foi então que decidi imitar minha cadela e ver se eu conseguia obter idêntico resultado fazendo eu mesmo uma operação semelhante. Meu vizinho tinha um gato rajado que às vezes costumava passar para o meu quintal. Eu o havia visto várias vezes tentando roubar comida na nossa cozinha. Sempre que minha mãe fritava sardinhas o danado aparecia e ficava miando do lado de fora da cozinha.
Costumávamos expulsá-lo jogando alguma coisa nele. Mas naquele dia, peguei algumas sardinhas e fui para o fundo da casa. Dei-lhes pequenos pedaços, aos poucos, até conquistar a confiança dele. Então, depois de algum tempo, ele deixou que eu o acariciasse, que passasse as mãos no seu pescoço. O danado se arrepi-ava todo com esse toque. Então, quando percebi que ele já não tinha mais medo de mim, peguei uma velha cinta do meu pai e fiz com ela uma coleira, que coloquei no pescoço dele. Depois amarrei a ponta da improvisada coleira numa grade de ferro de uma das janelas dos fundos da casa. E lá deixei o gato, pendurado pelo pescoço, como se fosse um condenado à forca.
Meu pai e minha mãe trabalhavam fora e não estavam em casa, de maneira que ninguém poderia ver a minha arte. Fiquei praticamente a tarde inteira me deliciando com o gato se estrebuchando na improvisada forca. E enquanto observava o bicho ir perdendo pouco a pouco a consciência, imaginava o quão prazeroso devia ser aqueles tempos antigos em que as execuções na forca eram feitas em praças públicas. Como deveria ser divertido ver os indivíduos balançando na corda, procurando desesperadamente o ar que não lhes passava pela garganta obstruída, e pouco a pouco aquelas línguas que iam ficando pretas, os olhos injetados de sangue, os intestinos soltando os seus pestilentos conteúdos...
E como eu me divertia ao ver o sangue que ia tingindo os olhos daquele gato de um vermelho vivo, á medida que ele se debatia e miava, cada vez mais lento em seus movimentos, cada vez mais fracos em seus miados.
Mas o que fiz depois foi mais prazeroso ainda. Quando ele estava em seus últimos estertores de vida enfiei meus dentes na garganta do já moribundo animal, uma, duas, três vezes, com a precisão de um cirurgião, como minha cadela havia feito, e fiquei ali, olhando para o líquido que escorria da garganta dilacerada dele, formando uma poça vermelha e viscosa no chão. Nessa altura o infeliz animal já não conseguia nem mais miar. E o último som que ele emitiu foi um chiado rouco, gutural, de vida que dava sua última informação sonora.
Ah! Esse foi um momento realmente delicioso. Depois peguei o pequeno cadáver e o enterrei no quintal, plantando em cima da minúscula cova um ramo de arruda. Não sei dizer a razão, mas essa planta sempre esteve conectada em minha mente com alguma coisa sinistra, macabra. A verdade é que cheiro dela me embriaga.
Durante um bom par de meses eu ia todos os dias olhar a pequena sepultura, com aquele pé de arruda a dar-lhe uma estranha conformação. Aquele era o símbolo do meu pequeno delito, a primeira e real experiência de tirar uma vida significativa, e eu agora sabia como era isso. Essa sabedoria me fazia sentir superior a todos os outros jovens do meu rol de relacionamentos, que só sabiam conversar sobre garotas, futebol, baladas, drogas e outras bobagens do gênero. Idiotas. Não sabiam que a droga mais embriagante era a experiência de dar a morte.
Três anos haviam se passado após essa minha experiência fantástica e eu quase já me esquecera dela. Mas meu instinto de destruição, no entanto, havia se aguçado ainda mais desde então. Passara a andar armado com meu canivete de molas, e até para dormir eu não me desgrudava dele. Sentia um prazer imenso ao ver o medo que os outros rapazes tinham de mim, principalmente quando eu fazia saltar do cabo, com um tique metálico, aquele estilete afiado e ficava a fazer firulas com ele. Ninguém tinha dúvidas que eu seria capaz de enfiar aquela lâmina no peito de qualquer pessoa que me aborrecesse, por isso todos ficavam longe de mim e me tratavam com muito cuidado.
Tenho consciência de que ninguém gostava de mim e eu não tinha a menor preocupação quanto a isso. Eu também não gostava de ninguém. As pessoas me aborreciam. Minha única amiga era a minha cadela pastor. Talvez porque ela também tivesse os mesmos instintos que eu. Ela sabia matar como ninguém. E parecia sentir um enorme prazer com isso.
Na verdade eu até a invejava. Ela podia matar os seus inimigos sem constrangimentos de espécie alguma. Eu não. Se os fizesse iria parar na cadeia. Malditos valores de civilização que nos fazem mitigar até os nossos instintos mais naturais!
Ela liquidava gatos, galinhas e outros animais que cruzavam seu caminho com uma técnica invejável. Nosso quintal era grande e tinha muitas árvores. Morávamos um pouco afastado do núcleo urbano e de vez em quando apareciam lá alguns bichos do mato, como esquilos, gambás e ouriços. Ela matava todos. Uma vez tive que levá-la a um veterinário para tirar as centenas de espinhos que ficaram espetados na sua boca depois de matar um ouriço que inadvertidamente tivera a infelicidade de entrar no nosso quintal.
Em principio não percebi a mudança que se operara no comportamento dela. Tornara-se mais arredia, mais irritadiça, e quando eu me aproximava dela ela fugia. Isso levou alguns dias e eu pensei que ela tivesse com alguma doença. Foi então resolvi levá-la ao veterinário. Afinal, ela estava ficando velha.
Mas quando fui colocar a coleira nela ela me arranhou. Tentei novamente e ela me mordeu. Daí quem teve que ir ao médico fui eu. Tomei vacina contra raiva e remédios antitetânicos.
Falei com meu pai e resolvemos prendê-la no canil. Depois chamamos o veterinário para vir vê-la. A consulta não revelou nada de diferente com ela. Ela se comportou docilmente como sempre fizera quando eu a levava ao veterinário. Ai eu notei que a má disposição dela era apenas comigo. Com meus pais e outras pessoas ela era a mesma cadela brincalhona e carinhosa de sempre. Apenas quando eu me aproximava era que ela mudava de comportamento.
Não havia notado então que o chão, no pé do capão de arruda que havia no fundo do quintal estava bastante remexido. Não notara porque o pé de arruda que eu plantara lá havia crescido tanto que se tornara um arbusto de sólidas proporções. Mas justamente no lugar onde eu enterrara o gato, três anos atrás, havia um buraco de cerca de uns cinqüenta centímetros de profundidade, feito na terra revolvida, como se ali alguém tivesse escavado com as próprias mãos. E não havia ali nem sinal dos ossos do gato.
Naquela noite fui dormir bastante preocupado. Fiquei pensando no que acontecera e não tive dúvidas que a cadela havia escavado a sepultura do gato e removera os seus ossos. Mas o que será que ela fizera com eles? Certamente não os comera, pois os mesmos já deviam estar completamente secos. E se assim fosse, algum fragmento deles restaria pelo quintal.
Eu estava na cama pensando nessas coisas e o cheiro de arruda invadia o meu quarto. Nem me dei conta disso a princípio, por que era normal sentir esse cheiro, dado que havia bastante pés dessa planta em meu quintal. Mas nessa noite estava demais. O cheiro estava insuportável. Meu pai costumava podá-los sempre que eles encorpavam muito. Talvez ele tivesse deixado os galhos que havia cortado em baixo da minha janela. Abri então a janela para olhar e só tive tempo de gritar quando a enorme sombra pulou pela janela e cravou os dentes no meu pescoço.
Na luta que se seguiu eu levei, evidentemente, a pior. Só não morri por que não tinha que morrer. Também tenho certeza que não foram os médicos que me salvaram. Foi alguma outra providência que me reservou e me escolheu para ser o que sou hoje. Minha cadela tinha feito comigo a mesma coisa que ela fazia com os animais que ela matava. Enfiou na minha carne os seus dentes pontiagudos, com cirúrgica precisão, pelo menos umas cinco vezes. Meu pai ouviu os meus gritos, o barulho da luta que se travava no meu quarto e chegou a tempo de me socorrer. Com dois tiros ele matou a cadela e depois me levou para o hospital, quase já sem vida.
Mas eu não morri, como é óbvio. Por alguma razão eu sobrevivi e daqui a algumas horas, quando a noite estiver avançada, um gato miar no telhado e um cão uivar para a lua cheia, que então estará brilhando no céu como uma enorme lâmpada pendurada no teto de um imenso salão, então uma estranha transformação se operará no meu organismo e eu terei finalmente adquirido a conformação física apropriada para esse instinto que eu tenho desde que nasci.
E quando as trevas ficarem mais densas, eu estarei numa dessas esquinas qualquer esperando por você. Você me reconhecerá pelo cheiro de arruda que eu exalo. Mas não terá tempo para pensar, porque no momento seguinte uma sombra negra pulará sobre a sua garganta e o único sentimento que ainda terá tempo de experimentar será o calor dos meus dentes rasgando a sua carne com cirúrgica precisão. Sinto muito por você, mas esse sou eu, esse é o meu instinto. Agora, finalmente, posso exercê-lo sem culpa.
Desde pequeno sempre senti essa presença sutil impressionando os circuitos da minha mente. Em meio aos pensamentos normais, aqueles que eram construídos com os elementos da educação diária que eu recebia, de vez em quando se intrometia um pensamento intruso que me mandava executar comportamentos completamente diferentes daqueles em que eu estava sendo educado.
As ações que as crianças da minha idade praticavam, nessas ocasiões, me pareciam tão ridículas e idiotas, que eu me recusava a participar delas. Alguma coisa me dizia que eu era diferente.
Não acredito em espíritos, mas a única forma de explicar uma sensação dessas para alguém que jamais teve semelhantes sinestesias é que eu me sentia possuído por alguma entidade diferente do meu próprio ego, quando isso acontecia. Era algo assim como se outra pessoa estivesse dentro da minha cabeça, me fa-lando de coisas que nada tinham a ver com aquele mundo em que eu estava sendo educado.
Tudo começava com um zumbido estranho que ressoava dentro da minha mente, como se alguém tivesse ligado um rádio em ondas curtas dentro dos meus ouvidos e aquele som intermitente e metálico me injetasse no cérebro uma nova personalidade. Então me vinha aquele frêmito, aquela vontade de extinguir, de quebrar, de destruir alguma coisa. E principalmente de morder.
Lembro-me que a primeira coisa que destruí foi um boneco que ganhei de um de meus tios. Era um palhaçinho todo risonho que soltava sonoras gargalhadas quando a gente coçava a barriga dele. Eu tinha, acho, uns cinco anos naquele tempo. Lembro-me bem daquele sentimento, pois foi a primeira vez que o prazer de matar alguma coisa foi registrado em meu sistema neurológico e desde então ele se tornou uma âncora poderosa para os meus centros de prazer.
Eu aprendi que destruir, ferir, matar, era gostoso. Lembro-me bem disso. Veio primeiro o chiado da onda curta, e então eu olhei para aquele boneco risonho ali na minha frente, soltando aquela gostosa gargalhada, com aquela boca enorme, pintada de felicidade e regozijo, e de repente me vi odiando a alegria dele, e me senti sofrendo com a felicidade que ele parecia estar sentindo; e no momento seguinte lá estava eu, mordendo e rasgando com os dentes e as unhas, com uma fúria canina, aquele boneco de pano. Sentia, ao praticar esse ato, uma volúpia, uma febre, um prazer imenso ao retalhar aquele boneco, como jamais sentira em nenhuma outra atividade até então.
Depois, para completar o prazer que me trouxera a vista do boneco ali, retalhado, dilacerado, destruído, ateei fogo os seus restos e fiquei a vê-lo queimar até o último pedacinho de pano, imaginando como seria delicioso se ele fosse vivo e pudesse sentir a dor da sua carne queimando, o cheiro nauseabundo da gordura se derretendo, como aqueles padres da Inquisição devem ter sentido quando mandavam para a fogueira os seus concorrentes mais temíveis, as bruxas, os magos e os feiticeiros.
Como já disse, as atividades dos meninos da minha idade me aborreciam. Lembro-me de quão ridículo eu achava aquelas brincadeiras com massinha, aqueles desenhos idiotas que meus coleguinhas de escola faziam. E também odiava ficar jogando bola no pátio ou praticando qualquer outro tipo de esporte. Só havia uma brincadeira que eu gostava de participar. Era o garrafão. Coitado do moleque que tinha o azar de ficar na boca do garrafão. Eu dava tanta porrada nele que aquilo que devia ser uma mera atividade lúdica acabava se tornando um verdadeiro massacre. Nessa brincadeira o menino que fica na boca do garrafão tem que atravessar um espaço em forma de garrafa desenhado no chão, pulando numa perna só, como um saci. Se ele falhar, os “inimigos” que estão nas bordas do garrafão, podem correr atrás dele e dar pancadas, com o punho fechado, nas suas costas. É claro que essas pancadas deviam ser leves, mas eu dava porrada mesmo. E batia com toda a minha força. Depois de um tempo não me deixaram mais brincar porque eu machucava os colegas.
Quando eu me tornei adolescente comecei a praticar boxe. Não pelo esporte, mas pelo puro prazer de bater mesmo. Minhas lutas geralmente acabavam em briga. Eu queria sempre bater, arrebentar, ver o sangue correr. E nem importava que o sangue escorrido fosse o meu. Aliás, era quando eu sentia o gosto do sangue na boca, nas vezes em que era ferido, ou o calor dele na minha pele, que eu me sentia mais motivado para brigar. Ai então me vinha aquele ímpeto de matar, de extinguir, de arrebentar quem estivesse na minha frente, que me dominava por completo e eu não via mais nada além das manchas vermelhas que se formavam nas minhas retinas, nem ouvia mais nada além da voz que dizia mate, mate, mate...
Fiquei jovem e essa disposição não mudou. Brigar, bater, ferir continuaram a ser a minha diversão preferida. A outra era caçar. Mas essa, infelizmente eu não podia praticar porque há muito a caça se tornou proibida neste país. Eu então costumava comprar pequenos animais domesticados, como coelhos, galinhas, patos e praticar com eles a arte da caça, caçando-os como um cão faria, e matando-os da mesma forma.
Não tinha amigos, apenas companheiros de rixas, que provocávamos amiúde, quase toda noite, só pelo prazer de machucar alguém.
Mas claro que eu sabia que essas coisas que a minha voz interior me inspiravam não se podiam fazer impunemente. Era pecado, era errado, era contra a lei de Deus e dos homens verter o sangue dos outros somente por puro prazer. Desde pequeno sempre me ensinaram essa ladainha. E eu sempre soube fazer essa distinção. Fui á Igreja, aprendi os mandamentos, os ensinamentos da religião e sei muito bem a distinção entre o bem e o mal. Não sou um psicopata. Aliás, conheço a diferença entre um louco e uma pessoa sã. Sei que a pessoa sã consegue distinguir entre o que é realidade e fantasia e o louco não. Entre o que a sociedade escolheu como certo e o que ela definiu como errado.
Eu apenas sinto gosto pela destruição. Lembro-me bem da primeira vez que eu destruí uma vida. Foi uma formiga. Lembro-me disso, não pelo ato em si, que é banal, mas pelo sentimento que eu experimentei na ocasião. Foi o requinte com que eu pratiquei o ato, o ritual, a intenção e o prazer que tudo isso me deu que me faz lembrar disso até hoje. Aliás, quando garoto, especializei-me em torturar e matar insetos. Pegava-os com uma pinça de tirar cílios que a minha mãe tinha jogado fora, e ia dissecando-os, com um canivete, pedacinho por pedacinho, tirando primeiro os ferrões, depois as patas, a cabeça e por fim o corpo, imaginando, em cada seccionamento, a dor que eles poderia estar sentindo. Era uma delícia.
Fiz isso com formigas, caracóis, minhocas, grilos, lagartixas, ratos, coelhos, galinhas, até que, com dezoito anos de idade, resolvi experimentar essa minha habilidade com um gato. Matar um gato é coisa muito fácil. O difícil é pegá-los. São bichos muito ariscos e desconfiados. É bobagem o que dizem deles, que tem sete vidas e mais. Na verdade, eles são animais de vida extremamente frágil.
Observei isso um dia, quando uma cadela que eu tinha em casa pegou um gato de jeito. Ela era uma enorme cadela da raça pastor alemão, e o idiota do gato foi cair do telhado justamente na boca da danada. Ela o abocanhou de um golpe só e com uma técnica espantosa cravou os dentes pontiagudos no corpo dele, como se fosse um médico fazendo incisões no corpo do felino com seus afiados bisturis.
Cada mordida parecia ter sido estudada meticulosamente. Mordeu primeiro no peito, depois nos flancos e por último na garganta. E o infeliz bichano entregou a sua maldita alma sem um gemido, sem um gesto de defesa, como se aquilo tivesse sido tudo combinado.
Vocês não podem imaginar o prazer que senti ao observar aquela cirúrgica operação praticada pela minha cadela, e ver a vida do gato se extinguindo como um pavio de lampião que alguém apaga aos poucos.
Foi então que decidi imitar minha cadela e ver se eu conseguia obter idêntico resultado fazendo eu mesmo uma operação semelhante. Meu vizinho tinha um gato rajado que às vezes costumava passar para o meu quintal. Eu o havia visto várias vezes tentando roubar comida na nossa cozinha. Sempre que minha mãe fritava sardinhas o danado aparecia e ficava miando do lado de fora da cozinha.
Costumávamos expulsá-lo jogando alguma coisa nele. Mas naquele dia, peguei algumas sardinhas e fui para o fundo da casa. Dei-lhes pequenos pedaços, aos poucos, até conquistar a confiança dele. Então, depois de algum tempo, ele deixou que eu o acariciasse, que passasse as mãos no seu pescoço. O danado se arrepi-ava todo com esse toque. Então, quando percebi que ele já não tinha mais medo de mim, peguei uma velha cinta do meu pai e fiz com ela uma coleira, que coloquei no pescoço dele. Depois amarrei a ponta da improvisada coleira numa grade de ferro de uma das janelas dos fundos da casa. E lá deixei o gato, pendurado pelo pescoço, como se fosse um condenado à forca.
Meu pai e minha mãe trabalhavam fora e não estavam em casa, de maneira que ninguém poderia ver a minha arte. Fiquei praticamente a tarde inteira me deliciando com o gato se estrebuchando na improvisada forca. E enquanto observava o bicho ir perdendo pouco a pouco a consciência, imaginava o quão prazeroso devia ser aqueles tempos antigos em que as execuções na forca eram feitas em praças públicas. Como deveria ser divertido ver os indivíduos balançando na corda, procurando desesperadamente o ar que não lhes passava pela garganta obstruída, e pouco a pouco aquelas línguas que iam ficando pretas, os olhos injetados de sangue, os intestinos soltando os seus pestilentos conteúdos...
E como eu me divertia ao ver o sangue que ia tingindo os olhos daquele gato de um vermelho vivo, á medida que ele se debatia e miava, cada vez mais lento em seus movimentos, cada vez mais fracos em seus miados.
Mas o que fiz depois foi mais prazeroso ainda. Quando ele estava em seus últimos estertores de vida enfiei meus dentes na garganta do já moribundo animal, uma, duas, três vezes, com a precisão de um cirurgião, como minha cadela havia feito, e fiquei ali, olhando para o líquido que escorria da garganta dilacerada dele, formando uma poça vermelha e viscosa no chão. Nessa altura o infeliz animal já não conseguia nem mais miar. E o último som que ele emitiu foi um chiado rouco, gutural, de vida que dava sua última informação sonora.
Ah! Esse foi um momento realmente delicioso. Depois peguei o pequeno cadáver e o enterrei no quintal, plantando em cima da minúscula cova um ramo de arruda. Não sei dizer a razão, mas essa planta sempre esteve conectada em minha mente com alguma coisa sinistra, macabra. A verdade é que cheiro dela me embriaga.
Durante um bom par de meses eu ia todos os dias olhar a pequena sepultura, com aquele pé de arruda a dar-lhe uma estranha conformação. Aquele era o símbolo do meu pequeno delito, a primeira e real experiência de tirar uma vida significativa, e eu agora sabia como era isso. Essa sabedoria me fazia sentir superior a todos os outros jovens do meu rol de relacionamentos, que só sabiam conversar sobre garotas, futebol, baladas, drogas e outras bobagens do gênero. Idiotas. Não sabiam que a droga mais embriagante era a experiência de dar a morte.
Três anos haviam se passado após essa minha experiência fantástica e eu quase já me esquecera dela. Mas meu instinto de destruição, no entanto, havia se aguçado ainda mais desde então. Passara a andar armado com meu canivete de molas, e até para dormir eu não me desgrudava dele. Sentia um prazer imenso ao ver o medo que os outros rapazes tinham de mim, principalmente quando eu fazia saltar do cabo, com um tique metálico, aquele estilete afiado e ficava a fazer firulas com ele. Ninguém tinha dúvidas que eu seria capaz de enfiar aquela lâmina no peito de qualquer pessoa que me aborrecesse, por isso todos ficavam longe de mim e me tratavam com muito cuidado.
Tenho consciência de que ninguém gostava de mim e eu não tinha a menor preocupação quanto a isso. Eu também não gostava de ninguém. As pessoas me aborreciam. Minha única amiga era a minha cadela pastor. Talvez porque ela também tivesse os mesmos instintos que eu. Ela sabia matar como ninguém. E parecia sentir um enorme prazer com isso.
Na verdade eu até a invejava. Ela podia matar os seus inimigos sem constrangimentos de espécie alguma. Eu não. Se os fizesse iria parar na cadeia. Malditos valores de civilização que nos fazem mitigar até os nossos instintos mais naturais!
Ela liquidava gatos, galinhas e outros animais que cruzavam seu caminho com uma técnica invejável. Nosso quintal era grande e tinha muitas árvores. Morávamos um pouco afastado do núcleo urbano e de vez em quando apareciam lá alguns bichos do mato, como esquilos, gambás e ouriços. Ela matava todos. Uma vez tive que levá-la a um veterinário para tirar as centenas de espinhos que ficaram espetados na sua boca depois de matar um ouriço que inadvertidamente tivera a infelicidade de entrar no nosso quintal.
Em principio não percebi a mudança que se operara no comportamento dela. Tornara-se mais arredia, mais irritadiça, e quando eu me aproximava dela ela fugia. Isso levou alguns dias e eu pensei que ela tivesse com alguma doença. Foi então resolvi levá-la ao veterinário. Afinal, ela estava ficando velha.
Mas quando fui colocar a coleira nela ela me arranhou. Tentei novamente e ela me mordeu. Daí quem teve que ir ao médico fui eu. Tomei vacina contra raiva e remédios antitetânicos.
Falei com meu pai e resolvemos prendê-la no canil. Depois chamamos o veterinário para vir vê-la. A consulta não revelou nada de diferente com ela. Ela se comportou docilmente como sempre fizera quando eu a levava ao veterinário. Ai eu notei que a má disposição dela era apenas comigo. Com meus pais e outras pessoas ela era a mesma cadela brincalhona e carinhosa de sempre. Apenas quando eu me aproximava era que ela mudava de comportamento.
Não havia notado então que o chão, no pé do capão de arruda que havia no fundo do quintal estava bastante remexido. Não notara porque o pé de arruda que eu plantara lá havia crescido tanto que se tornara um arbusto de sólidas proporções. Mas justamente no lugar onde eu enterrara o gato, três anos atrás, havia um buraco de cerca de uns cinqüenta centímetros de profundidade, feito na terra revolvida, como se ali alguém tivesse escavado com as próprias mãos. E não havia ali nem sinal dos ossos do gato.
Naquela noite fui dormir bastante preocupado. Fiquei pensando no que acontecera e não tive dúvidas que a cadela havia escavado a sepultura do gato e removera os seus ossos. Mas o que será que ela fizera com eles? Certamente não os comera, pois os mesmos já deviam estar completamente secos. E se assim fosse, algum fragmento deles restaria pelo quintal.
Eu estava na cama pensando nessas coisas e o cheiro de arruda invadia o meu quarto. Nem me dei conta disso a princípio, por que era normal sentir esse cheiro, dado que havia bastante pés dessa planta em meu quintal. Mas nessa noite estava demais. O cheiro estava insuportável. Meu pai costumava podá-los sempre que eles encorpavam muito. Talvez ele tivesse deixado os galhos que havia cortado em baixo da minha janela. Abri então a janela para olhar e só tive tempo de gritar quando a enorme sombra pulou pela janela e cravou os dentes no meu pescoço.
Na luta que se seguiu eu levei, evidentemente, a pior. Só não morri por que não tinha que morrer. Também tenho certeza que não foram os médicos que me salvaram. Foi alguma outra providência que me reservou e me escolheu para ser o que sou hoje. Minha cadela tinha feito comigo a mesma coisa que ela fazia com os animais que ela matava. Enfiou na minha carne os seus dentes pontiagudos, com cirúrgica precisão, pelo menos umas cinco vezes. Meu pai ouviu os meus gritos, o barulho da luta que se travava no meu quarto e chegou a tempo de me socorrer. Com dois tiros ele matou a cadela e depois me levou para o hospital, quase já sem vida.
Mas eu não morri, como é óbvio. Por alguma razão eu sobrevivi e daqui a algumas horas, quando a noite estiver avançada, um gato miar no telhado e um cão uivar para a lua cheia, que então estará brilhando no céu como uma enorme lâmpada pendurada no teto de um imenso salão, então uma estranha transformação se operará no meu organismo e eu terei finalmente adquirido a conformação física apropriada para esse instinto que eu tenho desde que nasci.
E quando as trevas ficarem mais densas, eu estarei numa dessas esquinas qualquer esperando por você. Você me reconhecerá pelo cheiro de arruda que eu exalo. Mas não terá tempo para pensar, porque no momento seguinte uma sombra negra pulará sobre a sua garganta e o único sentimento que ainda terá tempo de experimentar será o calor dos meus dentes rasgando a sua carne com cirúrgica precisão. Sinto muito por você, mas esse sou eu, esse é o meu instinto. Agora, finalmente, posso exercê-lo sem culpa.