O renascer de Sara

Sara olhou o luminoso do rádio-relógio em cima da penteadeira e constatou que eram três e vinte da manhã – normalmente seu despertar acontecia por volta das seis. Se bem que a brusca mudança horária em nada alteraria seus hábitos cotidianos, viu-se presa de sombrio desalento. Nesse dia teria que suportar a angústia de conviver com a solidão por mais tempo e isso era, murmurou para si, uma sórdida brincadeira de Deus.
A outra surpresa foi quando, ao levar maquinalmente a mão para massagear as pernas numa inútil tentativa de afugentar as dores da artrite, percebeu que os sintomas nevrálgicos inexistiam em suas juntas – e viu-se, sob as cobertas, tomada de estranho vigor, um vigor quase juvenil. Assustada, acendeu a lâmpada do abajur sobre o criado-mudo, saltou da cama e caminhou, a princípio desconfiadamente, pelo cômodo. Mas, ora veja!, exclamou com a boca aberta num grande sorriso de gengivas nuas, estou supimpa!
Tão excitada com a inacreditável vitalidade, por um momento imaginou que seu organismo estava recebendo de misteriosas forças cósmicas algum fluido energético capaz de provocar o rejuvenescimento. Com essa esperança pulsando no cérebro, acendeu as luzes da casa e dirigiu-se ao banheiro. Ali, fitou-se no espelho do armarinho e, esquadrinhando meticulosamente as faces, convenceu-se que, de fato, a imensa malha de rugas em seu rosto estava desaparecendo – os sulcos já não eram tão profundos, tão marcantes como cicatrizes. E depois, havia os olhos. Aqueles olhos refletidos no espelho estavam diferentes. Ao que se lembrava, possuía uns olhinhos melancólicos, de um azul desmaiado, como que encobertos por uma mortalha de muito sofrer. E o que estava vendo? Puxa vida, refletindo no espelho havia dois olhões soberbos, cintilantes como as águas de mares remotos, como duas gemas de safira, como as rosas azuis de um conto lido quando mocinha.
Tirou a camisola flanelada, abriu a torneira do chuveiro, sentou-se no vaso sanitário e com incomensurável alegria sentiu que a urina saía com ímpeto, um esguicho forte, espumoso – há poucas horas, antes de se deitar, chegara ao choro para expulsar da bexiga inflamada meia dúzia de gotinhas fétidas. “Pareço uma égua puro-sangue mijando”, sussurrou para si, e a expressão chula era tão deliciosa que soltou uma gargalhada súbita, coisa que jamais lhe acontecera.
Banhou-se, plena de satisfação, demorando-se uma eternidade no ato de passar carinhosamente a esponja pelo corpo. Foi no momento em que se enxugava – a mente ocupada com ideias de mudanças singelas: jogar fora, por exemplo, aqueles trapos ásperos que usava para secar-se, substituindo-os por toalhas imensas, coloridas, felpudas, acariciantes – que ouviu nos encanamentos uns ruídos estranhos, como passadas de um animalzinho qualquer, se bem que o som era misteriosamente metálico, parecido com o chocar de talheres na borda de pratos. Atentou para o barulhinho, procurando uma explicação. Parecia provir de vários lugares ao mesmo tempo, tornando-se mais intenso na região do ralo. Talvez fossem pequenos pedaços de metais rolando pelos canos sob o impulso das águas do chuveiro, especulou Sara, abaixando-se para olhar pelas frestas do escoadouro.
SCRONK!
A monstruosa vibração da voz animalesca jogou-a para trás. Sentada no piso molhado, ficou completamente paralisada, incapaz de coordenar um só fio de pensamento. Demorou muito para sair do estado de choque, percebendo então que tudo em sua volta era pesado silêncio. Todo seu corpo pôs-se a tremer, os nervos alterados pelo susto medonho. Aos poucos, no entanto, a razão começou a infiltrar-se nas emoções. Aquele ruído estarrecedor só poderia ter sido provocado por alguma sucção de água à desobstrução de manilhas do sistema de esgoto. Só poderia ser. Então percebeu que a luz do sol já varava a pequena vidraça do banheiro. Foi ao quarto vestir-se.
Sara desconhecia os motivos que a levaram a colocar seu mais belo vestido, um traje vermelho, cortado num estilo que fora moda numa época tão remota que já se perdera no labirinto de memória. Olhou-se no espelho interno do guarda-roupa. Estou ridícula?, indagou-se. Não, respondeu de si para si, estou bela. Pegou num cabide a echarpe de seda com arabescos dourados, contemplou-a, sonhadoramente – num instante a peça cingia-lhe o pescoço. Na gaveta da penteadeira encontrou um broche imenso, engastado com uma bela pedra de ametista. Com ele prendeu sobre o colo as duas pontas da echarpe. Tirou a dentadura do copo de água, colocou-a, sorriu para si mesma, repleta de satisfação. Em seguida se escandalizou com seus cabelos, longos e de uma bonita cor cinza, mas tão descuidados! Precisava cortá-los, estava parecida com uma velha beata ou uma dessas fanáticas de igreja castradora. Precisava de uma profissional para o trabalho, mas esta teria que vir a casa, Sara há anos não punha os pés além dos limites do quintal. Onde encontrá-la – na lista telefônica? Com um pouco de reflexão lembrou-se que Anita, a mulher da quitanda que mensalmente lhe trazia as contas do mês a pagar, por certo deveria conhecer alguém. Anita tinha os cabelos tão lindos, de aparência tão macia e saudável... Foi ao telefone. Anita não pôde ou não quis ajudá-la, então Sara sentiu que não precisava de mudanças externas, sentia-se linda e isso era o quanto bastava.
No grande relógio de pêndulo o cuco cantou nove vezes. Sara ligou o televisor e sentou-se numa poltrona. Todos os programas lhe pareceram desinteressantes. Desligou o aparelho quando se deu conta que do banheiro vinha um ruído cadenciado, em surdina, como o de um batráquio das florestas amazônicas – um som fino, estridulante, igual ao das rãzinhas multicoloridas e venenosas que muitas vezes vira em documentários do National Geographic. Curiosamente, sentiu-se envaidecida ao reconhecer no estrídulo uma cantiga propondo acasalamento e, com terno sorriso nos lábios, deixou-se embalar pela melodia acariciante. Fitou na parede o retrato do falecido, com seus bigodões retorcidos, o olhar penetrante, acusador: nunca vira o marido nem mesmo assobiar alguma vez – aliás, com aquele homem só sentira desgostos. Incapaz de um sorriso, uma carícia. Quando a possuía, era desprezível. Penetrava-a sem ao menos um estímulo capaz de lubrificar-lhe a parte mais sensível do corpo. Uma relação sexual rápida e dolorida. O desgraçado – lembrou-se, amarga – dava-lhe duas ou três estocadas, caía para o lado e pegava no sono, roncando como um porco. Sara imediatamente ia lavar-se, aquela quantidade imensa de sêmen dentro de si e nos pêlos púbicos a lhe provocar náuseas. Jamais teve um orgasmo. Quando se descobriu grávida, fora tomada de um ódio inexplicável por tudo e por todos – e assim que o menino nasceu levaram-no para a casa dos sogros. O tempo passou e após a morte do marido, o filho renegado acabou herdando os negócios da família. Por obrigação social, ele a visitava uma vez por mês, quando lhe dava o dinheiro necessário para a sobrevivência e recolhia as contas a pagar – água, luz, telefone, impostos, essas coisas. Quanto aos netos... Antes que se visse dominada pelo desgosto cotidiano, Sara concentrou-se na doce música enchendo toda a casa. O som agora não era mais de rãzinhas, mas de orquestra sinfônica. Distinguia um por um todos os instrumentos, as madeiras, os metais, as cordas. Um por um. Sara cerrou os olhos sentindo que iria dormir e sonhar coisas belas. Acordou às sete da noite – sentia uma fome devastadora, um desejo intenso de comer um prato imenso de macarronada. Preparou-o com muito azeite, molho de tomate e salmão em conserva. Jantou com um apetite nunca dantes imaginado.
Ligou o televisor na novela aí por volta das nove da noite. Tão sensível estava que sentiu lágrimas deslizando pelas faces em várias cenas comoventes, amorosas ou plasticamente belas. Lá pelas dez veio o desejo de deitar-se, contrariando seu horário habitual – por volta da meia-noite. Na verdade não sentia sono – ao contrário: junto à vontade de estender-se na cama sentia uma agitação absolutamente incompreensível, como a de uma noiva prestes a subir ao altar, um jogador de baralho com excelente mão ou de uma ave de rapina visualizando um preá em campo de pastagem. Resolveu tomar um banho especialíssimo. Um banho com sais aromáticos e essências florais. Encontrou em misteriosos escaninhos nos móveis do quarto os produtos que desejava. Encheu a banheira e por muito tempo encantou-se consigo mesma ao descobrir que o corpo correspondia aos afagos das mãos, à quentura suave da água, aos perfumes cálidos e penetrantes. Ao deitar-se vestia uma camisola muito antiga, longa, amarelada pelo tempo – mas tão bela e macia!
Sob a luz do abajur, ficou olhando a porta do quarto, escancarada, numa expectativa angustiante e racionalmente fora de propósito. Foi quando viu penetrando pelo cômodo uma sombra viva, pulsante, uma sombra que respirava, arfava. Lentamente a sombra deslizou para os pés da cama, densamente foi subindo colchão. Envolveu-lhe o corpo. E Sara explodiu em orgasmos sucessivos.
Sara acordou no horário habitual, plena, realizada. Abraçou-se ao travesseiro e mordiscou-o com ternura jamais expressada. Abriu a janela e sorriu para o sol nascente, para a árvore na calçada prenhe de vento. Saltitante como uma adolescente, foi fazer a higiene matinal. Encheu a banheira, tirou a camisola. Tocou o baixo-ventre e, acariciando a vulva, constatou que os grandes lábios estavam intumescidos, sensíveis; olhou-os: mostravam-se orvalhados, uma constelação de pontinhos translúcidos – um céu primaveril de alguma coisa semelhante ao sêmen. Sara, toda ela, era uma flor em mágico desabrochar. Então, com um rugido de abalar paredes, foi cumprimentada:
-SCRONK!
Bom dia pra você também, querido, respondeu Sara, repleta de vida.