O Monstro
Por Ramon Bacelar
O imenso candelabro celeste que era a lua cheia do fim de dezembro costurava o caminho de mata fechada com agulhas e fios de prata, emoldurando timidamente ângulos e formas de uma carruagem barulhenta que a substância da noite teimava em dissolver, fundindo-a a folhas, pedras, troncos e raízes em um egoísta e misterioso senso de proteção e propriedade.
Na saída da mata fechada, desimpedida que estava dos obstáculos naturais, a luminosidade ganhava brilho e volume, colocando em nítido relevo fragilidades, putrefações e inseguranças de uma estafada ponte secular que rangia sobre o peso da carruagem como um órfão carente, e a dez metros da última seção, espreitando o movimento com olhos de vidro empoeirado e ouvidos de madeira bolorenta, ela, A Casa, aguardava: paciente, segura, orgulhosamente firme: sustentada que estava pelos alicerces da noite.
-Chegamos.- Rosnou o belga Delvaux ajeitando o chapéu coco com a ponta de prata da bengala.
-Salvatore... Empresto quanto você quiser, não é preciso se sujeitar a tamanha humilhação.
-O seu amigo além de bisbilhoteiro é intrometido Sr. Salvatore. Deveria tê-lo deixado no meio do caminho.
-Rossi, a decisão já está tomada. Preciso do dinheiro, você já fez demais por mim. –A voz de Salvatore saiu como a soma das ansiedades.
-Pois bem Sr. Salvatore. Uma vez decidido, só lhe resta...
O olhar de Delvaux penetrou como agulhas em brasa; Salvatore girou o pescoço à procura de Rossi.
-Até mais amigo e mais uma vez obrigado pela ajuda.
- Mais uma coisa Sr. Salvatore. – Interrompeu Delvaux - Não esqueça, meia hora “pelo menos”, dentro da casa. - A impaciência afogou as palavras e deu lugar a outro fluxo de auto-expressão - Espero que o Sr. desfrute da hospitalidade e que sua aventura nos traga um momentâneo, digamos... Alívio para o tédio monumental de nossa monótona existência, assim como muitos frutos para seu bolso vazio em cuja fundura nada reside além de meros...
-Cale-se demônio cínico, manipulador!!!-Explodiu Rossi.
Delvaux petrificou e emudeceu: a calma que não era calma.
-Sempre me considerei uma pessoa prática e objetiva Sr. Rossi. Seu amigo precisa do dinheiro e eu...-Suspirou de cabeça baixa-...bom, como pode notar, não sou um materialista nato, por vezes necessito de um, digamos... “Conforto” que os meus bens e dinheiro não preenchem.
Rossi não retorquiu.
-Boa sorte Sr. Salvatore.
A ponta da bengala estudou sua face com o comedimento de uma cascavel.
***
- O tempo é muito relativo, não é mesmo Sr. Rossi? Na verdade ele quase nunca opera a nosso favor e sempre nos contraria.
Rossi desgrudou os olhos do relógio mas não levantou a cabeça.
-O Sr. comprou e colocou a vida do Salvatore em risco para sua diversão seu crápula egoísta!
- Não me venha com asneiras, fantochezinho ignorante! Quer dizer que você também, supostamente culto e escolado, realmente acredita nessas lendas e superstições de um mutante canibal habitando a casa?!
As palavras queimaram com a acidez de lava vulcânica.
- E c-como o Sr. explica o desaparecimento de seis crianças em dois anos... Sem vestígios?
- Você acaba de responder a sua pergunta. O fato de estarem desaparecidas não significa nada além disso. Além do mais eram filhos de camponeses e pescadores cujas crendices e superstições são um mero reflexo das condições de pobreza e privações extremas.
Rossi, com um misto de medo e curiosidade, procurou novas vias de acesso, sem perceber que girava em círculos como um diabo cego vagando em um labirinto sem centro.
-Um temente a Deus jamais falaria assim, além do mais o Sr. mesmo usou palavras como “hospitalidade” ,“anfitrião” e...
- AHAHAHAHAHAHAH!!! Ora ora meu caro, não tire tudo que eu falo ao pé da letra, você me parece pior que aqueles camponeses! Na verdade o único anfitrião que ele encontrará será o Sr. Folclore que ronda a casa... Se o medo deixar AHAHAHAHAH!!!
-O Sr. só se sente bem... pisando nos outros. – As palavras despedaçaram pela pressão emocional: era como se a acidez verbal de Delvaux corroesse os nervos de Rossi.
-Vocês com suas crendices, superstições e falsas certezas diariamente cavam a própria sepultura, erigem os próprios mausoléus disparando tiros nos próprios pés temendo o que não vêem, buscando salvação nadando na própria lama que criaram e ainda culpam os outros pela própria estupidez!!
Delvaux apontou a bengala para o silêncio e escuridão que envolvia a casa como uma máscara de sombras:
-Está abandonada, silenciosa e vazia!
O turbilhão emocional não impediu Rossi.
- P-porque o Sr. não entra?
- Tão logo seu amigo saia... – Respondeu sem pestanejar encarando Rossi-... Se o Sr quiser me acompanhar...
O sorriso aberto de Delvaux emprestou à sua face a artificialidade de uma máscara de cera.
-Não vai responder covarde?
Rossi consultou o relógio, suspirou e se viu obrigado a admitir que algumas observações de Delvaux faziam sentido. Poderia ser um bastardo luciferino, mas não podia fugir dos fatos: a falta de provas materiais, a vida simples e sofrida dos camponeses, e agora a quietude da casa, a ausência de qualquer ruído... E o mostrador do relógio: nove minutos, nove “lentos” minutos.
Sentiu calafrios explorando sua espinha como parasitas gélidos à procura de um hospedeiro; súbitas contorções estomacais seguidas de um repentino enrugamento facial, anunciaram uma onda de calor que percorreu seu corpo delgado parindo suores gélidos, refluxos violentos e tremedeiras convulsivas; agulhas de ansiedade e impaciência o torturavam com a malícia e crueldade de um diabo ardiloso: o vômito ácido jorrou de sua garganta como um enxame de abelhas enlouquecidas.
***
Escorado no parapeito da ponte, Rossi alimentava um cardume de piranhas com restos de pão enquanto se recobrava da indisposição.
- A carruagem está cheirando a fezes de porco.
-Bastardo! Aconteceu alguma coisa com...
-Ou estou coberto de razão a respeito da casa imbecil! Então?
-Então o quê?
-Não vai entrar comigo para “salvar” seu amigo?
Rossi não respondeu.
- Quer dizer que o seu medo é maior que sua amizade, e sua fé, como nossas lâmpadas a gás, quando menos se espera...puufff. Que pena.
-Me deixe em paz.
Rossi virou as costas e contemplou o umbral da casa decrépita: pontos de luzes pulsantes decoravam a escuridão como estrelas brilhantes em um céu aveludado, mas a névoa leitosa do lago e seu ângulo de visão, não lhe dava a certeza se eram lâmpadas internas ou vaga-lumes furando a escuridão.
-Até mais meu caro, o dever me chama. – Bateu nas costas, alcançou o umbral e sumiu na escuridão.
***
50...55...70...90 minutos, e os mesmos signos e sinais o arremessaram novamente em uma espiral de mesmice, angústia e previsibilidade: a mesma quietude e luminosidade, as mesmas contorções e impaciências: era como se a entrada de Delvaux adensasse a escuridão e intensificasse suas dúvidas e anseios. Escorou no parapeito para liberar um violento refluxo, porém antes da acidez tocar a língua, um estrondo de vidro estraçalhado vindo da casa o obrigou a vomitar um berro de desespero:
-Salvatoreeee!!!!
-Socorro!! Socorro!!!
Envolta na luminosidade raquítica encobertada pela névoa, uma forma humana à frente do umbral descia a colina ziguezagueando como uma bússola cega, e acima da cobertura da varanda, a janela estraçalhada expelia uivos animalescos que penetraram em seus tímpanos como badalares infernais.
-Ele!!! Eleee!!!!
-Estou indo Salvatore!!!
Rossi disparou em direção ao amigo, mas antes de alcançar a última seção da ponte percebeu que os gritos de socorro vinham de Delvaux escorado no parapeito.
- Ele!!!
-O que aconteceu com o S-Salvat...
Rossi petrificou quando a proximidade revelou a realidade de Delvaux: na altura da testa, uma manta de pele balançava como uma cortina rubra de carne crua e sangue coagulado, encobertando parcialmente uma órbita que pendia da cavidade ocular como um pêndulo orgânico; jorros de sangue nas bochechas sugerindo lacerações profundas se fundiam no pescoço com o vermelho vivo dos nervos expostos; tentou falar, mas foi impedido quando vislumbrou o couro cabeludo rasgado ao meio, como duas folhas abertas de um livro de carne.
-Ele!!!!!
-Sim, sim o que aconteceu com o...
-Ele, ele que uiva e berra na casa, escute!! O monstro mutante no porão me atacou!!! Me ajude...me...
-Estou indo pegar o Salvatore, espere...
-Não, não! Ele, ele tem... É horrível...e carnívoro!
Uma onda gélida envolveu Rossi como uma manta polar perpétua.
-É...é...-Delvaux articulava as palavras com movimentos convulsivos- É horrível!...Tem cabelos pretos, pele lisa... d-d-duas pernas e uma BOCAAAAA!!!!- Em um último gesto de dor e desespero Delvaux se joga da ponte, e nem o avançado reflexo dos quatro olhos laterais de Rossi e oitos tentáculos pegajosos, bastaram para salvar o pobre diabo da fúria carnívora das piranhas.
FIM