O que agrada sua mente? (Versão Original)

Na França da idade média, onde títulos de nobreza valiam mais do que nobreza de caráter, era comum que certos relacionamentos nunca se concretizassem. Diferenças sociais devem ter separado mais casais do as guerras. Alguns morriam tentando lutar por amores que lhes foram imputados por impossíveis, outros fugiam e não se tinha mais notícias, difícil dizer qual a melhor opção para quem se encontrava neste tipo de situação. Assim era Charline e Cedric.

Charline viera de família nobre, seu pai era um conde e tinha muitos negócios na corte francesa. Cedric era órfão e cresceu em um abrigo criado por padre Rémy, que têm o rapaz como um filho. Cedric cresceu e tornou-se um bom rapaz, aprendeu o ofício de ferreiro e trabalhava numa oficina. Mas isto nunca seria suficiente para que família de Charline o aceitasse. Padre Rémy sempre advertia o rapaz que seus encontros as escondidas eram perigosos, podiam resultar em morte. Cedric não se importava, era impossível evitar, estava perdidamente apaixonado e pensava a todo minuto um meio de estar com Charline.

- Charline! Achei que não vinha mais! - Cedric alegrou-se após ter ficado apreensivo com a demora da amada. - O que foi? Você parece triste... - Notou uma indisfarçável tristeza na expressão de Charline.

- Cedric... Acho que não poderemos mais nos ver...

- O que? Mas por que? O que houve?

- Meu pai está desconfiado... E quer me enviar amanhã para um colégio de freiras.

- Tornar-se freira?! - Cedric questionou surpreso. - Ele não pode te obrigar a isso!

- Não sei o que será de mim, não sei! - Charline abraçou-o falando em tom choroso.

Da redondeza, ouviu-se vozes procurando por Charline. De súbito, sua ama apareceu no local onde estavam os dois. Charline ficara pálida, temia agora o que poderia acontecer a Cedric. No entanto, ele foi extremamente ágil e desapareceu esgueirando-se pelo becos antes que a ama o visse.

- O que faz aqui menina? Vamos embora, sabe que seu pai não tem gostado de seus passeios.

- Apenas me distraí! - Só então Charline percebeu que Cedric havia se escondido e ficou aliviada, enquanto disfarçava os olhos marejados.

Cedric desesperara-se, podia perder sua amada para sempre. Em seu ímpeto, estava já preparando-se para ir até a casa de Charline e enfrentar quem quer que fosse.

- Não seja tolo Cedric! - Padre Rémy o aconselhava. - De que valerá perder sua vida?!

- De que valerá minha vida sem ela padre?! - Cedric estava aos prantos.

- Não seja egoísta! Se algo acontecer a você essa moça sentiria tanto remorso que ficaria infeliz para sempre.

- Então o que eu faço padre, o que eu faço?!

- Por hora não há o que fazer meu filho... Tente se acalmar.

Cedric após muito esforço acalmou-se, mas muito a contragosto decidiu não fazer nada, afinal padre Rémy tinha razão. Na manhã seguinte, aguardou Charline na saída da cidade, a qualquer momento ela passaria por ali em direção ao seu novo lar. Para não perder o momento, aguardou desde as primeiras horas do dia, antes mesmo do sol iluminar os campos. Enquanto aguardava, tentava colocar as ideias em ordem e criar uma forma de impedir que levassem Charline. Sem saber de antemão o que fazer, equipou-se apenas com uma espada curta que ele forjara e vestiu uma capa que permitia esconder seu rosto. Em determinado momento, Cedric ouviu o som de um grupo se aproximando. Tratava-se de uma carruagem tracionada por dois cavalos, que andavam calmamente acompanhando o ritmo dos soldados que cercavam o transporte. Tão boas eram as relações do pai de Charline com a corte que até conseguira um guarnição de soldados para acompanhar a viagem da filha até o monastério.

A coragem de Cedric esvaiu-se, seria rapidamente morto se tentasse qualquer coisa. Enquanto a pequena caravana passava, conseguiu ver Charline através da janela e ambos olhares se encontraram. O que poderia ser um momento mágico tornou-se em uma terrível angústia, pois nada podiam fazer, apenas sentir aquela sensação sufocante de perda. Naquele momento, um pequeno pedaço de tecido envolvendo uma pedra foi lançada por Charline em sua direção. Os soldados não perceberam o movimento e o pequeno embrulho caiu próximo a seus pés. Retirando o tecido da pedra, ele arregalou os olhos e leu a mensagem de Charline: "Notre-Dame de Bellaigue. Me ajude!". Monastério Notre-Dame de Bellaigue, era este o lugar para onde estavam levando Charline.

Cedric assistiu Charline deixar a cidade, mas desta vez, a sensação de impotência deu lugar a um plano para resgatar seu amor. Voltou para casa e foi procurar padre Rémy. Com sua paixão descontrolada havia pensado em um plano perigoso. O monastério de Notre-Dame de Bellaigue era uma grande construção onde funcionava um seminário de padres e um convento de freiras. Apesar de estarem na mesma construção o convento era fisicamente separado do seminário. Seminarista e noviças não se misturavam de forma alguma, salvo pela oração dominical, onde reunidos na grande catedral no centro da construção, noviças ficavam de um lado e seminaristas de outro. Cedric desejava ir até o monastério e apresentar-se para ser um seminarista e assim encontrar um meio de ver Charline e levá-la embora do local. Mas para conseguir isso, alguém como ele teria que ser recomendado, e padre Rémy era a pessoa ideal para colocá-lo dentro do monastério.

- Mas isto é uma loucura Cedric! - Indignou-se padre Rémy.

- Loucura é ficar de braços cruzados! - Replicou Cedric.

- O monastério não pode ser profanado com algo tão insano! Se ao menos você realmente quisesse tornar-se padre.

- Se eu não tiver Charline, nada mais me resta, tornar-se padre pode ser minha única opção. Assim como você padre...

Padre Rémy baixou a cabeça, ele próprio já havia amado uma mulher em sua juventude, após perder seu amor decidiu devotar-se a uma causa mais elevada, e tornou-se padre, um bondoso padre, que cuidou de órfãos e ajudou uma centena de pessoas. Quando jovem, Rémy era perdidamente apaixonado por Victorine, uma bela moça, filha de um família da baixa nobreza, assim como Rémy. Seus sentimentos eram correspondidos pela moça, que entre encontros furtivos e trocas de olhares afirmavam o amor que nutriam um pelo outro. Estavam preparando-se para casar até que um estranho evento separou-os para sempre. Até hoje não se sabe porque, mas Victorine acordou diferente certo dia, era como se não fosse mais ela. Perdera o brilho e a inocência no olhar, e não só no olhar... Saiu naquele dia e dirigiu-se a taberna mais próxima, e lá deu-se a conhecer para diversos homens. Como se estivesse fora de si, entregou-se de forma vulgar, suja e impiedosa. Mais impiedosos eram os homens que a possuíram, que sem o menor puder defloraram a moça, e muitos deles conheciam-na, bem como sua família, mas isto não os fez parar. Ao sair da taberna, deixou homens extasiados para trás, e tinha muito sangue por entre suas pernas. Passou por um córrego local e lavou-se e dirigiu-se para a casa de Rémy. Surpreso com a visita e a julgar pelo trajes pouco modestos de Victorine, Rémy imaginou tratar-se de alguma emergência e levou a moça para dentro de sua casa. Estando sozinhos, Victorine tentou seduzir Rémy assim como fizera com os homens da taberna, ele porém nunca se permitiria desonrar sua amada. Ela tornou-se agressiva em seu objetivo, mas Rémy continuou a declinar, sem entender o que estava acontecendo, pois aquela não poderia ser sua amada. Vendo que nada conseguiria ali, Victorine foi embora e partir de daí tornou-se uma cortesã, e foi viver em um prostíbulo. Houve grande comoção na família de Victorine e Rémy, ninguém entendia o que havia acontecido. Uns diziam que ela havia enlouquecido, outros condenavam Rémy, dizendo que ele desonrara a moça e por esta razão ela ficou tão envergonhada que decidiu entregar-se a uma vida suja, longe da família. Rémy ficara completamente arrasado, o sentido de sua vida tinha se perdido da pior forma, antes fosse a morte a causadora de sua separação. Perdeu completamente a paz em sua vida e após alguns anos, decidiu buscar essa paz numa velha receita, esquecer-se de si mesmo e dedicar-se somente aos problemas alheios. Assim, um que amigo que era padre iniciou-o em um seminário e após algum tempo tornou-se padre. Voltou para sua cidade, mas nunca mais ouviu falar de Victorine. Desde então, padre Rémy sempre carregou consigo esse amor mal resolvido e sempre tentou procurar uma explicação para o que acontecera. Por esta razão, ele entendia bem os sentimentos de Cedric e acabava sempre ajudando-o.

- Por favor padre! Sei que compreende meu sentimento por Charline. Só você pode me ajudar! - Cedric continuava a pleitear sua causa.

- Cedric, se você for visto com Charline, ambos poderão receber castigos inimagináveis! Você estará colocando a segurança de Charline em risco.

- Preciso correr esse risco! Por favor padre! Por favor pai!

- Cedric...

- Não me negue isto, por favor... Minha felicidade depende disso...

Padre Rémy pensou por um instante, e deu sua resposta.

- Tudo bem Cedric... Tudo bem...

Apesar de contrariado, era impossível ao padre Rémy negar isto. Primeiramente porque ele compreendia bem a força desses sentimentos e em segundo lugar era difícil para ele negar qualquer pedido de Cedric, que era um filho para ele.

- Obrigado padre! Não vai se arrepender, pois estarei indo atrás de minha felicidade!

- Eu sei meu filho, eu sei! Estou fazendo apenas por isso... Quero que você seja feliz e viva seu amor.

Padre Rémy preparou uma carta oficial de recomendação para Cedric, que por sua vez preparou suas coisas. O melhor cavalo fora cingido para a viagem até o Notre-Dame de Bellaigue que levaria o tempo de um dia de galope. Ambos se despediram pela manhã, Cedric estava decidido.

- Vou orar por você meu filho.

- Faça isto padre, vou precisar.

- O que vai fazer quando estiver lá?

- Ainda não sei... Mas tenho certeza que no momento certo vou saber.

- Boa sorte Cedric, vá em paz!

- Não estou indo para sempre padre. Em breve nos veremos! Você fará meu casamento! Até mais!

Cedric partiu, sem ter piedade do cavalo impôs ao animal grande velocidade. Cavalgou por horas sem parar até o cavalo demonstrar que não tinha mesma disposição que seu cavaleiro. Foi obrigado a parar para que o cavalo pudesse recompor as energias. O local de descanso era o alto de um monte, dali era possível avistar Notre-Dame de Bellaigue em um planalto pouco distante. Cedric calculou que mais quatro horas de viagem seriam o suficiente e como tinha ganhado tempo com a marcha forçada decidiu descansar um pouco junto com o cavalo. Acabou por adormecer sob a fresca sombra de uma árvore e um sonho formou-se em sua mente. Não reconhecia onde estava, mas era alguma antiga construção, e lá viu a imagem de Charline, e ela estava muito bela, era um sonho agradável. No entanto, o senho tomou rumos estranhos, vira sua Charline mudar seu comportamento, de forma repentina tornou-se sensual e diabólica e agia de forma depravada, tentava fazer com que ele a possuísse, no entanto, mesmo que este fosse um desejo de Cedric, aquela Charline não era sua linda e delicada flor, aquele a quem ele amava. O sonho começou a incomodar, as investidas de Charline tornaram-se violentas a ponto de machucá-lo e fazendo-o acordar de sobressalto. "Que sonho mais estranho! A história de Victorine do padre Rémy deve ter voltado a minha mente. Pobre padre Rémy...", pensou Cedric. Percebera que o descanso foi maior que o planejado e o sol já se punha no horizonte. Novamente impôs velocidade na cavalgada, estava ansioso para chegar e fantasiava que logo veria Charline.

Cedric parou diante da grande porta de madeira do monastério. Sua chegada foi percebida e um dos monges abriu a porta e foi a seu encontro. Descendo do cavalo, apresentou-se e entregou ao monge a carta de padre Rémy. Havia algumas mentiras na carta, esta dizia que Cedric era de uma nobre família. Isto era necessário, ou nem a carta de Rémy seria o suficiente para que Cedric fosse aceito. Foi introduzido ao local e apresentado aos dirigentes, tendo como dirigente maior Frei Ponosse, e finalmente permitiram que se recolhesse aos aposentos. Dividiria o quarto com Félix, um outro seminarista que havia chegado a poucos dias, após alguma conversa tornaram-se bons amigos. Cedric estranhava como um local onde a presença divina deveria ser constante possuía uma atmosfera pesada até mesmo macabra. Seus sentimentos não eram nada bons, talvez fosse a impressão inicial. Estando cansado da viagem, logo adormeceu. Novamente sua mente foi atormentada pelo sonho que tivera naquela manhã, mas desta vez fora mais intenso, fazendo-o saltar da cama e assustar seu companheiro de quarto.

- Está tudo bem?! - Perguntou Félix.

- Ah sim... Desculpe, tive um pesadelo, foi a insolação.

Nos dias que se seguiram Cedric adequou-se a rotina do local, uma rotina de estudos, orações e instruções com os outros monges. Logo tomou conhecimento do encontro com as noviças no domingo e preparou-se para conseguir ao menos ver Charline. Quando todos se reuniram era quase impossível reconhecer Charline, pois todas estavam vestidas igualmente, com o costume das freiras. Ele olhou, procurou, mas nada viu. Quando estavam se retirando do local em fila, os seminaristas seguiam para um lado e as noviças na direção oposta, podiam assim observar os rostos uns dos outros, e finalmente neste momento Cedric viu Charline. Ela tinha o olhar cabisbaixo e triste, por pouco não percebeu a presença de Cedric, mas quando o viu, seus olhos encheram-se de alegria e esperança, quase lançou-se aos braços do amado. Ambos contiveram-se, e limitaram-se a trocar olhares, qualquer movimento impensado seria o fim para eles. Cedric continuaria a estudar o local e a rotina, até encontrar um meio de resgatar Charline.

Havia ainda uma espécie de cerimônia de iniciação que todos passariam em algum momento. Não havia momento marcado para esta cerimônia, quando os monges convocavam, era a hora. Naquela noite, chegou a vez de Félix. Ele estava entusiasmado, a cerimônia tinha grande significado e pelo que se sabe ele seria o primeiro a passar por essa iniciação desta nova leva de seminaristas e noviças. A cerimônia ocorria durante toda a noite, Cedric deixou para conversar com o amigo na manhã seguinte. Apesar de estar curioso sobre o que acontecia na cerimônia, Cedric tinha outro objetivo, e era bom que ele não participasse, não gostaria de ter que fazer falsos votos.

Ao despertar pela manhã, notou o companheiro sentado em sua cama abraçando os joelhos e com olhar distante, parecia estar em algum tipo de transe.

- Félix? - Chamou Cedric.

Não houve resposta.

- Félix? - Chamou com mais intensidade.

Não houve resposta novamente. Cedric levantou-se e foi até o novato.

- Félix? - Chamou novamente tocando-o no ombro.

Félix olhou para Cedric, o olhar estava distante e sem vida, muito diferente do dia anterior. Sem dizer nada baixou novamente a cabeça. Isto estava errado, algo acontecera a seu companheiro.

- Félix! Me diga o que aconteceu! - Cedric chacoalhou o rapaz moribundo.

Novamente Félix olhou para Cedric e finalmente balbuciou algumas palavras.

- Aquela serpente... Entrou em mim, na minha boca... Me sufocou... Algo percorreu meu corpo, me engoliu... Mas era assim que tinha que ser... Era assim... Segundo a vontade "Dele".

- Do que está falando? Que serpente?

- A serpente... E também o animal faminto... Me engolia... Essa era a penitência... Assim tinha que ser...

- O que fizeram com você meu amigo? - Cedric ouvia a atentamente a estranha narrativa.

- Todos recebiam a penitência... As noviças também passavam pela serpente... As vezes é doloroso... Havia gritos... Mas era assim que tinha que ser...

- As noviças?! - Cedric de imediato pensou em Charline. - O que fizeram com elas?

- Todos vamos passar pela penitência, assim tem que ser! É a vontade "Dele"!

Cedric teve um terrível pressentimento, algo muito pior do que simplesmente ser obrigada a ser freira aconteceria a Charline, havia algo oculto acontecendo naquele lúgubre lugar.

O dia seguinte era o domingo, veria Charline mais uma vez. No momento em que se cruzaram, Cedric viu que ela continuava a mesma, com o mesmo olhar apaixonado e esperançoso que ainda o aguardava. No entanto, era impossível não notar o estado deplorável de algumas moças, olhares fundos, aparência mórbida e triste. Provavelmente estas noviças passaram pela mesma cerimônia que Félix. Antes que Charline fosse exposta a isso, Cedric descobriria o que estava acontecendo.

Naquela noite, outro seminarista fora convocado. Cedric tinha muita habilidade para se esconder, pois muito fizera para conseguir seus encontros com Charline. Escondendo-se nas sombras, seguiu o seminarista e Frei Ponosse, o dirigente maior do seminário. Seguiu-os até um local que não havia notado antes, era uma sala constantemente fechada, desta sala partiam escadas para o subsolo. Cedric aguardou que eles descessem e depois seguiu-os.

Nos baixos porões da construção estendia-se um pequeno túnel que passava abaixo da catedral e ligava o Seminário ao Convento, que suponha-se até então serem complemente separados. Caminhando por este túnel chegava-se a uma pequena passagem que levava a um complexo de câmaras. Apesar de ser um porão, aparentemente abandonado, o local era cuidadosamente limpo e haviam algumas coisas como colchões e tecidos que melhoravam o conforto do local. Cedric notou ainda garrafas do que parecia ser vinho em uma das câmaras. Encontrando um local para ficar escondido, observava o que acontecia.

Juntamente com o seminarista havia um noviça trazida por madre Honorine, a dirigente máxima do convento. Após algumas orações ritualística, ambos jovens beberam algo os fez ficarem tontos e submissos, como um animal treinado. Neste momento, Cedric assistiu a uma desprezível e assustadora cena. Seus pressentimentos estavam certos, sua Charline corria um perigo maior do que a morte.

Neste conjunto de câmaras, escondidos dos olhos do mundo e de muitos dentro do seminário e do convento, acontecia tudo aquilo que os internos haviam decidido abandonar do lado de fora. No entanto, o clamor das simples vontades físicas ou por vezes vontades bestiais, eram apaziguadas ali. Diziam seus dirigentes que isto era necessário para manter o conhecimento do mundo, e deste modo, faziam uso constante das câmaras, mas sem comprometer a reputação santa do local.

Frei Ponosse tinha fama de severo, e de fato era, mas ao mesmo tempo gozava de enorme prestígio com a nobreza da sociedade francesa. Igualmente era madre superiora Honorine. O acordo entre madre Honorine e frei Ponosse era muito simples, tratava-se apenas de uma mútua proteção para salvaguardar o bom nome da instituição que dirigiam. Honorine entregava algumas de suas virgens noviças a Ponosse, este por sua vez, iniciava as moças no que chamava de "conhecimento prático do pecado". Em troca disso, Ponosse permitia que seus seminaristas satisfizessem a estranha e insaciável fome da velha madre Honorine. Assim ambos forneciam "material" um para outro, e frequentemente se permitiam usufruir de seus próprios pupilos sem distinção, formando-se um enorme bacanal.

- O que temos para hoje Honorine? - Perguntou Ponosse, observando a jovem já cambaleante com a bebida ao lado de Honorine.

Mal se via o rosto da moça, que estava de cabeça baixa. Seus contornos também eram um mistério, pois estavam cobertos pelo costume das freiras.

- Coisa muito boa! - Madre segurou com agressividade o queixo da moça e levantou seu rosto.

A noviça era muito jovem ainda, seu rosto demonstrava sua inexperiência com a vida e um pouco de infantilidade. Ponosse se agradou do que viu e acariciou o rosto da jovem.

- Entregue-a! - Ordenou Ponosse, com olhar faminto.

- O que tem para mim? - Perguntou Honorine.

- Leve este.

Ponosse introduziu o rapaz e os quatro seguiram para outra câmara. E lá, os gritos de dor e sofrimento misturavam-se aos gritos de satisfação e egoísmo. E lá, os gritos permaneciam, nunca saiam daquelas fúnebres câmaras.

Esse era o macabro ritual, e não se sabe por quanto tempo isso vinha se repetindo. Mas não terminava assim, havia ainda um fruto, um podre fruto. Era inevitável que algumas noviças engravidassem de Ponosse. Para resolver este pequeno inconveniente, as moças eram levadas para as câmaras como de costume, e após o ato de Ponosse, eram novamente dopadas com alguma substância sonífera. O corpo desfalecido da noviça era então ocultado ali mesmo, nas muitas reentrâncias das câmaras, eram "anexadas" às paredes e então cobertas com argamassa, argila ou barro. Algumas tinham sorte, e morriam rapidamente asfixiadas enquanto tornavam-se parte da construção. Outras acabavam por acidente tendo alguma corrente de ar que as mantinha vivas, e quando despertavam do efeito da substância viam se com boca cheia de terra e fechadas em um mundo escuro, e de forma agonizante e desesperadora entregavam suas vidas. Algumas vezes, Ponosse e Honorine ouviam os gritos abafados que vinham de dentro das paredes das câmaras, provenientes de alguma moça recentemente introduzida à parede. Muitas moças foram condenadas ali.

Cedric estava em choque, aquele lugar era o inferno, tinha que sair dali de qualquer modo e levar Charline consigo. Correu com todas as forças e saiu do seminário para dirigir-se ao convento. Um homem a cavalo aproximava-se do local e fora surpreendido por Cedric durante sua corrida. Este homem era padre Rémy, que estava indo até o monastério ver como estavam as coisas com Cedric. Sem um descanso sequer, Cedric contou tudo o que vira.

- Isso não pode ser! É muito grave que está dizendo! - Padre Rémy estava resistente em acreditar.

- Não temos tempo para discutir padre! Charline corre perigo!

Padre Rémy confiou em Cedric. Não permitiria que sua história se repetisse com ele. Conhecendo o caminho, Cedric entrou novamente no seminário e guiou padre Rémy até as câmaras. Novamente, o depravado ritual estava para começar com outra noviça e outro seminarista.

- Parem! Cães do inferno! - Exclamou padre Rémy.

Cedric assustou-se, nunca vira padre Rémy agir daquela forma.

- Quem ousa interromper a sagrada cerimônia? - Questionou Ponosse.

- O que pensa que faz aqui? Por que profana este local sagrado? - Padre Rémy caminhou em direção a Ponosse.

- Ora, um padre. Você é bem vindo aqui! Não faço nada de mim mesmo, sei que parece estranho, mas recebi instrução divina para fazer isso. Não só eu, como também madre Honorine.

- Não blasfeme! Não permitirei que continue com isto!

- E o que pretende fazer?! - De forma repentina, madre Honorine questionou, com estranha voz, era grave e transmitia um profundo terror.

Madre Honorine soltou o braço da noviça que segurava, desfalecida, a moça foi ao chão e teve a cabeça descoberta. Era Charline.

- Charline! - Cedric correu em direção a ela.

Quando Cedric estava passando por Honorine sentiu um forte golpe no peito que lançou-o a alguns metros para trás, golpe este dado pelo raquítico braço de Honorine. Frei Ponosse da mesma forma ficara espantado com madre Honorine, mas diferentemente de padre Rémy, ele acreditava que isto era alguma força divina, pois ela estava "defendendo" o sagrado ritual.

- Cedric! Você está bem?! - Padre Rémy tentou ajudar.

- Sim... Essa doeu! O que esta acontecendo padre?

- Isso... Essa mulher... É um demônio!

- Bem esperto padre Rémy! Acertou!

- O que??? - Frei Ponosse questionou - Demônio?

Madre Honorine olhou para Ponosse, sorriu de forma cínica e dirigiu-se até ele. Sem dizer uma palavra, agarrou-lhe o pescoço com uma mão e com grande força comprimiu as vias respiratórias de Ponosse que debateu-se até sua vida expirar.

- Que bom vê-lo novamente Rémy, senti saudades!

- Nada tenho contigo demônio!

- Tem muito mais do que imagina!

Madre Honorine removeu a cobertura de sua cabeça, revelando sua identidade.

- Victorine?! - Exclamou Rémy. - Maldito, então foi você! Você tomou-a! - Rémy ficara possesso.

A velha mulher, era outrora a bela Victorine. Rémy sentiu uma grande raiva naquele instante, finalmente encontrara o ser que havia levado embora seu grande amor.

- Ela era bela demais para definhar em um casamento com você Rémy, seria mais útil para mim! Eu Asmodeus, precisa de uma bela mulher assim para cumprir meu propósito.

Padre Rémy estava com sentimentos confusos, chorava.

- Maldito! Maldito!

- Não se sinta tão mal padre, você não imagina quantos homens eu satisfiz com Victorine! Fizemos um bom trabalho juntos.

- Cale-se!

Cedric assistia a tudo sem compreender ao certo o que estava acontecendo.

- Cedric! Preste atenção no que vou lhe dizer! Tenho contas a acertar aqui. Pegue Charline e fuja, para bem longe. Não quero que veja o que acontecerá aqui!

- Mas padre... - Cedric tentou argumentar

- Vá Cedric!

- Vai garoto! Assim que eu acabar com o “padreco” aqui eu vou atrás de você, vai me divertir! - Asmodeus zombou de Cedric.

Cedric obedeceu a Rémy, pegou Charline que estava semiacordada e desapareceu pelos corredores das câmaras.

- Venha Rémy, aproxime-se de mim... Ainda sou seu amor... - Asmodeu mudou a voz, para doce voz de Victorine em seus dias de juventude.

- Não comigo Asmodeus. Não comigo... Agora entendo porque me tornei o que sou hoje...

- Não... Você tornou-se padre porque me perdeu, mas agora estou aqui, venha... Me abrace! - Asmodeus continuava a tentar seduzir Rémy. - Não precisa mais ser padre, abandone tudo e venha para mim...

- Não diga mais nenhuma palavra! - Rémy levantou uma das mãos e começou a proferir a oração de exorcismo - Exorcízo te, omnis spíritus immúnde, in nómine Dei + Patris omnipoténtis, et in nómine Jesu + Christi Fílii ejus!

Ao ouvir as palavras, Asmodeus mudou sua fisionomia. Seu rosto aparentava um crânio, não se via os olhos, apenas duas grandes cavidades negras. A boca abria-se com um grito terrível. Tentou avançar contra Rémy, mas os passos eram claudicantes. Padre Rémy continuava:

- Dómini et Júdicis nostri, et in virtúte Spíritus + Sancti, ut discédas ab hoc plásmate Dei N., quod Dóminus noster ad templum sanctum suum vocáre dignátus est, ut fiat templum Dei vivi, et Spíritus Sanctus hábitet in eo. Per eúmdem Christum Dóminum nostrum, qui ventúrus est judicáre vivos et mórtuos, et sæculum per ignem. R. Amen.

Uma grande sombra negra e densa deixou o corpo de Victorine e desapareceu. Padre Rémy correu até o corpo caído e tomou-o nos braços.

- Victorine!

Os olhos da mulher se abriram.

- Rémy! Que bom vê-lo! - Esta era a verdadeira Victorine.

Padre Rémy abraçou-a com muita ternura.

- Eu te amo Victorine, nunca deixei de amar...

- Eu também... Eu também... Me desculpe por não ter sido mais forte...

- Eu que peço perdão por não te proteger...

- Rémy, tenho orgulho de você. Tenho orgulho do homem que se tornou, pelo bem que tem feito. Obrigado... Obrigado por me libertar, só você poderia fazer isso. Agora vou em paz, e quero que fique em paz...

Padre Rémy abraçou Victorine com mais força.

- Vá em paz meu amor... Vá em paz...

Victorine se fora, nos braços do amado. Após tantos anos, o mistério revela-se. Cedric e Charline partiram, finalmente juntos poderiam viver seu amor em algum lugar.

* * *

- Onde estou? - Perguntou-se Ponosse, tentando reconhecer o local sombrio onde estava.

- Onde acha que está idiota?! - Uma voz zombeteira foi ouvida.

- Quem está ai?

- Não me reconhece mais, nos divertimos tanto!

- A voz divina! A voz divina que me revelou a cerimônia sagrada! Me salve Senhor!

- Salvar?! - Uma forte gargalhada foi ouvida. - Ponosse, olhe a sua volta, você está no inferno! O lugar que você merece!

- Mas porque, eu só fiz que me foi mandado! Não é justo! Fui enganado!

- Enganado? Ora Ponosse, não seja hipócrita. Foi tão fácil você aceitar tudo o que eu lhe "revelei"!

- Aceitei porque achei que era realmente divino! Não é justo, fui enganado!

- Como vocês homens são falsos... Quantas e quantas vezes e por quanto tempo você aprendeu sobre a vontade de seu Deus. Você se tornou para para fazer a vontade "Dele", no entanto, você nunca o fez... Não ajudou ao podre, bateu a porta na cara do faminto e viveu para receber favores de nobre ricos. E quando eu te apresentei algo que agradou sua mente, ou melhor, seu corpo, você não titubeou em obedecer. Quem é o culpado Ponosse? Quem é? Sou eu? Ora, alguma vez te obriguei a fazer algo? Você fez porque quis seu tolo, fez porque te apresentei algo que lhe agradou, mas nunca fez a vontade daquele que considera seu Deus. Claro, é muito mais fácil fazer o que queremos, e melhor ainda, é muito mais fácil acreditar em algo que agrada nossa mente. Seu tolo! Me fará companhia de agora em diante!

- Não!!! - Ponosse gritou, mas logo sua voz foi abafada.

LeoLopes
Enviado por LeoLopes em 11/03/2011
Reeditado em 11/03/2011
Código do texto: T2841687
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