Nada

O Homem Metade

Eu realmente esperava que o nada fosse... Algo que não doesse. Esse nada. Tem umas imagens. Difíceis, difíceis de admitir. Há tanta dor ainda. Você, por piedade, pode emprestar um pouco? Em mim há muito sofrimento. Preciso de parcelas. Dividir essas aflições. Para me multiplicar. Em um só homem. Sei que ser um só homem é raro. Raro também é acreditar na possibilidade de viver. Acho que eu estou indo. Bem. Eu estou me esforçando. Metade de mim na morte. Uma parte que tenho que aceitar. Um fragmento de metal. Minha metade reluzente que me faz mais obscuro. E eu esperava que o nada não tivesse significação nenhuma. Mas o nada tem. Porque significação nenhuma só há na morte. Hoje eu me preocupo. Com esse nada que me delata. Que me delata para a vida. Metade de mim sente. Metade de mim sonha com você. Não são sonhos eróticos. Não são fantasias oníricas. Eu sonho com o calor. Eu sonho com o sorriso. Eu sonho com o aconchego de dois braços. Eu me recordo, toda noite, antes de dormir, das mortes. Que eu fui responsável. Eu matei homens por não serem homens. Mulheres, por não serem minhas. Crianças, pela crueldade. Matei mesmo sem motivos. Cada morte está gravada em meu corpo. Cada golpe está na impossibilidade de respirar. Cada grito se revela em meu desespero. Não me arrependo a esta altura. Só não gosto de lembrar. Não me orgulho. Os tempos eram outros. Havia tanta vida. Havia tanta maldade. Havia tanta guerra. Que matar era um espetáculo que se via toda hora. Os homens tratavam disso como quem trata de uma comédia. Assistiam impotentes: a morte de seus semelhantes. As coisas se repetiam. Os massacres. As hecatombes. A desvalorização da vida. Não valorizei a minha. Você pode emprestar um pouco do meu sofrimento? Dói tanto que chego a pensar que é mentira. Como então iriam querer abater uma dor de algo como eu? Mas é que só há EU. Não existe mais ninguém. Você tem que emprestar. Neste mundo só uma vida respira o passado dos homens. Um passado sujo. Um presente turvo. Um futuro ermo. Mas é o que tenho. É o que sou. E não há ninguém. Então pegue. Pague um pouco pela parte pungente. Prove um pouco. Porque assim eu me privaria de um nada que preenche a imensidão da agonia. Agora que tudo acabou. Pegue um pouco pra que eu não me sinta tão só. Não posso morrer. E a morte está tão só. Como eu estou. Eu apenas. Nessa imortalidade. Nessa testemunha execrável. Eu vejo as ruínas das cidades. Nenhum corpo. Nenhum osso. Apenas pó. Que, com o vento, vem aos meus olhos. A dor aumenta. Vejo pouco. Vagamundo. Ponha uma pouco do meu sofrimento na boca e engula. Ele levar-te-á ao sono. Beba apenas um pouco. Não há mais julgamentos a fazer do passado. Nenhum homem vive para fazer julgar. Nenhum homem vive para usar suas mãos. Eu só tenho uma. Nenhum homem vive para me ouvir. Para ter pena. Ter nojo. E vergonha dessa condição. Estão todos mortos. Não perpetuaram para florir a terra de que tiraram a alma. A natureza está adormecida. Embaixo dos esqueletos de pó dos homens, das mulheres, da infância, da memória, da vida... Eles estão todos mortos. Mas eu. Eu ainda me pergunto quem pode aplacar a minha dor? Quem pode dividir? Quem poderá me dizer que apesar de tudo... Que embora eu não queira redenção... Quero apenas multiplicar. E para isso é preciso ao menos dois. Um com um não é nada. É apenas um. É esse nada que me dói. É esse nada que eu sou.

DominiCke Obliterum
Enviado por DominiCke Obliterum em 09/03/2011
Código do texto: T2837864
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