A mascaração (Um delírio carnavalesco)

Por Ramon Bacelar

Estridentes, cacofônicos, tumultuosos, assim são os sons que envolvem os foliões venezianos na Temporada das Alegrias e Encantos Pueris, assim respira a Praça São Marcos em época de carnaval.

Escondido no escuro solitário de uma gôndola emborcada, um anão respira fundo, olha para os lados mas antes de decidir a direção, suspende o pescoço estudando o cenário com a cautela de um ourives medieval: solitários embriagados de movimentos convulsivos esfacelam nas calçadas como fantoches desconexos, cavaleiros plumosos em cavalos imponentes escoltam damas emplumadas com a leveza de pássaros sonambúlicos, máscaras de gesso mascarando mulherengos incuráveis racham sob o grito e o peso de desejos reprimidos; e fora do seu campo de visão na Ponte dos Suspiros, escorada no parapeito como um manequim desarticulado, uma melancolia sustentada em duas pernas, carne e rugas, borra uma máscara de spray cinza-prata com lágrimas que jorram de cílios postiços como fontes de água clara: a idosa enxuga o rosto, vasculha o cenário, e em meio a danças, beijos, sorrisos e outras mascarações, grita para o policial: o Pierrot mascarado, é ELE!!

O anão agarra a bolsa e salta para outra gôndola estacionada como se sua vida dependesse disso.

Um ruído indistinto fere os ouvidos, mas antes de assimilá-lo por completo, um grito igualmente abafado porém mais distinto, o impulsiona para a calçada:

-PEGA LADRÃO!

Por entre plumas, pernas e danças o Pierrot pequenino serpenteia pela colméia humana como um pássaro na agonia do escape, enquanto um mosaico de botas, penas, fivelas e adereços confundem sua visão pressionando sua máscara de gesso, seu casulo de mascaramento e proteção, ferindo-a com cortes diagonais e lacerações com jorros de sangue branco; suspende o pescoço com movimentos cautelosos, mas antes que as retinas absorvam a totalidade dos detalhes, uma rede branca de máscaras e fendas captura sua visão e o aprisiona em olhos de abismo e sorrisos de gesso, encarando-o de cima como olhares curiosos refletidos em um espelho invertido:

- Pierrozinho pequenino da mamãe.- Grita a columbina alcoolizada.

-Coisinha mascarada do titio.- Sussurra no ouvido uma caricatura de ocultação.

-Comidinha pros meus filhotinhos, nhaaammm!!! – Gralha um mascaramento de corvo.

-Um...dois...três: pintorzinho de rodapé, baixotinho do pa-pai!!! Ahahahahah!!!- Declamam em uníssono, vozes de desprezo e preconceito em mascaramentos de rotina e naturalidade.

Fecha os olhos,

Ahahahahah!!!

Tampa os ouvidos,

Ahahahahah!!!

mas a estridência da chacota é maior que suas mãozinhas de gato nas orelhas,

Ahahahahah!!!

O anão enrubesce em delírios de cautela e asfixia: abaixa a cabeça, respira fundo e quando as risadas sufocam pela marcha alegre do festejo, olha para os lados e nota a calçada alargar e ceder espaço para um novo fluxo de passos, pressões, olhares e novas mascarações.

“Preciso terminar o que...Sinto-me como...”

O pensamento sufoca por uma vaga de tremedeiras e calafrios que o envolve como uma manta de vapor frio, sente o corpo enfraquecer e a energia esvair.

“Que...Quem...”

Passa os dedos pela máscara trêmula sentindo as rachaduras alargarem e fundirem-se às fendas do nariz, olhos e orelhas.

“Quem... S...”

O corpo estremece no mesmo instante que gotas de sangue branco umedecem sua identidade em ruínas, escapando pelas fendas e rachaduras da face-que-não-é.

“...Sou”

O anão estremece e agoniza em meio a mascaramentos indiferentes de olhares dissimulados e risadas estridentes; fecha os punhos, enrijece as pernas e com um último resquício de energia arranca a ruína de gesso mascarando sua face.

“...Eu?”

Como um último suspiro agonizante, toca na antiga cicatriz, mas antes da escuridão clamar por território, sente uma descarga de energia invadir o seu espírito e penetrar em suas narinas como um bálsamo revigorante: o anão libera os pulmões expirando refluxos de alívio e leveza, e uma antes tímida e humana identidade privada agora domina sua persona pública, triunfa em sua máscara de carne.

“..simplesmente sou.”

Tateia sua face, pressiona a memória: “Casa, filhos, amigos, espelhos...”, lamenta sua vida, seus atos, roubos e mascarações.

“...não preciso terminar o que comecei.”

Respira fundo sentindo as curvas e textura de sua face; avalia a aderência do seu casulo de carne: a elasticidade da boca, a rigidez das bochechas, os sulcos da testa, e com a promessa de uma vida honesta e mascaramentos de outra natureza, arremessa a bolsa furtada no canal como se arrancasse uma máscara de auto-engano.

“Não preciso.”

O anão avalia as escolhas, pesa as possibilidades e decide ir em direção à feira pela área sul, distante dos sons, risos e desprezos ocultados em gessos multicores, mas seu parco senso de alerta não lhe atenta para o fato que sua estatura denuncia mais do que mascara e que sua máscara, para seus inimigos, nada mais é que uma ingênua tentativa de ocultação: o avesso do avesso.

***

Os sons distantes do festejo resvalam nas barracas e retornam aos ouvidos como indistintos farrapos sonoros, enquanto anúncios estridentes de vendedores ambulantes circulam pela feira como vampiros à procura de saciação; o anão absorve o cenário multicor como um artista obsessivo sugado em sua própria criação: uma fileira de tendas aqui, uma aglomeração de barracas ali, uma exposição de pinturas acolá, e da periferia da visão, ferindo o horizonte como uma chaga arquitetônica, uma estrutura angular semelhante a uma asa de morcego suga a atenção e o impulsiona ao seu objetivo: anda, suspira, corre, para, avalia... Encara a estrutura e estaca: olha para olhos como fendas, fendas como cavidades nasais, orelhas como asas e antes de ser sugado para dentro por uma boca abismal, percebe que a estrutura não passa de uma tenda em forma de máscara (ou seria uma máscara ocultada como tenda?).

Sugado para o casulo de incerteza e escuridão, para a essência da mascaração que era o interior da tenda, o anão apalpa as laterais à procura de apoio, mas a pressão exercida sobre a lona força um zíper que permite a entrada de um feixe de luminosidade natural que desmarcara a ocultação: cercando-o como tentações inconscientes, um semicírculo de prateleiras e estantes cede sobre o peso de perucas, maquiagens e máscaras...mascaramentos de estilo e feitura delicados. O anão, como se intoxicado pelo moribundo passado recente, é atraído para a mascaração como uma espiral imantada: águias, palhaços, columbinas, rufiões e outras frustradas tentativas de representações faciais o encaram com bocas de imã e olhares de tentação, mas o seu renovado senso de identidade lhe alerta para o perigo das escolhas: o passado que não é passado.

O anão suspende a cabeça e em um gesto decidido gira o corpo em direção à saída, mas antes do segundo passo sente algo flácido nos pés como uma bexiga murcha; corre para fora e examina o objeto no mesmo instante que uma lembrança petrifica suas órbitas e lhe mostra a realidade de sua condição: em suas mãos um espelho murcho, sua antiga máscara de carne sem a cicatriz facial que lhe serviu como passaporte para uma vida de roubos e mascaramentos; ao seu redor, símbolos de uma vida passada acendem uma recordação atentando-lhe para o fato que no centro da tenda mascarada, no âmago da mascaração, um dia sua face foi cortada em um rito de passagem para o crime, e no chão, esparramada como uma arraia flácida, a máscara de pele e músculos do seu antigo eu encarava melancolicamente a cicatriz brilhosa em sua nova face que pulsava convulsivamente como um criminoso coração das trevas.

O anão suspira e sente, mais uma vez, a energia esvair; toca na ferida facial, seu crime de carne, respira fundo e antes que sua antiga face lhe escape pelos dedos, agarra-a firme, suspende o pescoço e a coloca por sobre a cicatriz como uma lápide do seu passado de enganos e mascaramentos.

Abre os braços, respira fundo e com a leveza de uma pena flutuante, retorna a casa, para os filhos, para uma nova vida de desejos, acertos, conquistas e talvez...novas mascarações.

FIM

Ramon Bacelar
Enviado por Ramon Bacelar em 05/03/2011
Código do texto: T2830274
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