AS CINZAS DA QUARTA-FEIRA
I
Ana despertou com um sobressalto. O baque seco das baquetas contra a pele esticada dos repiques parecia ecoar diretamente em seu cérebro, era como se sua cabeça fosse um dos instrumentos atacados com ferocidade pelo espírito contagiante da época. Uma fisgada lancinante apertava sua nuca, mas a dor não se fixava apenas nesse ponto, ela se espalhava, dominante, por cada articulação e músculo.
Com um redemoinho afligindo-lhe a mente, e com um torpor se espalhando como uma onda pelo corpo, a capacidade de compreensão acerca da situação ao seu redor ficava muito comprometida. Ela iniciou uma contagem mental, enquanto respirava pausadamente. Assim, aos poucos, a realidade começou a se tornar mais nítida. Mas, diferentemente do que se poderia imaginar, a clareza não lhe trouxe o conforto esperado, pelo contrário, a nova percepção chegou acompanhada de um incômodo tão ou mais intenso do que as alfinetadas já presentes. Ana estava presa. Irremediavelmente encarcerada na própria casa.
O som estridente das marchinhas, o entusiasmo em forma de gargalhadas, a fúria dos tambores. Não havia qualquer dúvida, o calor do bloco arrastava uma multidão pelas ruas. Ela conhecia aquela energia, durante toda a sua existência vivenciara ano após ano cada fagulha do reinado de Momo. Ana respirava carnaval. Seu coração palpitava no ritmo dos tamborins. Não havia no mundo algo que pudesse preenchê-la tão intensamente quanto a perspectiva que cercava os dias de folia. Pelo menos era isso o que ela pensava até conhecer Ezequiel, nesse mesmo período, há um ano.
II
Naquela noite, Ana rodopiava no centro da quadra de ensaios. O pavilhão de três cores, pelo qual ela nutria incondicional devoção, tremulava com intensidade sob seu poder. A garota empunhava o mastro da bandeira como se tivesse a capacidade de tornar em vida o tecido inanimado.
Ana era apenas a segunda porta-bandeira da agremiação, mas, naquele momento, seu desempenho a tornava o centro das atenções, o motivo de todos os olhares. Foi nessa amálgama de rostos que seus olhos de ébano cruzaram com os traços robustos, porém cativantes, do desconhecido que mudaria para sempre sua vida.
O vigor dos seus braços pareceu fraquejar. O gingado das pernas travou em descompasso. Se estivesse em plena evolução sob as luzes do espetáculo, certamente teria comprometido o alcance da nota máxima.
A partir dali, Ana e Ezequiel não mais se separaram. O casamento tornou-se a conseqüência natural de um magnetismo tão avassalador.
Com a alegria plena no coração, a porta-bandeira brilhou intensamente na avenida. A leveza da alma a conduziu em movimentos perfeitos, a felicidade transbordava pelos poros. A promoção ao primeiro posto, promessa para o carnaval seguinte, estava mais do que garantida.
III
Dizem que o ano só começa, de fato, depois do carnaval, mas para Ana e Ezequiel, uma nova vida havia começado. Porém, o castelo começou a ruir quando o rapaz, por conta de novas convicções, passou a rejeitar e, até mesmo, condenar conceitos e atividades que faziam parte do dia-a-dia do casal.
- Entenda, Ana. Os feitiços e as tentações da esfera mundana deturpam e corrompem a grandeza da alma humana.
- Eu entendo, meu amor. Mas precisamos ser mais flexíveis, pois nem tudo pode ser tratado a ferro e fogo.
E, realmente, ela entendia os motivos do marido: a decepção com as futilidades, o egoísmo cru perante o próximo, ele chegara a um limite instransponível. Caso não transformasse a própria existência, a espiritualidade, certamente entraria em colapso. Mas, ao mesmo tempo, Ana se sentia pressionada pela lâmina afiada do conflito interior. Não era fácil abrir mão dos sonhos, principalmente quando eles eram arrancados do seu peito por alguém que tanto amava.
- Ferro e fogo, você diz. Com a rigidez do ferro, devemos dobrar os joelhos perante a força maior que move o universo, enquanto a grandeza do fogo traz a purificação do espírito. Entenda, Ana. Não há salvação sem esforço. Não há recompensa sem sacrifício. Tudo aquilo de que abrimos mão hoje, retornará em dobro quando o mundo mudar, quando a carne se tornar cinza e a alma se elevar.
Não havia maneira de contornar a situação. Ezequiel parecia irredutível em seu novo modo de agir e pensar. De nada adiantava argumentar, apelando para o fato de que ele já a conhecera assim, ou que o ambiente e os hábitos eram comuns aos dois. A ela só restava se rebelar contra a imposição de algo que não lhe pertencia em essência, ou aceitar tudo em nome da nobreza do sentimento que nutria. Ana escolheu o amor. E, resignada, resolveu mergulhar com a mente aberta nas possibilidades que se abriam em sua vida.
A rotina mudou. Atos, vestes e comportamento se adaptaram. O brilho dos paetês foi enterrado na escuridão fria dos armários. No entanto, no percurso inglório dos longos meses, lágrimas tristes insistiam em rolar pela maciez do rosto miscigenado. Ana sofria em conformada mudez, mas, às vezes, até mesmo o silêncio pode alcançar quem lhe escute.
IV
A garota olhava para a noite, ela gostava daqueles momentos de solidão, não que a companhia de Ezequiel lhe desagradasse, longe disso, mas estar naquele local, defronte para o vazio, era a única oportunidade em que podia pertencer a si mesma. Ela podia ouvir seus pensamentos, podia ouvir muito mais...
No início, Ana não julgou a sonoridade trazida pela brisa morna como uma voz. Lembrava, sim, um sussurro, mas não algo que pudesse se originar de uma garganta humana. A perfeição que emanava em ondas superava facilmente qualquer nota, até mesmo as executadas pelos melhores tenores.
Como era bom ouvir aquela melodia, como era bom ouvir seu nome proferido pela boca de um anjo...
- Ana! Ana! Meu Deus, Ana! Saia daí! Saía daí!
Revestido pelo desespero, Ezequiel gritava enlouquecido. Com a urgência nos pés, ele tentava vencer a distância até a janela. A mulher, em aparente transe, se esgueirava perigosamente pelo beiral. O contraste da voz do marido, como um samba atravessado, quebrou a cadência que conduzia o corpo esguio com a leveza das plumas. Ana despertou, e seu tronco girou como num bailado improvável. A queda parecia certa, mas os braços providenciais enlaçaram-na no ar.
- O demônio, Ana. O demônio estava em você. Ele quer fazer morada em seu coração. Não deixe que ele vença, Ana. Não deixe que ele vença.
Ezequiel segurava a cabeça da mulher com as duas mãos. Ele a sacudia como se quisesse arrancar a força maligna com o poder dos gestos. Ana chorava, enquanto a saliva do marido espirrava em seu rosto e as palavras de ordem espancavam seus tímpanos.
Os dois se abraçaram, o suor como argamassa. Ela, sem entender exatamente o que se passava. Ele, com a convicção revestida pela fé. Em comum apenas a certeza acerca de suas próprias verdades.
V
Os dias seguintes foram terríveis para Ana. Por mais que ela tentasse manter a normalidade, o episódio da janela parecia conspirar contra sua vontade. Ezequiel, em toda e qualquer oportunidade, a utilizava como exemplo vivo do poder de persuasão do mal. E, para piorar, ela mesma passava a duvidar se não estaria sendo alvo da ação nefasta das trevas. Mas não era exatamente isso o que a incomodava. Ela perdia o sono por sentir falta daquela sensação, daquela voz que a fizera flutuar, como se estivesse em plena evolução na avenida, sob os aplausos da multidão.
O carnaval se aproximava, e com ele a agitação no coração da porta-bandeira. Era impossível domar a ansiedade. Se ao longo dos meses a hesitação brincou com seus sentimentos, com a proximidade da desejada data, a chuva de chamadas na televisão, a agitação nas ruas, os preparativos de um modo geral, trataram de por uma libra a mais na balança. Ela estava decidida, perdera o posto de destaque na agremiação, mas não deixaria de cruzar a passarela, mesmo sob os protestos e os problemas que inevitavelmente surgiriam.
Um sorriso espontâneo brotou em seus lábios, mas, com a mesma naturalidade com que surgiu, a expressão se desfez quando seus olhos encontraram a reprovação enigmática no semblante do marido. Ezequiel a conhecia bem. Ele entendia com perfeição as particularidades de sua alma. Não foi preciso que Ana dissesse uma só palavra, ele já sabia o que ela pretendia.
- Como você pode pensar uma coisa dessas, Ana? Como? Essa é uma festa profana, uma exaltação ao demônio! Você não vai sair de casa. Vai ficar trancada pelos próximos quatro dias. Entenda, é para o seu próprio bem.
- Não, Ezequiel, não é. É uma festa do povo, uma manifestação legítima. A maldade está no coração das pessoas, e eu não carrego nada de ruim em meu peito, posso lhe garantir. Algumas horas, meu marido, apenas algumas horas, não te peço mais nada.
Com o coração partido, Ezequiel suspirou. O dorso de sua mão direita rasgou o ar encontrando o rosto delicado da garota.
- É para o seu próprio bem. Daqui você não sai.
Ana tentou se debater, mas contra os músculos do marido ela nada podia fazer. Inconformada, a mulher foi arrastada pelas escadas e jogada na cama. O estrondo da folha de madeira e o clique seco da maçaneta doeram muito mais do que a bofetada. Mas, o pior ainda estava por vir. Ela mal pôde acreditar quando viu Ezequiel, a pessoa que mais amava no mundo, irromper novamente pelo quarto. Ele trazia uma longa corrente nos braços, além de um par de cadeados. Ao exibi-los, sua voz soou muito mais fria do que o metal que ela logo experimentaria na pele.
- É para o seu próprio bem, Ana. Aqui você estará segura. Estará livre das tentações. – Ele não se cansava de repetir, enquanto a preparava.
Como uma serpente ardilosa, os elos abraçaram um dos esguios tornozelos da garota. Ela tentava se lembrar de algum verso que pudesse retratar o que sentia, mas não havia poesia capaz de traduzir tamanho sofrimento. Ao ver o marido se distanciar, Ana, num último esforço, tentou correr em sua direção. Mas o enlace apertado não a deixou ir muito longe, a liberdade limitada tratou de lembrá-la de sua existência. O corpo quis seguir, mas a perna não deixou. Durante a queda, os braços em movimento buscaram apoio numa das prateleiras fixadas à parede, mas o resultado obtido correspondeu ao vôo de um buquê de rosas plásticas, além do inevitável encontro entre a delicada cabeça e a cerâmica do jarro.
Ana sentiu os lábios frios da escuridão beijando-lhe a face, o afago contrastou com o toque morno do filete rubro que escorria. O mundo girava ao seu redor. A porta já estava cerrada quando as pálpebras não suportaram a pressão do próprio peso...
VI
Sua cabeça latejava. Lá fora, os tambores, chocalhos e tamborins atiçavam o canto desencontrado e o grito dos foliões. Já era noite, mas não uma noite qualquer, era carnaval. Demorou para que ela encaixasse o raciocínio, mas a certeza em sua perna e o sangue seco na testa não deixavam dúvidas: ela estava presa. Irremediavelmente encarcerada.
Sentada no chão, Ana abraçava os joelhos na esperança de que a solução lhe oferecesse uma das mãos.
“Ana... Ana...venha comigo...”
Mesmo com toda a algazarra carnavalesca, a garota tinha a impressão de conseguir destacar a sonoridade familiar dentre o coro de inúmeras vozes. Não, não era lá de fora que vinha a voz. Ela lhe falava diretamente à cabeça. Como era doce aquele timbre...
“Ana...eu sou a liberdade que você busca...venha comigo, vamos sair daqui...”
- Onde você está? Onde você está?
“Aqui, Ana. Sempre estive aqui. Venha comigo...venha comigo...”
De alguma forma estranha, a voz insinuava a direção em que a garota deveria olhar. Tremendo dos pés à cabeça, ela tentava se esquecer da dor. Suavemente, Ana arqueou o corpo, deixando o rosto bem rente ao chão. Seus olhos buscavam o ponto específico, enquanto os dedos tentavam desobstruir o caminho bloqueado pela colcha. O alívio estava lá, envolto pelas sombras sob a cama. Ana sorriu...
VII
Ezequiel tentava romper a barreira formada pelos foliões. Ele maldizia a si mesmo por um dia já ter sido um daqueles perdidos, um fraco sem orgulho próprio. Ao dobrar a esquina, mesmo irritado, foi impossível não notar a imagem que cruzou, numa fração de segundo, a brecha entre as cortinas, no quarto do andar superior de sua casa.
O coração disparou. As pernas bambearam. Para enfrentar aquilo, ele precisaria bem mais do que a própria fé. O homem saiu em disparada, empurrando os inúteis que se aglomeravam pelo caminho. Ele tinha a impressão de que todos gargalhavam dele, zombavam do seu desespero, mas não havia tempo a perder, precisava salvar sua esposa.
Com a urgência a lhe chicotear, ele ganhou as dependências da garagem. Seus olhos dançavam de um lado para o outro, nada parecia servir a seus propósitos, até que vislumbrou um achado sob as sobras de caixas de papelão.
De posse do que queria, Ezequiel chutou a porta e cruzou o corredor principal, mas antes de saltar de dois em dois os degraus da escadaria, ele ainda passou pela cozinha, talvez só tivesse uma chance, pensou.
Chegando ao quarto, foi assaltado por uma visão muito mais aterradora do que jamais poderia supor. Sua esposa, sua amada Ana, estava sob o domínio de uma força nefasta. Uma estrutura de escamas negras e reluzentes parecia ter se apoderado do corpo da mulher. Dentes afiados mordiam-lhe a cabeça, asas abertas, como as de um imenso morcego, exibiam o domínio dos limites. Era o demônio, não havia como negar. E ele empunhava uma lança, cujos dentes aguçados mastigavam retalhos de pele humana.
Ezequiel não se intimidou, mesmo diante de tamanho horror. A força de suas palavras expulsaria a maldita serpente do corpo da esposa. O demônio resistia. Ana parecia querer se comunicar, mas de sua boca não saia nada compreensível aos ouvidos do homem. Só havia o sibilar hediondo do idioma dos infernos.
A besta era forte, muito forte, ela se negava a largar o corpo da mulher. Ezequiel caminhou em sua direção, mas o demônio avançou, tentando agarrá-lo. Não havia jeito, a carne mortal já estava comprometida, mas a alma ainda poderia ser salva.
Com lágrimas escorrendo pelos sulcos do rosto, o homem atirou para longe o lacre do recipiente. Ele precisou de muita determinação para despejar o líquido sobre o corpo possuído. O demônio urrava por conta do contato úmido. Com a chama nas mãos, Ezequiel suspirou antes de atirar o palito.
- A grandeza do fogo traz a purificação do espírito.
As labaredas consumiram a mescla estrutural dos corpos unidos. Os guinchos de dor da criatura se espalhavam pelo ambiente, enquanto ela se debatia sem conseguir sair do lugar.
- Quando a carne se tornar cinza, a alma se elevará.
Ezequiel observava, extasiado, a vitória. A voz da criatura era horrenda...era bestial...era...era...familiar?
- Ana! Ana! Por Deus, Ana! O que eu fiz? O que eu fiz?
Não era um demônio diante dele. O que seus olhos nublados viram não passava de uma fantasia de lantejoulas reluzentes. Mesmo devorada pelo fogo, Ana não largou o mastro com a bandeira. Besta e lança ardiam em chamas. Seu delírio respondia pelo sonho inofensivo de uma amante do carnaval. Sua voz interior clamava para ser ouvida...
VIII
Ezequiel havia terminado de incinerar o corpo da esposa. Diante dele, não havia qualquer sinal de salvação, só havia dor e nada mais. Ele não nutria sonhos ou projetos, como Ana. A sua própria maneira, tudo o que ele sempre quis foi zelar pelo que achava certo, pelo bem da família. Família esta que estava, literalmente, reduzida a pó. Mas ele poderia fazer alguma coisa por ela, mesmo que de forma tardia.
A escola cruzava a avenida. E, entre a chuva de confetes e serpentinas, uma nuvem cinzenta encontrava seu brilho próprio.
Ana desfilava, não como queria, mas enfim desfilava novamente. Mas Ezequiel não estava satisfeito, pois em sua mente confusa ainda pairava uma dúvida: Ele desejava saber se, em meio ao calor da bateria, alguém conseguiria perceber um estampido seco ecoando...
Naquele carnaval, as cinzas chegaram antes da quarta-feira...
Obs.: O que o texto descreve é pura ficção, portanto não expressa em hipótese alguma a opinião do autor.