O ARQUIVO MORTO
A aflição deve ter sido realmente grande. Algo de francamente assustador aconteceu naquele sonho para ele ter pulado da cama daquele jeito. Foi horrível. Saltou como se tivessem atirado uma cobra em sua cama, ou então alguém o tivesse atacado com uma faca ou coisa parecida. Parecia um gato, no qual alguém jogara uma panela de água quente. Na queda bateu com a boca na quina do criado mudo e logo sentiu o líquido quente e viscoso a descer-lhes pelos lábios. “ È sangue”, concluiu.
Estava escuro, muito escuro no quarto. Sua mulher havia acordado com o barulho que ele fizera na queda. Mas ela já estava acostumada com esses acontecimentos. Já acontecera outras vezes. Volta e meia ele tinha desses rompantes noturnos, onde ele chutava, mordia, socava o ar e batia em tudo que estava perto. Não foram poucas as vezes que ela levara socos e caneladas dele dormindo. Por isso ela exigira a troca da antiga cama por outra, bem larga, para que ela pudesse manter uma boa distância entre os dois. Era isso ou então iriam dormir em camas separadas.
Ele preferiu a segunda alternativa. Comprou a cama mais larga e fizeram o acordo. Ele iria dormir mais cedo e ela sempre um pouco depois. Acordo que a ela serviu muito bem, pois era seu costume ficar até mais tarde trabalhando no computador. Seu trabalho como webdesigner rendia mais na madrugada e por isso ela já ia dormir muito tarde habitualmente. Assim, se na hora em que ela fosse para a cama, percebesse a agitação no sono dele, prenúncio da tempestade que se passava na sua mente, ela já ficava de sobreaviso e não deitava sem a muralha de proteção dos travesseiros, que ela sempre colocava nessas ocasiões.
Coisa estranha, ela pensava. Afinal, como pode um homem tão calmo quando acordado ser tão agitado e violento dormindo? Ela o conhecia há mais de trinta anos. Há mais de dez convivia com ele. Durante todo esse tempo nunca o vira sequer maltratar uma pessoa, nem com palavras ou gestos, quanto mais com comportamentos agressivos. Não fazia mal a uma mosca.
Era comedido, carinhoso e extremamente gentil com todos. Entretanto, quando essas coisas aconteciam no sono, ele se transformava numa pessoa completamente diferente. Seus olhos pareciam duas brasas furiosas, queimando de ódio e desejo assassino; sua testa transpirava como se estivesse lutando pela própria vida. Todo seu corpo parecia uma fúria só, possuído por uma entidade cuja paixão era uma só: lutar, lutar.
Contra o que ele lutava tanto, perguntou-lhe um dia. “Se eu soubesse, se eu conseguisse me lembrar”, disse ele, com um suspiro, “talvez eu pudesse controlar isso.” Sim, sem dúvida, ele gostaria muito que esse Mrs Hyde que se hospedava no seu inconsciente desaparecesse e nele ficasse apenas o Dr. Jekil que ele era em estado de vigília.
Não gostava nada daquela duplicidade de caráter que se manifestava durante o sono e que já lhe rendera um dedo quebrado e agora, neste último tombo, seis pontos no palato superior. Ficou com uma feia cicatriz no rosto, como se tivesse nascido com lábios leporinos. Isso o irritava muito. “Se ao menos tivesse ganho essa cicatriz numa briga de verdade, por alguma razão relevante”, dizia ele, “ talvez tivesse valido a pena.”
Foi então que ele foi procurar um terapeuta.
“Você precisa aprender a lidar com a própria mente” disse o terapeuta. “Nossa mente é como um computador, que é programado pela linguagem”, disse o barbudin ho esquisito, que ficava recortando figuras de papel enquanto ele falava..
“Você vê um pássaro voando e deseja voar igual a ele. Então sua mente constrói uma imagem de você voando como um pássaro. Essa imagem é a linguagem da mente inconsciente, ou seja, é a mente profunda se comunicando com você. Mas você sabe que não pode voar. Então sua razão, que é a mente consciente, bloqueia essa imagem e não deixa ela passar para os nervos e músculos. Quem fala é a linguagem da razão, a linguagem de superfície. A nossa mente profunda, através dos nossos sentidos, recebe todas as informações do mundo. Nela nós somos todas as coisas. Todo o bem e o mal do mundo. Somos luz e sombra, adultos e meninos, macho e fêmea, observador e objeto observado, enfim, tudo que existe no território do possível e do impossível. Mas só podemos trabalhar efetivamente com um pedaço muito pequeno dessas informações, que é a parte filtrada pela razão. Por isso dizemos que o mundo é um território, enquanto o que realmente sabemos dele é uma pequena fração, que é o mapa que a nossa consciência faz dele.”
“ A diferença entre um cientista e um louco”, concluiu o instrutor, “ é que o cientista tem uma estratégia para organizar a sua maluquice e o louco não”.
O terapeuta, depois de algumas consultas e muita conversa propôs fazer com ele um exercício chamado Mudança de História Pessoal. Tratava-se, na verdade de um exercício de regressão mental, na qual o indivíduo entra num estado de transe quase hipnótico e vai desarquivando, nas suas experiências passadas, as partes da informação que a mente consciente cancelou na hora de montar o resumo que ela passou á memória.
“A memória” explicou o terapeuta, “ na verdade, é um arquivo de mapas de experiências passadas, mas ali só encontraremos o que a nossa consciência julgou importante conservar. A totalidade da experiência nunca é conservada intacta. Não há memória RAM suficiente para isso no nosso HardDisk cerebral. Por isso a mente omite, generaliza e cancela grandes porções da informação. O exercício de Mudança de História Pessoal é uma espécie de soft que nos permite recuperar essas informações jogadas para a lixeira. E a lixeira da mente é o inconsciente," informou ele.
“ O que Freud fez”, continuou o terapeuta, “ foi mexer nessa lixeira.Por isso ele levantou um monte de coisas mal cheirosas, como o Complexo de Édipo, o Complexo de Thánatos, a inveja do pênis, que ele dizia que as mulheres têm,etc, etc. essas bobagens todas, que nada mais são que informações não catalogadas nem analisadas, que foram arquivadas sem identificação no nosso subconsciente.”
Ele achou uma certa lógica no discurso do terapeuta. O exercício, em si mesmo, era fácil de fazer. Bastava ter uma boa capacidade de concentração. Ele tinha que imaginar que estava na porta de um porão e ia começar a descer os degraus que o levavam para dentro dele. Foi aconselhado a não ter medo da escuridão que ia encontrar. Não sabia quantos degraus ia ter que descer nem o que iria encontrar em cada um deles. Tinha apenas que levar com ele uma certeza. Tudo que ele encontrasse seria informação. Não eram fantasmas, nem monstros, nem espíritos, nem entidades de espécie alguma. Eram apenas informações.
“Cada degrau é um tempo em sua vida. Você está descendo esses degraus”, disse o terapeuta. “ Quando eu disser para você parar em algum degrau, você para e eu vou perguntar se você quer ver o que está acontecendo ali, entendeu? Se você disser sim, eu vou acender um luz para que você possa ver, está bem?”
"Está bem”, respondeu ele.
“Quantos anos você tem agora?”. “ Trinta e cinco anos”, respondeu ele.
Na verdade, o terapeuta havia mandado ele e fechar os olhos e dar alguns passos para trás. E á medida que ele fosse andando em direção ao seu passado que ele fosse repassando, mentalmente, as experiências que havia vivido. Pela leitura não verbal que ele apresentava no rosto, no movimento das órbitas oculares, pela coloração da pele, os batimentos cardíacos e o comportamento dos músculos e nervos(linguagem não verbal), o instrutor detectava quais as experiências tinham sido mais significativas no passado dele.
“A mente consciente registra a informação através da linguagem. A mente inconsciente através da emoção”, explicou o terapeuta.
“Quantos anos você tem agora”, perguntou o terapeuta, depois de levá-lo mais alguns passos em direção ao passado.
“Uns quinze anos”, disse ele. Sua voz estava diferente. Não havia mudado de tonalidade, mas sim de entonação. Parecia mais jovial, mais solta. Sua postura corporal também.
“ Você quer ver o que está acontecendo aí?” perguntou o instrutor. A um sinal de concordância que ele fez com a cabeça, o terapeuta simulou, com um estalar dedos, o som de um interruptor acendendo uma luz.
“ Descreva o lugar onde está, as pessoas que estão com você, o que estão dizendo, o que você está fazendo, o que elas dizendo e fazendo, etc”, disse o terapeuta, que estava monitorando a experiência interna dele pelas suas expressões não verbais.
E assim ele foi entrando cada vez mais para dentro de si mesmo. Mais alguns degraus em direção ao passado, cada vez mais fundo, mais escuro. Juventude, adolescência, infância. luzes acesas pelo estalar de dedos do terapeuta. Ele viu a namorada que o deixou falando sózinho e com o negócio na mão;, a primeira carteira asinada e o olhar do chefe quando foi despedido no primeiro emprego. Sofreu de novo a dor da rejeição quando foi tirado do time por que era ruim de bola. O horror que sentiu quando sua mãe o deixou sozinho na porta da escola e foi embora. Viu o olhar acusador do pai quando fez uma arte e a careta de nojo da mãe quando limpava o seu cocô.
“ Que idade você tem agora?”
“ Não sei. Eu sou muito novo”.
“O que você está vendo ai?”
“ Nada, só uma substância líquida, gelatinosa, que parece sangue.”
“Tem alguém ai com você?”
“Tem.”
“Você a conhece?”
“ Não sei.”
“É um homem, uma mulher, um garoto como você?”m
" Acho que é uma mulher."
"Onde ela está?"
“Em algum lugar na minha frente, mas eu não estou vendo ela”
“Você quer vê-la?”
“ Quero, mas tenho medo.”
“ Porque você tem medo?.”
"Acho que ela não gosta de mim".
"Como é que você sabe disso?"”
"Ela tomou um remédio para me tirar da barriga dela".
Nesse momento ele saltou em cima do terapeutra e o agarrou pela garganta. Apertou e apertou. Quase matou o cara. Não fosse a secretária e o segurança do prédio, que acorreram aos gritos desesperados dele, isso teria mesmo acontecido.
Assim foi a primeira experiência que ele teve ao descer ao Arquivo Morto da sua inconsciência. Faria outras depois, com o devido controle. E á medida que ia desenterrando essas velhas informações, ele as ia entendendo melhor. Fez coisas bizarras nessas visitas. Conversou com baratas e descobriu porque tinha medo e nojo delas. Dialogou com seu pai e sua mãe, ambos já mortos. Eles lhe explicaram direitinho o que eram aquelas “lutas noturnas”. Descobriu que sua mãe, na verdade era outra mulher, que o abandonara ainda bebê, num orfanato. Sua irmãzinha lhe explicou porque chorava. Conversou com cientistas que lhe explicaram como se formam os raios e as tempestades. Com gárgulas e vampiros que lhe deram informações sobre suas verdadeiras consistências. Tudo dentro da sua sala de Arquivo Morto.
Já faz mais de um ano que ele dorme tranqüilo e não briga mais em seus sonhos. Mas na vida diária ele mudou muito. Já não é mais aquela pessoa tranqüila e extremamente gentil que era antes. Quando se sente irritado com alguma coisa não faz questão de esconder seus sentimentos. Ele diz que isso é franqueza, transparência, que os nossos sentimentos e crenças devem ser expostos de dia para que elas não se transformem em monstros noturnos.
Um dia desses quase saiu no tapa com um companheiro do clube de serviços que eles freqüentam já a mais de dez anos. Ele não fazia isso desde o dia em que brigou com um coleguinha de escola e levou um murro no nariz. Saiu tanto sangue que ele resolveu, desde aquele dia, que nunca mais brigaria com ninguém.
“O que aconteceu com o seu marido”, perguntaram os companheiros. “Ele sempre foi tão calmo, tão gentil. Agora está mais agressivo. Não leva desaforo para casa.”
Sua mulher diz que não sabe. E também não sabe se era melhor ficar se prevenindo de noite para não levar porradas e pontapés ou agora ter que ficar alerta para afastá-lo da próxima briga em que ele vai se meter.
Ela só tem certeza de uma coisa. Quem meche no seu Arquivo Morto nunca volta impune.