Chega de Pingo
Para "Pingo" cujo nome não sei, cuja lembrança pinga no esgoto.
"Travesti"
Passou alguns dias. Dias mais quentes que o inferno. Mesmo naquele inverno. No inverno não há neve quando há a areia infinita. Bonita. Grita! Um grito de socorro. Ai! Apareceu. Um homem em sua vida. De quem se apaixonou. Ele vivia numa taverna. Ele morava lá. Dormia. Na porta. Seu ofício era beber. Seu vício era sustentado pela sorte. E tinha muita. Vontade de beber. E ela tinha muita vontade também. De beber dele. Numa noite ela saiu. Sem fumar sua erva. A pele negra suando a cada passo dado. O corpo magro dizia por si mesmo. Conseguiu um cliente. Que vinha se arrastando pelos becos da cidadela. Dela, ele se interessou. Quando acabou. Num beco escuro e mais sujo que sua cara jogou-lhe o dinheiro no rosto. Umas poucas moedas. Um botão. Um alfinete. E grande parte de sua vida. O sêmen pingava. Não queria pingos. Queria apenas pinga para ele, sua nova paixão. O sêmen escorria pelas suas. Pernas e lábios. Mas o dinheiro também escorria. Ele grunhiu. Ela suspirou. De cansaço. De tristeza. De impossibilidade. Impossível, impossível. Catou as moedas. Como quem cata restos parcos e podres de comida para alimentar a vida. E não morrer. Vestiu o sutiã. Procurou pela calcinha. Não achou. Deveria não ter usado. Estavam todas furadas. Sequer os furos eram na frente. Ou atrás. Eram nos flancos. E tão pequenos. Não entraria nenhuma cabeça de alfinete. Pegou a bolsa suja. Levantou o corpo sujo e alquebrado. Quebrou o salto. Os pés sujos na areia. Andou. Chegou à taverna. Um cheiro de cachaça. Queimou suas narinas. Tremeluziu sua vagina. Que não tinha. Tirou as poucas moedas. No balcão bateu. Uma pinga... jogou as moedas. Os pingos do sêmen secaram. Só depois, só depois. Um charme primeiro. Foi que procurou por ele. Passando os olhos por cada canto. Do recinto. Estavam espalhados pelo chão. Sentados. Jogados. Como baratas meio mortas. Com tremeliques. Dois indigentes estavam misturando seus corpos. Não sei se numa briga ou no amor. Talvez nos dois. Talvez nenhum! Achou-o. Sorriu-lhe. Ela retribuiu. Ao balconista: Mais uma pinga. Porque o copo dele secara. Sacara mais um sorriso para ela. O suor pingou. Chega de pingos. Chega de pingos. Chega de pontos. Sumam como um mágico. Limpou a testa. Pegou os dois copos. Sentou-se ao lado dele. Via que ele se barbeara. Ele fazia isso todo dia. Ninguém mais tirava. A barba. A baba escorrendo. O sêmen pingando. A pinga num trago. Ela lhe ofereceu o copo roto. Ele deu um arroto. Ela. Um peido maroto. Ele bebeu de uma vez. Ela parcelava. As mãos juntas abraçando o copo. Queria abraçá-lo. Ele na dele. Meio sem graça. Com vergonha de ela ser travesti. Precisaria muita pinga pra encarar. Para se livrar dela. A vergonha. Ouvi-se uma garrafa rolar da mão de um bêbedo. Que tombou. Num sono de ressaca. Do gargalo pingava. Pingava. Ia morrendo o liquido. Alguns homens vieram lamber o álcool. No chão. Mais uma? Ele perguntou. Ela estava meio longe... Ao balconista: Mais uma pra ele, por favor. Ele bebeu. Mais uma? Mais uma! E mais. Uma. A mais. Ele bebia como que para esquecer que ela era travesti. Ela sabia. Desviou os olhos dele. Fixou o olhar na boca garrafa que ia pingando. Chega de pingo. Chega de pingo. Para de pingar. Porque aquele gargalo parecia sua vida. Parecia aquilo de que ganhava a vida. Um pênis pingando. A vida se esvaindo. Vadia. E vagabundo. Bêbado. Ele bebeu mais umas seis ou sete ou dezessete. Ela ficou imóvel. Começava. A pensar. Era a raiva. De si mesma. Que a fez quebrar o primeiro. Copo. No punho. Que sangrou. Um sangue sereno. Que pingava e pingava. Não queria mais pinga, não queria mais nada. Não queria mais ele. E o sangue pingava. Não queria amores de simulação. Não queria ser objeto de meio homem abjeto. Não precisava. Mais uma? Ele replicou. Sem ver o sangue pingando. Sem ver o sofrimento. Nem a dor. No fim ela teve pena dele. Mas tinha mais aversão. As gotas caíam, desperdiçadas. As moedas também caíam. Por fim caiam as lágrimas em múltiplos pingos que ela tentava suprimir e esquecer. Preferia que ele fosse um desses homens mágicos. Que desaparecesse. O balconista trouxe a pinga. Ela jogou o conteúdo nos olhos do rapaz que se apaixonara. Ele começou a pingar também. A pinga escorria. Depois. As lágrimas. Devido ao álcool nos olhos que ardiam. Talvez assim ele acordasse. Talvez ele se levantasse. Ela não queria. Não queria mais pingar. Chega de pinga. Chega de pingo. E parou de sangrar. Chega de pingo. E parou de chorar. Chega de Pingo e parou de sofrer. Virou as costas. Catou as moedas e jogou no rosto dele. Que agora chorava. Porque sofria. Estava sozinho. Sem sorte. Só com a Morte. Se deu conta. Porque não haveria mais ninguém pra lhe pagar. Uma pinga. Um cigarro. Um pingo de carinho num copo imundo. Ela estava cansada de pingos. Queria um oceano inteiro. Dento do coração de um homem.