Uma Última Viagem

Meu cavalo Lethern encontrava-se muito cansado pela longa jornada que fizemos pelos últimos quatro dias. O objetivo da mesma jornada era de encontrar com um velho amigo de meus antigos tempos de infância, não apenas um amigo, mas outrora meu melhor amigo. E a triste notícia de que estava internado agora em um esquecido manicômio de nossa velha cidade visivelmente louco, não me deixou muito alegre, eu nem mesmo poderia imaginar que o jovem cheio de vida que por tanto tempo fez parte das alegrias da minha vida e ajudou a formar o bom caráter que possuo pudesse estar mesmo maluco.

Não demorou muito tempo para que eu avistasse uma velha estalagem logo à frente, pude sentir que meu fiel companheiro animal também havia notado o mesmo que eu, pois por alguns momentos pareceu recobrar seu ânimo e acelerou seu trote. E então em poucos minutos chegamos a estalagem, eu logo desmontando de Lethern, tratei de amarrá-lo junto a outro cavalo que estava ali. Se eu por ventura decidisse passar a noite naquele lugar, ele ficaria bem seguro pois havia um pequeno coberto na área lateral da residência e parecia haver muita água e feno para sua reabilitação. Percebi naquele mesmo instante que aquilo era tudo de que meu companheiro de viagens precisava, já que demonstrou com seu olhar sereno que havia encontrado tudo o que buscara, e como é estranho que os animais tão diferentemente das pessoas se satisfaçam com coisas tão simples e que saibam apreciar os pequenos atos e doces momentos fugazes da vida sem criar objetivos fúteis e desnecessários, que apenas servem para tornar a vida ainda mais curta e deprimente. Deslizei minha mão sobre sua crina macia e mesmo que me encontrasse muito triste, não consegui conter o esboço de um sorriso em meus lábios, quase me senti envergonhado pela grandeza de tal animal e então me afastando dele, resolvi que deveria beber uma boa caneca de cerveja e esquecer por completo meus devaneios e me focar no agora, antes que começasse a chorar como uma criança sem mãe, que não teria a quem recorrer em tempos difíceis para enxugar suas lágrimas.

Ao abrir a porta da estalagem, o inevitável som do ranger da madeira atraiu toda a atenção do recinto para a minha pessoa, o que me deixou por poucos momentos sem saber se deveria cumprimentar as pessoas que ali se encontravam ou fingir ser apenas um incauto viajante de outras paragens que não fora capaz de perceber os inquietantes olhares alheios. E dessa maneira optei por escolher sabiamente a segunda opção, deixando seguramente guardada em meu peito o sentimento de parecer uma pessoa pomposa ou até mesmo amigável. Assim, atravessei o salão do recinto pouco iluminado com certa rapidez e com o olhar fixo em meu objetivo pessoal, me aproximei do balcão onde uma velha e uma jovem garota pareciam atender os pedidos de seus clientes sempre com um belo, porém inocente sorriso nos lábios.

- Posso ajudá-lo meu bom homem? - disse a velha com um longo sorriso que poderia ultrapassar a fronte de sua face.

- Eu sou um viajante e me chamo John Carter, gostaria de um lugar aconchegante para passar esta noite e seguir viagem pela manhã, isso seria possível? - falei tentando ser o mais polido possível, pois detesto que estranhos tenham uma primeira má impressão sobre minha pessoa.

- Ora essa, mas é claro que temos um quarto vago por um cavalheiro como o senhor, deixe que vou pedir que minha filha mostre-o para o senhor! - disse a velha fazendo um sinal para a jovem que se encontrava sentada distraidamente um pouco mais distante, fazendo com que a mesma se aproximasse com rapidez.

- Espero que não se importe, mas vou adverti-lo que minha filha Amélia é surda e por consequência de sua deficiência também não pode falar, mas mesmo assim é uma boa menina e muito inteligente! - comentou baixinho a velha educadamente, enquanto eu pousava meus olhos na jovem criatura que pegava meu casaco. – Daqui a pouco pedirei a ela que leve uma xícara de chá de camomila para que o senhor tenha uma boa noite de sono.- continuou a velha.

Eu agradeci por tudo e assim segui até meu aposento seguindo aquela estranha garota pelos degraus bem cuidados da escada até chegar ao segundo andar da estalagem que parecia bem mais humilde vista de dentro, mas aquilo não me preocupou nem um pouco pois meus pensamentos estavam totalmente atraídos para a jovem Amélia que sorria para mim descompromissadamente de forma inocente e juvenil. Ela aparentava ter não mais que vinte e três anos, e embora tivesse o aspecto da inocência digna da infância seu corpo carregava em cada centímetro a formosura da idade adulta e foi justamente essa mistura de idades e tempos perdidos com as vulgaridades da vida que fizeram nascer em meu peito, um ligeiro sentimento de desejo. E perdido em meus delírios, envolto pelo sutil perfume da doce criatura, que lembrava-me da minha infância onde em outras eras eu e meu amigo brincávamos nos campos próximos de sua casa, infinitamente cercados por belíssimas trilhas feitas das mais distintas flores, como margaridas, lírios e asfódelos, fazendo brotar daquele cenário só hoje valorizado um perfume somente digno da inocente Amélia. E a visão generosa de seus cabelos loiros, caindo delicadamente aos cachos sobre os ombros nus do vestido vermelho bem simples, me fez perceber que a figura da jovem havia parado sua caminhada silenciosa, pois havia encontrado o meu quarto e com um grande e rude molho de chaves abriu a porta com certa dificuldade. De imediato ela fez-me um sinal com o braço, me mostrando o interior do aposento que em momento algum me surpreendeu, já que dentro dele parecia haver apenas uma cama, uma mesa e um armário empoeirado, mas era tudo o que buscava por uma noite e para isso seria mais que suficiente. A jovem não demorou para retirar-se e com outro gesto se despediu, eu fiquei apoiado no encosto da porta observando a criatura até que sumisse nas escadarias com seus passos lentos e silenciosos dignos de um felino. E só então entrei em meu quarto e ali permaneci durante o resto da noite.

Estava eu sentado, quase imóvel em minha cama com a mente vazia, talvez perdido em pensamentos que fugiam de minha própria mente ou simplesmente meditando e as horas transcorriam pelos relógio sem que o sono se aproximasse de mim, embora meu cansaço físico fosse visível e sentido em cada músculo de meu corpo. Quando para meu espanto eu ouvi algo devagarinho na porta, ouvi duas pancadas tais bem de mansinho sob a madeira negra do aposento, e então como se despertasse de sonho, onde permanecia inteiramente acordado mas inconsciente, eu me coloquei em pé e rapidamente abrindo a porta, notei que do outro lado dela estava Amélia com uma pequena xícara de chá, me esperando com o sorriso que tão logo aprendi a amar. Insisti que ela entrasse em meu quarto em sem muito esforço consegui convencê-la de que não tinha problema algum sua presença ali. E então passamos quase que uma hora juntos, não direi dialogando pois da parte dela, duvido que ela tenha feito isso ou ao menos tenha tentado, já que eu passei o tempo todo contando antigas histórias sobre meu velho amigo e até sobre meu cavalo e mesmo achando que Amélia não compreendera uma palavra sequer do que eu tão avidamente lhe falava, não deixou de demonstrar qualquer sinal de descontamento ou confusão, parecia a minha vista completamente curiosa pelo final de cada história e com seus leves movimentos de cabeça parecia-me cada vez mais curiosa. Mas o cansaço não perdoa nenhum momento de alegria e minha companheira misteriosa começou a demonstrá-lo com um breve bocejo e então colocou-se me pé, e despedindo-se com um sorriso meigo digno apenas dela deixou o quarto, então notei que ela havia esquecido um pequeno crucifixo onde tinha se sentado, agarrando-o eu apressei-me para alcançá-la e devolver o objeto esquecido. Mas sua reação foi de surpresa, ao me ver tentar entregar-lhe o crucifixo, ela o segurou em minhas mãos como se quisesse que eu ficasse com o mesmo, nossas mãos ficaram apenas unidas por poucos segundos unidas pelo objeto religioso, mas foi como se tivesse tido uma pequena amostra do paraíso, quando senti a frieza de suas mãos pálidas e a sutileza de pele macia. Acabei por ficar com o crucifixo e me despedindo novamente da jovem olhando em seus olhos do mais profundo azul, mas agora quem tinha um sorriso bobo e sincero nos lábios, sem sequer conseguir escapar um simples sussurro de minha boca era eu, tamanha fosse minha confusão mental.

E ao acordar no dia seguinte, digo dia seguinte, pois consegui abrir os olhos apenas no entardecer do dia seguinte. Não sei ao certo que horas de sono são necessárias para restabelecer as energias de uma pessoa que se encontrava realmente cansada. Naquele momento estava por me sentir um novo homem, pareceu-me estar completamente rejuvenescido, com as energias abastecidas como a muitos anos não via acontecer. Então como certamente passaria a noite acordado se tentasse dormir, achei melhor seguir minha viagem o quanto antes. Dessa maneira tratei de descer e pagar as despesas de minha estada ali e agradecer todos os serviços prestados.

Logo que desci as escadas pude ver que ainda havia alguém em uma das velhas mesas, era um sujeito grandalhão de sobretudo e luvas, mas o que mais me chamou a atenção foi seu longo chapéu negro que com sua imensa sombra escondia toda sua face, deixando apenas visível somente os olhos azuis. Seus olhos não eram como os de Amélia, os olhos do senhor pareciam mais como chamas azuis que dançavam ao me encarar, e assim desviei o olhar para que os meus repentinos calafrios cessassem.

Quando já me encontrava fora da estalagem me preparando para a partida, vi de súbito Amélia me olhando pelas cortinas da janela, logo em seguida ela veio ao meu encontro e como se estivesse assustada, tentava me convencer a ficar mais um dia em descanso e partir na manhã seguinte. Ao menos foi isso que consegui interpretar de seus gestos confusos. Eu tive a sensação de que de alguma forma ela gostava da minha pessoa mais do que eu poderia compreender e isso me deixou inquieto em meu interior, não saberia dizer se estava feliz ou verdadeiramente assustado. Diante desse tornado de complexas emoções tão vivas dentro de mim, tratei de acalmá-la e me despedi com um singelo beijo em sua bochecha rosada pelo frio da noite. Ela me pareceu perplexa pela minha sincera atitude e ficou imóvel pelos minutos que antecederam minha partida, onde sequer tive a coragem de olhar para trás.

Passaram-se algumas horas antes que eu adentrasse a floresta onde encontraria uma velha estrada para a cidade onde meu amigo estaria internado. Minha visão era obscurecida pela fraca luminosidade da lua e a completa ausência das estrelas naquela noite agora já tão amedrontadora, mas continuei o caminho com toda a coragem que me restava e tratei então de pensar somente nas coisas boas que haviam acontecido em minha vida recentemente, mas sempre que tentava lembrar de algo diferente, me vinha a mente a lembrança da jovem e bela Amélia, e aquele sentimento que me abrasava era cruel como a mais pura embriaguez do amor.

Mas algo ainda me deixaria ainda mais preocupado naquela noite, pois logo adiante naquela estrada solitária, percebi que talvez não estivesse tão sozinho quanto poderia imaginar, já que aparentemente vindos do nada, tornaram-se perceptíveis algo que me pareciam sussurros naquela escuridão demoníaca. E mais adiante pude ver com a pouca clareza que pode haver em uma noite escura, a fonte de todos os meus calafrios. Bem no meio da estrada havia uma espécie de criatura horrenda rastejando sobre a estrada como se fareja-se algo, a primeira impressão que tive foi de ser apenas um animal grande como um urso, mas aquilo era impossível naquelas regiões, então notei a grande semelhança com um lobo pelo focinho longo e a cauda peluda, embora essa fosse a única característica em comum com os lobos, pois seus membros inferiores eram aparentemente bem esbeltos enquanto seu tórax e membros superiores eram muito desenvolvidos. Quando a criatura ergueu-se por completo do solo pude ter a certeza de que seja o que fosse aquela besta, definitivamente não era um lobo tão pouco um homem embora tivesse a altura superior a de um.

Tanto eu quanto meu cavalo estávamos imóveis naquele momento e acredito que mesmo que tivesse o desejo de escapar daquilo não poderia me mover. Pude sentir todo meu corpo frio enquanto o calor de meu suor escorria sob minha face petrificada em uma posição de medo imutável. E Foi neste mesmo instante que a criatura outrora distraída, notou nossa presença e uivou ferozmente para a noite como se agradecesse somente para a lua cheia que brilhava solitária no céu, para em seguida rosnar loucamente para mim, mostrando seus dentes enormes e seus olhos enigmaticamente vermelhos. E então a loucura encontrou seu auge quando desferiu um ataque contra meu cavalo ferindo-o gravemente e fazendo com que eu caísse no chão como uma pedra, ainda imobilizado pelo medo deixei tentar qualquer tipo de reação contra o animal, mesmo quando ele rasgou minha camisa e mordeu meu braço, pude sentir ele perfurar profundamente o ferimento com suas mandíbulas e beber alucinadamente meu sangue, e eu não acreditando na loucura que ali acontecia fechei meus olhos esperando a morte vir me buscar ou pelo menos acordar daquele pesadelo terrível, mas ambas as opções foram em vão, novamente senti uma sensação terrível em meus lábios, era o sabor salgado de minhas próprias lágrimas misturadas com o suor, mas então de súbito pude ouvir o som ensurdecedor de um tiro de rifle a curtíssima distância e então vi que a criatura tombara e ali permanecera imóvel. Ao me virar para ver de onde veio o disparo que salvara minha miserável vida, fiquei surpreso em ver o homem assustador da estalagem vindo em meu auxílio com o rifle na outra mão.

- Você está bem meu senhor? Está machucado? - perguntou o homem misterioso que acabara de salvar minha vida.

- Eu estou bem, eu acho. Esse animal me mordeu no braço, mas não deve ser nada grave! - disse eu olhando para meu antebraço onde podia-se ver as marcas de dentes profundas, enquanto o sangue gotejava entre meus dedos.

- Vamos retornar para a estalagem para que as mulheres cuidem de seus ferimentos de maneira adequada! - exclamou ele com uma voz amigável e preocupada.

- Tudo bem! - concordei enquanto ele me ajudava a levantar e emprestava o ombro em meu auxílio antes de minha visão escurecer.

Ao abrir os olhos estava na velha cama em meus aposentos ao lado da velha senhora e sua adorável filha Amélia, ambas à cuidar-me, pois sentia uma grande febre e algumas vezes sentia que parecia estar delirante, eu estava realmente em péssimas condições físicas e mal conseguia me mover, embora pudesse sentir o ferimento em meu braço arder de maneira enlouquecedora.

Ambas as mulheres pareciam muito preocupadas com a minha saúde, e até mesmo o rosto imaculado da jovem Amélia parecia agora tingido pela cores do medo e da preocupação com minha doença. Comecei a sentir uma força crescer dentro de mim e fazer força para que eu deixasse que ela tomasse conta de minhas próprias ações, então com os espasmos que se seguiram durantes meus últimos minutos de consciência pude notar que não eram meus membros que não podiam se mover, mas eram grandes amarras que impediam qualquer movimento dos mesmos. Olhando para a janela pude sentir a brisa gelada entrar pela abertura e ver por completo o brilho da lua cheia que preenchia quase toda a janela com um olhar malévolo que me possuía cada vez mais, até sentir minha boca espumar e meu corpo se transformar em algo animalesco, livrando-me facilmente das amarras que me prendiam a cama. A última memória que me resta desse momento passado, é o medo estampado no rosto de Amélia diante da minha diabólica recuperação imediata.

FIM

Giomar Rodrigues
Enviado por Giomar Rodrigues em 06/02/2011
Reeditado em 06/02/2011
Código do texto: T2775915
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