Viagem ao âmago (revisado)

Viagem ao Âmago

Minha humilde e sincera homenagem a três GIGANTES do “conto de sobrevivência”: Joseph Conrad, Horácio Quiroga e Lucius Shepard.

Por Ramon Bacelar

Mil agulhas em fogo trespassaram seu ser o castigando com a crueldade de um carrasco nazista. Acordou com a perna em fogo e com olhos turvos, acompanhou a trajetória diagonal e debilmente luminosa do candeeiro situado no centro da lona. Há meio metro da abertura da tenda, à espreita para um segundo ataque, uma cascavel-de-quatro-ventas chacoalhava seu guizo com a precisão de um relógio suíço e o encarava com uma intensidade de concentração que imediatamente lhe percorreu uma gélida sensação de vulnerabilidade e impotência, a consciência que sua vida tinha sido em vão e que o fim, com seu magnetismo poderoso e invulnerável, batia à sua porta. Não teve dúvidas: olhava para a Face da Desgraça.

Gotas de suor clamaram por vida própria e numa profusão de convolutos movimentos espasmódicos, sua testa por fim cedeu a pressão úmida e nela brotaram com velocidade vertiginosa, infinitas gotículas de suor que pareciam prenunciar seu futuro catastrófico.

Imóvel como um demônio petrificado, suspendeu a respiração e em um movimento semelhante ao de uma onça no ato do ataque, se jogou na abertura lateral e deu de cara com o chão enlameado próximo a fogueira, cuja opaca luminosidade lhe deu um parco senso de direcionamento em meio ao lençol noturno que o ameaçava por todos os lados.

Com olhos e ouvidos vigilantes, a passos largos e rápidos, foi em direção à estrada principal de onde, com um pouco de sorte, chegaria ao posto médico, mas há dez metros do asfalto notou seu caminhar destoar do sentido original, sentiu os nervos esmorecerem como em uma súbita queda de pressão arterial; suspendeu a pesada calça de lona e um inchaço pulsante na batata da perna pertubou sua retina com ominosas insinuações : a toxina começara a agir e a Mãe Morte construía sua morada.

Olhou para os lados, suspirou e concluiu que precisaria cortar caminho pela mata fechada.

Girou o corpo pesado e esponjoso, mas antes de prosseguir suspendeu o pescoço para o céu de piche e berrou aos quatro ventos: escuridão atrai escuridão!

Enquanto caminhava com passos-de-mula-manca, em meio ao gélido vento de navalha, recordou sua última noite com Conchita e de como, durante todos esses anos, gradualmente, as promessas de amor foram perdendo sua força: murchando como balões enfatigados, ressecando como paredes em ruína, deixando-se levar pelos ventos da mudança e enfim, emudecidas e enterradas no Sepulcro do Esquecimento.

-Não tenho nada a perder!-Vomitou Juanito num furioso acesso de auto-engano.

Em Coahuyana perderia Conchita, “aqui...”

Guiado debilmente pelo devaneio sonambúlico, só percebeu que adentrara a floresta fechada quando um estafado galho de um cipreste-mexicano pertubou sua harmonia fisionômica com um arranhão que desenhou em sua face as consequências de sua entrega quimérica.

Iluminado debilmente pela lua-cor-de-sebo, cambaleou em direção norte, em direção a esperança, em direção...

Sua nascente cicatriz começava a latejar e transformar-lhe o rosto amarelo-esbranquiçado em uma agonizante redoma carmim de carne e osso. Sentiu os passos arrastados, pesados e nesse teatro absurdista sem platéia nem aplauso, a dor apontava suas agulhas e afiava as navalhas para o ato final.

Picadas agonizantes pertubavam corpo e espírito e sua perna fervente agora latejava debilmente: suplicante coração em brasa à procura de um peito amigo!

Em postura acorcundada alcançou o sopé da colina e só teve forças para despencar no terreno enlameado: o veneno gargalhava.

Um violento clarão aperolado seguido de um estrondo infernal anunciou a chegada da vida líquida e com a consciência recobrada concluiu que o confortador pesadelo de sua vida onírica, nada mais era que um débil reflexo corrompido e distorcido de sua existência “real”: estava cercado por todos os lados: “dentro e fora.”

Com extenuado esforço levantou-se, mas os músculos vacilaram; olhou para os lados e para o céu, desta vez com olhar pesaroso e suplicante, mas o pescoço vacilou e o corpo foi de encontro ao chão, mais uma vez.

Tum-tum..., tum-tum..., tum-tum..., direcionou a visão abaixo da coxa, mas só enxergou um latejante borrão escuro que pulsava como um Coração das Trevas . Suspirou, pesou as possibilidades e concluiu que não tinha condições de escalar a colina em linha reta, iria contorná-la.

Com movimentos semelhantes aos da Face, rastejava debilmente lamaçal acima em movimentos espasmódicos grunhindo como um cachorro enlouquecido; a chuva aumentava e a já parca iluminação lunar agora adquiria um tom amarelado que em contato com a chuva emprestava a paisagem noturna um aspecto enganadoramente sereno e irreal.

A dor o possuía com tamanha intensidade que um calafrio percorreu seu corpo penetrando em suas entranhas com a determinação de um ataque de corvos: suava em bicas queimando em febre.

Como uma brasa rastejante, continuou sua trajetória circular em direção ao auxílio de Alonzo. Alonzo, amigo de velha data, companheiro de alegrias e tragédias.

-Não vá Juanito – Recordou as palavras do amigo, mas em sua existência tormentosa não existia retorno e a palavra redenção não passava de mero vapor.

A chuva incessante adensava e ganhava volume, o vento agora rasgava seus tímpanos com lamentos ásperos e os odores florestais, antes doces e suaves, agora penetravam nas narinas como substâncias ácidas e ácridas : Juanito rastejava e persistia no terreno enlameado que se tornava mais pegajoso e íngreme: ardia e gritava, a febre o possuía e arremessava seus sentidos a regiões escuras e inóspitas; sentiu vagamente seu tato se esvair o transformando vagarosamente em uma entidade vazia e insubstancial (felicidade?), sua audição começou a vacilar e por um breve instante lhe penetrou nos ouvidos um indistinto ruído semelhante a um chocalho que parecia vir de trás... rastejava, ouvia...subia, subia...ouvia; zombantes gargalhadas tomaram lugar dos chocalhos, a dor ria, berrava, a febre retribuía com tremedeiras e calafrios e misturados a essa cacofonia do além, a umidade sonora lhe tocou os tímpanos e chamou sua atenção para uma cortina úmida que parecia dividir a floresta: por um misterioso motivo queria ir ao outro lado, sentir com intensidade aquilo que o aguardava: o Desejo do Desejo. O ruído de chocalho persistia, agravava, olhou para trás e foi tomado pelo horror do vislumbre de um rastejante corpo cilíndrico unido à sua cintura; não eram duas pernas era “um”, um corpo cilíndrico rastejante, uma alma agonizante e agora uma batida cardíaca, um outro Coraçao das Trevas que pulsava fazendo coro com sua caricatura-de-perna-pulsante; a paisagem agonizante pulsava como um organismo vivo, tum-tum,tum-tum... tum-tum,tum-tum...um grito encarcerado de desespero agonizava, sua garganta reprimia, Juanito pressionava, pressionava, insistia e com a fúria de uma represada arrebentada o grito escapou no mesmo instante que uma tromba d’água vindo do topo da colina o arrastou. Como um balão vazio, foi carregado pela força da vida líquida com arrebatadora violência para “além do além” e segundos antes dos sentidos vacilarem , teve consciência que descia para o desconhecido, abaixo, abaixo, rumo ao “outro”, ao âmago, rumo ao Coração das Trevas.

FIM

Ramon Bacelar
Enviado por Ramon Bacelar em 05/02/2011
Código do texto: T2773453
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