Chuva

Homem Metade

Lá fora venta e venta e venta. O vento assobia. Vai saindo sem ser visto por entre as portas e por entre as pernas. Essas viagens são todas dentro. Do meu eu. Do eu. Uma dor como a tempestade que varrerá tudo lá fora. Pra tirar esses escombros de cima de mim. Dos meus ombros. Eu estou aqui debaixo. Não sei nada. Mas descobri esse pequeno mundo a minha volta. Um galpão. Um porão. Sei não. No escuro. Como sono sem sonho. Como uma vassoura qual vento. Reverberando. Lento, lento e lento. Por esses dias a linha que divisa meu corpo de minha máquina rangeu, retorceu e coçou. A cicatriz era premonição. De que o vento me traria liberdade. Porque catástrofe eu já vivera na pele, nem a que não tinha. Ademais só isso, só isso eu espero. E só isso esperava por mim. Tentando me sufocar. Em vão. Tentado apagar meu nome do não-tempo. O não querer viver. Já quis não mais viver. Mas não há maneiras de intervir, se a existência é permanente e persiste em viver. Ou existir. Como um elixir, da vida longa, da longa vida e da lenga-lenga... um dia vi uma luz. Por uma nesga, em meio à negridão que me encerrava e cegava. Nunca vi alimento mais puro. Lindo. Agora meu ouvido sente a intempérie. Os restos de minha pele capturam grãos e o pó que se ergue na superfície. E adentra meu recinto obscuro. Só a água há de limpar essa sujeira no ar. Quando a chuva cair. Vai me levantar! Vou me libertar. Mas não de mim mesmo. Porque libertar-me de eu mesmo é a dor mais profunda, mais que o próprio raio e mais que a própria água que sustentou o homem desde sua gênese. E continua abundante aqui onde estou, onde os homens são tão escassos como a vida no deserto. A chuva vai corroer e escoar. A chuva vai carcomer. Lentamente, mas abundantemente o metal. Só não comerá minha carne, minha metade, e a outra. Quando estiver livre vou pensar. Um pouco mais sobre a Vida. Um pouco menos sobre a existência. O que é? Que é? E, no fim, não é. Porque não há fim. Nenhum pouco de mim. Só chuva. Ouço o chiado profuso, calmo e frio. Não é o fim. É a grande chuva varrendo o mundo e varrendo minha existência para a vida.

DominiCke Obliterum
Enviado por DominiCke Obliterum em 04/02/2011
Código do texto: T2772145
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