Aparição na Estrada
Aparição na estrada
Na roça não é sempre que se têm festas, então quando alguma festa iria acontecer as pessoas ficavam logo empolgadas e queriam aproveitar ao máximo. Desse mesmo modo pensavam Lia e Deca, que na verdade se chamavam Maria Conceição e Vanderléia, mas nomes tão fortes não combinavam com rostinhos tão jovens como os delas, eram apenas crianças, por isso apelidos que não fossem de mau gosto eram sempre bem-vindos.
Hoje haveria festa em comemoração a padroeira da cidade no vilarejo chamado Pimenteira. Ficava um pouco distante do lugar em que as garotas viviam, mas os 45 minutos de caminhada valeriam apena. As duas se enfeitaram bastante, colocaram bobs no cabelo, se maquiaram e usaram seus novos vestidos que haviam ganhado a uma semana atrás, de dona Vanda, a avó materna que vivia na cidade. Os únicos vestidos que não eram costurados pela própria mãe. Deca observava com inveja o pequeno volume que levemente aparecia na blusa de Lia. Desejava que logo seus peitos nascessem também. Deca tinha nove anos de idade e sua irmã Lia tinha onze. Quando enfim retiraram os bobs, deram uma ultima olhadinha no espelho para então seguir a caminho da festa. Antes de saírem sua mãe avisou:
- Não venham tarde. Venham muito antes de escurecer para não se perderem.
As meninas se despediram e partiram, eram oito horas e ás nove começaria a missa e depois era só curtição. Desceram correndo pela grama molhada pela água da chuva da noite anterior. Passaram pelo rio por cima de um tronco de árvore que seu pai colocara para não terem que se molhar toda vez que fossem passar para o outro lado. Naquela parte o rio era bem raso e á água não passava de seus joelhos. Atravessaram a estrada de terra e entraram na roça do Sr. Arlindo, que servia de atalho para chegarem à rodagem de terra. Desceram em uma trilha entre os pés de cacau e ao chegaram à frente da roça do Sr. Arlindo viram a rodagem que as levaria até o vilarejo. Caminharam durante alguns minutos e chegaram á tempo de conseguirem sentar em um dos lugares dos bancos de madeiras que ficavam no fundo da igreja.
A missa parecia uma eternidade, a ansiedade logo tomou conta dos dois jovens corações. E quando enfim a missa acabou todos se puseram para o salão de festas da igreja para saborear os diversos pratos trazidos pelos devotos. As meninas comeram de tudo, pois em casa quase nunca comiam coisas diferentes, eram um pouco carentes, seus pais não tinham boa condição financeira, trabalhavam na roça, mas não deixavam faltar o feijão e o arroz. Encontraram com a Dete, o Marquinhos e o Paulo que eram os filhos da madrinha de Deca, dona Bina. Brincaram tanto que acabaram esquecendo-se da hora e quando se deram conta já eram 17h30min. Dona Bina ainda tentou convencê-las de dormirem em sua casa, mas as meninas teimaram que chegariam em casa antes de escurecer. Se andando demoravam 45 min. talvez correndo chegassem antes das 18 h.
- Vamos Deca mais rápido, se não a mãe bate na gente – disse Lia ofegante enquanto desciam correndo a ladeira do vilarejo, deixando para trás a festa que ainda acontecia na igreja.
- Ocê tem as pernas mais compridas que a minha né Lia – Deca dizia enquanto seu coração apertava de medo, afinal sua mãe era muito brava e não deixaria de corrigi-las pelo erro.
As meninas seguiram pela rodagem de terra sem parar, mas aos poucos foram cansando e o passo foi tornando-se cada vez mais devagar. Até que avistaram a entrada da roça do Sr. Arlindo, só teriam que subir pela plantação de cacau dele e passar pelo rio e logo estariam em casa. Ao se aproximarem da roça se assustaram. Do nada um burro surgiu em suas frentes. De onde ele veio? Perguntaram-se em pensamentos as meninas. Mas isso era fácil de se resolver, já estavam acostumadas com animais interrompendo o caminho, era só tanger com um pedaço de pau até chegarem na entrada da roça do Sr. Arlindo e passarem pela cerca. Lia pegou um pedaço de pau e foi para perto do animal.
- Shô, ô ô ô – pronunciava enquanto assustava o animal com a madeira.
Enquanto isso Deca examinava o animal que nem se mexia e as encarava com olhos grandes e escuros. Não parecia nada com um burro a não ser por algumas partes. Ele tinha rabo de boi e uma barbicha estranha. O animal era tão magro que ela poderia contar suas costelas e haviam feridas pelo seu corpo. Quando Deca olhou para as patas se assustou e exclamou:
- As patas dele é de cavalo Lia!
- É verdade – disse Lia ainda tentando afugentar o animal.
- Ele é deformado?
- Não sei Deca, não importa também, ele tem que deixar “nois” passar logo Deca, está nos atrasando, a mãe vai matar a gente!
Deca encarava agora a barbicha que o animal tinha. Só havia visto isso em bodes. Seria ele bem velhinho ao ponto de seu pêlo crescer tanto? Porém isso a aterrorizava e fazia até mesmo seus cabelos ficarem em pé. E cada vez mais ela se arrepiava. Viu que escurecia e lembrou do que sua mãe havia dito uma vez. “Às seis horas da noite, é hora aberta fia, é hora das coisas ruins saírem, passearem”. Olhou assustada para Lia em busca de qualquer expressão de medo e encontrou, Lia também estava arrepiada e estava desistindo de tentar espantar aquele animal esquisito.
- O que ele é Lia? Estou com medo! – gritou Deca.
- É um burro – disse Lia parecendo não acreditar em suas próprias palavras – Vem vamos nos esconder, talvez assim ele segue o caminho dele e deixa a gente ir pra casa.
Lia e Deca se dirigiram para um mato alto que tinha na beira da rodagem e se acocaram segurando uma na outra buscando proteção e esperaram. Mas será que o burro já foi? Perguntavam-se as crianças trêmulas de medo, agora já no escuro, apenas sob a luz do luar. Decidiram então espiar. Os olhos arregalados das crianças encontraram a cara do animal. As garotas então soltarão um grito de terror. O animal estava ali, parado, com os olhos agora vermelhos, fixados nelas. Se encolheram no mato o máximo que puderam, choraram. Então ouviram vozes de rapazes que vinham da roça do Sr. Arlindo.
- Ei meninas estão fazendo o que aí? – gritou um dos rapazes.
- São as filha de dona Zélia - disse o outro.
As meninas os reconheceram, era Raimundo e Tião. Ao mesmo tempo perceberam que o animal havia sumido. Então sem sequer responder saíram correndo passaram pela cerca e continuaram sem nem olhar para trás. Pediam a Deus para que aquele animal não aparecesse em sua frente. No escuro não acharam a trilha e acabaram passando por baixo do pé de laranja, pisando em espinhos que estavam no chão. Deca gritava, chorava e Lia a puxava pelo braço, não queria que a irmã ficasse para trás. Acharam o rio, tatearam a borda em busca da madeira, mas não encontraram, tropeçaram nas pedras que ficavam imersas na água, caíram e se molharam por inteiro. Mas ao fim conseguiram ver a roça. Seus pais estavam na porta com um lampião acesso ás esperando.
Ao chegar em casa contaram tudo a mãe, e ela decidiu não castigar as meninas. Ao mesmo tempo em que tomavam banho, sua mãe retirava os espinhos presos em suas peles. Vestiram seus pijamas e foram para o quarto. Naquela noite as meninas não conseguiam nem dormir direito. Deca não queria abrir os olhos na escuridão. Não queria ter que ver aqueles olhos novamente. E Lia que estava na cama ao lado, tremia de medo. Tudo estava silencioso, apenas os grilos tagarelavam na roça. Mas, surgiu um novo som, um som de galopes, que vinham do lado de fora da janela do quarto das duas garotas. As meninas fecharam os olhos apertando as pálpebras enquanto suas mãos se agarravam ao travesseiro. Deca então sentiu um ar quente roçar seu rosto, e ela tinha certeza que era da respiração daquele animal.