“Faço Morada no Coração de Todas as Pessoas”

- Este aqui custa vinte mil de entrada mais setenta e duas parcelas de oitocentosreais. - Respondeu o vendedor.

Com a resposta do vendedor, foi-se também o sonho de Eriberto de possuir um carro novo. Mas não um carro qualquer, tinha que ser aquele carro sport vermelho. Não que a resposta do vendedor fosse uma surpresa, mas ainda assim Eriberto gostava de sentir-se como se realmente fosse um “cliente”. Isso de certa forma amenizava seu desejo de elevar seu status por meio de conquistas materiais.

Eriberto já em seus quarenta anos amargava anos de ostracismo em sua profissão. Um homem com sua idade e experiência poderia estar em posições maiores e ganhando muito mais. No entanto, por alguma razão, Eriberto não se libertava de sua posição mediana, enquanto via outros, mais jovens muitas vezes, passarem e crescerem. Isso o frustrava ainda mais. No escritório, Eriberto tinha particular amizade com Silvio, uma década mais jovem.

Silvio era dinâmico e sempre motivado, não havia dúvidas que logo seria mais um a passar Eriberto. No entanto, Silvio sempre ouvia o que Eriberto tinha a aconselhar, afinal, acreditava que dez anos a mais de experiência deveriam significar alguma coisa.

- Eriberto, o chefe pediu para que eu cuidasse dessas notas em atraso, mas não faço idéia do que fazer com elas, pois não faz parte dos meus processos.

- Ora Silvio, deixe ai! Não é sua responsabilidade, nem a minha. Aliás, tudo nessa empresa é assim, uma bagunça! Daqui a pouco estou servindo cafezinho. Nem sei o porquê ainda trabalho aqui!

Apesar de “reclamão”, Eriberto tinha sua razão e Silvio resolveu seguir o conselho, encostou a papelada e a deixaria lá até alguém reclamar. Dias depois, Silvio veio apresentar um idéia.

- Eriberto, criei um novo processo. Veja que se isto passar pela área de marketing com a aprovação necessária, economizamos tempo depois para liberar a compra.

- É mesmo? Deixa-me ver isto. – Eriberto tomou o esquema desenhado numa folha de papel da mão de Silvio e refletiu por um instante. - Então, mas se passar por marketing podemos ter problema de aprovação, sabe como é aquele pessoal, sempre fazendo de conta que estão super ocupados e deixam as coisas pra depois. Quando a bomba estoura é sempre na nossa mão.

- Mas isso não pode acontecer, porque... - Silvio foi interrompido por Eriberto.

- Silvio! Vai por mim, eu sei como as coisas aqui funcionam. Rapaz... Se quiser alguma coisa da vida, é bom procurar outro lugar, porque esse aqui é um buraco!

Silvio engavetou seu projeto, julgou que Eriberto tinha razão. Sendo jovem e novo na empresa, achou melhor não parecer muito intrometido. Apesar da criatividade latente e do desejo de trabalhar para fazer seu melhor, julgou prudente dar mais um tempo. Tempos depois, Silvio novamente recebia conselhos de Eriberto.

- Eriberto, estou querendo comprar um carro novo.

- E qual você quer?

- Aquele sport vermelho. O que acha?

Eriberto engasgou-se com o café que tomava. Assustou-se ao saber que o garoto, como ele enxergava Silvio, queria “seu” carro. Após recompor-se, instintivamente mostrou-se com pouco interesse.

- Ah sei... É um carro bonito, até eu já quis um daqueles. Mas então comecei a pesquisar sobre o carro, achei que não era uma boa idéia gastar meu dinheiro com ele. Estava pronto para comprar, à vista, mas acabei desistindo.

- Por quê?

- Ah, você sabe! Essa montadora tem muitos problemas, e como se não bastasse, a manutenção é cara, o seguro é caro. Tenho um primo, que tem um amigo que comprou o carro, e começou a apresentar problemas no primeiro mês. Má qualidade mesmo, sabe?

- Poxa vida! É mesmo? Não sabia. Bem, estava na minha lista outro carro, aquele sedan azul, é um pouco mais caro, mas acho que seria melhor.

Eriberto indignou-se por dentro ainda mais, como poderia Silvio querer um carro mais caro ainda? Estava ele ganhando mais que Eriberto?

- Mais caro? Bem, seria jogar um pouco mais de dinheiro fora. Esse lançamento ai foi um fiasco total. Tenho um vizinho que tem esse carro, já o dirigi muitas vezes, é horrível! Silvio nunca fora de pensar mal das pessoas, e tinha Eriberto como um bom amigo e mentor. No entanto, após alguns tempo de convivência notou que seu amigo tinha um comportamento estranho e desta vez realmente achou que suas palavras soavam mentirosas. Silvio resolveu fazer um pequeno teste.

- Então qual você me aconselha Eriberto?

- O hatch popular prata.

- Sério? Mas não é o carro que você tem?

- Sim, por isso eu recomendo, um perfeito carro, mesmo usado.

- Mas você não queria trocá-lo também?

Eriberto pego desprevenido, olhou para os lados enquanto buscava um resposta.

- Ah... Sim... Mas por isso não troquei, não achei carro melhor que aquele. Só se for uma Ferrari!

- Sei... Vou considerar sua sugestão...

- Vai por mim Silvio, vai por mim. - Eriberto não percebeu a ironia de Silvio.

Após algum tempo, percebendo que Eriberto tinha certa característica

autodestrutiva, Silvio decidiu por bem desconsiderar seus conselhos. Procurou saber o que fazer com as notas em atraso e as despachou. Desenvolveu seu projeto para um novo processo e o implantou. Isto rendeu-lhe honrarias, pois a solução foi extremamente útil, gerando economia de tempo e dinheiro. Graças a sua criatividade e bom trabalho, foi promovido a gerente e ganhou o prêmio para novos gerentes. Com este prêmio, Silvio comprou o carro sport vermelho sem pestanejar. Ao contrário do que pensava Eriberto, Silvio também não tinha dinheiro para comprar o carro, estava apenas desejando um carrão, como todo homem costuma fazer. Eriberto parecia não ter entendido isto e levou o

assunto realmente a sério. A promoção de Silvio foi mantida sob sigilo por alguns dias, até acontecerem alguns ajustes na empresa e finalmente Silvio ser promovido publicamente. Em seu primeiro dia como novo gerente, ou melhor, o dia em que todos saberiam que ele era o novo gerente, Silvio chegou de carro novo e estacionou na vaga de sempre, ao lado de Eriberto, que ainda não havia chegado. Minutos depois chega Eriberto e vê o sport vermelho. Ficara encantado, olhou em volta para ver se não havia ninguém o observando. Ao certificar-se que estava sozinho, encostou o rosto no vidro para ver

melhor por dentro e admirar seu sonho de consumo. “Colocaram na vaga do Silvio. Deve ser de um desses gerentes folgados, nunca respeitam as vagas, só porque são gerentes. Bando de folgados, todos amigos do dono da empresa, só assim mesmo para conseguir virar gerente!”, pensava Eriberto. Ao chegar ao escritório, vendo que Silvio já estava lá, perguntou:

- Bom dia Silvio. Viu que ocuparam sua vaga? Onde você estacionou?

- No mesmo lugar de sempre, do seu lado.

- Então rebocaram seu carro. Tem um sport vermelho lá.

- Justamente, esse é meu carro. Comprei.

Eriberto arregalou os olhos, silenciou-se por alguns instantes e finalmente disse:

- Meus parabéns! Só fico triste porque acho que logo você vai se arrepender, mas é um belo carro! Falando nisso o pessoal do marketing já “ferrou” com seu processo? – Foi difícil para Eriberto parecer natural e esconder seu desconforto, sendo necessário mudar de assunto rapidamente.

- Ainda não. Inclusive nosso diretor quer conversar conosco sobre isso.

- Não se sinta mal se ele decidir parar com tudo e te der uma bronca. As aqui são assim mesmo.

- Bem, não sei se é realmente sobre isso que ele vai falar.

A conversa foi interrompida com a chegada do diretor. Ele notificou que a partir

daquele dia Silvio era o novo gerente e que Eriberto deveria responder a ele suas

atividades, inclusive sua função no novo processo. Se fora difícil para Eriberto esconder o desconforto com o novo carro de Silvio, essa nova situação se tornara um verdadeiro desafio. No entanto, para que não convivia sempre com Eriberto, esses desconfortos não eram notados, pois ele sabia como disfarçar bem, mas Silvio entendia bem o que estava acontecendo com o amigo. Obviamente que Eriberto amargou mais uma vez a derrota, para alguém mais novo de idade, de empresa e com bem menos experiência. Para Eriberto, a vida têm sido muito cruel e injusta, pelo menos é o que ele pensava. Quando

foi embora, ao ver seu velho carro ao lado do tão sonhado sport vermelho, sentiu um forte sentimento de raiva e ao tirar a chave do bolso para abrir seu carro acabou fazendo enorme risco da pintura nova e brilhante do sport vermelho. “Foi sem querer!”, convenceu- se Eriberto, após seu pequeno delito.

No dia seguinte, Silvio já havia notado o risco na pintura de seu novo carro. Já

sabia também quem havia feito aquilo. Decidiu não comentar sobre o assunto, para evitar problemas, já que logo estaria nas vagas destinadas a gerentes. No entanto, decidiu que alguém tinha que falar algo para Eriberto.

- Eriberto. Tenho que falar-lhe algo.

- Pode dizer. Se for sobre o processo, estou fazendo minha parte, mas devo dizer que pessoal do marketing não está colaborando.

- Não é sobre isso. Não sei se alguém já lhe falou isso, se não, me perdoe, não se ofenda, mas é para seu bem.

Eriberto calou-se, olhando com olhos arregalados, sem saber o que esperar.

- Eriberto, você é um invejoso!

- O que? Invejoso? Eu?

- Eriberto, não estou te ofendendo. Às vezes, isso é uma doença, e precisa ser tratada, estou dizendo isso como seu amigo. Estou te dando uma semana de folga, e amanhã você vai passar no psicólogo da empresa, que vai te encaminhar e dizer o que deve fazer.

- Mas que absurdo é esse seu moleque! Acha que sou louco?!

Silvio manteve a calma.

- Eriberto, se acalme. Vou desconsiderar esse “moleque”, afinal você têm família e não quero agir de forma imprudente com você. Sou seu gerente e amigo, estou de dando uma semana para se tratar. Faça isso, ou então não terá mais seu lugar na minha equipe. - Silvio percebeu que pouco podia se argumentar com Eriberto, o ideal era ser direto.

Eriberto engoliu seco aquilo, ficou transtornado, mas decidiu calar-se. “Uma

semaninha de folga pelo menos!”, pensou ele. Naquele dia foi para casa, estava com a cabeça longe. Morava em um espaçoso apartamento, no décimo terceiro andar de um prédio numa área nobre da cidade. Ao entrar, foi recebido por sua bela e sempre amorosa esposa.

- Boa noite meu amor! Hoje fiz o que você mais gosta!

- Ah sim... Obrigado. - Eriberto estava distante e dirigiu-se para a sacada, onde costumava ficar para observar a cidade e refrescar-se nas quentes noites de verão.

- Papai! Olha o que fiz na escola hoje! A professora disse que sou o melhor aluno da classe! - Lucas, o filho de Eriberto de sete anos, pôs-se alegremente em sua frente mostrando um belo desenho, revelando um dom nato.

Eriberto passou sem dar atenção ao filho. Apesar do que pensa sobre sua vida, Eriberto havia conquistado muitas coisas, tinha um belo apartamento, uma família maravilhosa e tudo o que necessitava para ser feliz, mas não era. Algo o incomodava, o atrapalhava. “Invejoso? Invejoso? Isso é um absurdo”, Eriberto conversava consigo mesmo, remoendo os fatos daquele dia. “Não pode ser! Que moleque desgraçado! Tomar minha vaga e me chamar de invejoso! Eu sabia, essa vida é injusta comigo, fiz tudo, trabalhei anos ali e nunca consegui nada!”. Enquanto perdido em seus lamentos, Eriberto ouviu uma voz.

- Que coisa hein Eriberto! Sua vida é dura mesmo!

- Quem está falando? - Eriberto olhou em volta, não havia ninguém, sua esposa estava na cozinha terminando o jantar e o filho havia entrado no banho.

- Isso não importa muito. Estou vendo sua situação, você é realmente um homem azarado! Tudo dá errado pra você, seu trabalho, sua família, não consegue nem ser melhor que um “moleque” mais jovem que você.

- Quem está dizendo isso? Quem? – Eriberto olhou para baixo, procurando alguém na sacada de baixo, fez o mesmo procurando na sacada de cima.

- Estou dentro de você Eriberto. Na verdade, estou dentro de todas as pessoas, faço morada no coração de todas as pessoas. Mas no seu coração Eriberto, tenho uma mansão!

- Minha nossa, estou enlouquecendo! – Eriberto levou as mãos ao rosto e por um instante achou que realmente estava com algum problema de ordem psicológica.

- Calma Eriberto, você está bem. Sua vida que é uma droga, quarenta anos nas costas é ainda não conseguiu nada!

- Quem...? Quem é? - Eriberto sussurrava procurando ainda a sua volta a origem da voz.

- Muitos me chamam de Leviathan. Mas tenho outros nomes, que não vem ao caso agora.

- Por que está falando comigo? Por que está fazendo isso? - Eriberto vagarosamente sentou-se no chão da sacada, estava tentando manter o pouco da sanidade que lhe restava.

- Quero te ajudar Eriberto. Seu trabalho não é uma droga?

- Sim... - Eriberto respondeu em lágrimas.

- Seu carro não é uma droga? O apartamento do vizinho não é mais bonito?

- Sim... Sim... - Soluços vieram acompanhando as lágrimas.

- Eriberto... A esposa do outro vizinho é mais bonita, mais prendada. O filho dele é mais inteligente. O Silvio é melhor que você e conseguiu ser gerente e ter o carro que você queria. Todo mundo está roubando tudo o que deveria ser seu.

- Por que isso? Por que todo mundo está contra mim!

- O mundo é assim Eriberto... É cruel. Você infelizmente não teve sorte. Todo

mundo teve sorte, menos você, não tem um amigo que é chefe, não conheceu uma mulher bonita e não teve filhos inteligentes, além de ter um trabalho de merda!

- Eu sei... Eu sei... - Eriberto estava com o olhar perdido, procurando algo lá baixo, enquanto segurava a grade da sacada contra seu rosto.

- Olha lá em baixo Eriberto. Veja quantos carros bonitos, veja os outros

apartamentos, veja como são bonitos, olhe quantas belas mulheres. Há tanta coisa boa no mundo e você não conseguiu nada.

- Sim... Eu não consegui nada... - Eriberto parecia estar num transe, repetia essa sentença diversas vezes, como se fosse um mantra.

- Mas vou te ajudar Eriberto. Levante-se.

Ele obedeceu e pôs-se de pé.

- Vou te ajudar a conseguir tudo aquilo que você quer. Tudo o que você tem direito.

- Sim, me ajude!

- Suba na grade, abrace o mundo Eriberto!

- Sim, vou abraçar o mundo! - Eriberto iniciou uma escalada desajeitada pela

grade.

- Veja o que te espera Eriberto, os carros, as casas! Tudo! Vai Eriberto! Salte para sua riqueza, finalmente você terá tudo! Vai Eriberto!!!

Incentivado pelas palavras do Leviathan, Eriberto lançou-se ao vazio. Por um

momento, sentiu-se livre, voando, dono do mundo, no entanto, tal sensação durou poucos segundos. Quando alcançou o asfalto rígido voltou à realidade, uma realidade de diversos ossos quebrados, dor excruciante e a sensação de ter sua vida se esvaindo. Enquanto agonizava em seus segundos finais, ouviu a voz do Leviathan novamente.

- Não disse que te ajudaria Eriberto? Para onde você vai agora não precisa de mais nada, não precisa de carro, de casa e nenhuma riqueza. Você vai para um lugar onde vai ser igual a todo mundo. Veja que maravilha! Não haverá ninguém melhor do que você. Me agradeça depois. A propósito, pessoas me conhecem também como Inveja. Muitos nomes, sabe como é? Quando se é uma figura pública, cada um te chama de um jeito. Moro em cada um Eriberto, mas em você, construí uma mansão.

O corpo moribundo estatelado no chão libertou o último expiro.

LeoLopes
Enviado por LeoLopes em 03/02/2011
Reeditado em 18/03/2011
Código do texto: T2769787
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