CIDADE MALDITA

I

Amaldiçoada. Ele sabia que nada de bom poderia existir num lugar que carrega um adjetivo tão emblemático no próprio nome. Mas, a bem da verdade, ele não se importava muito para crendices tolas como as que rondavam aquela cidade maldita. Afinal, ele mesmo cultivava alguns demônios em seu perturbado coração e, além do mais, nunca em sua vil existência se deparara com algo que não pudesse por um fim com o chumbo cuspido pela fiel companheira atrelada à sua cintura. Logo, não seria agora, no justo momento de acertar as contas com o traidor, que o gelo em seu sangue conspiraria contra a determinação de sua alma.

Seu nome é Jack Rattlesnake, um famigerado fora-da-lei pertencente a um grupo de pistoleiros conhecido como “O Tridente do Diabo”, um trio de baderneiros que espalhava o terror em toda a região das planícies pedregosas do baixo Texas. Jack e seu bando foram atraídos para a cidade por conta da lenda de um suposto tesouro enterrado no subsolo da velha igreja local, uma obra inacabada até os dias de hoje. Os rumores davam conta de que o ouro ali escondido fora fruto do maior roubo que se tem notícia em todo o Oeste Sangrento.

O Tridente do Diabo teve acesso à peculiar história meio que por acaso. Numa noite de bebedeira e luxúria, algo tão comum em sua vida, Jack Rattlesnake deparou-se com uma singular tatuagem no corpo de uma das prostitutas que o rodeavam. Havia algo de estranho por trás da beleza daquela mulher, alguma coisa além do fato de que sua pele ostentava a tonalidade típica dos nativos americanos. Os traços estampados na omoplata direita da prostituta assemelhavam-se aos contornos de um mapa. Por uns trocados a mais, a indígena garantiu exclusividade ao bandido...

- Afinal, qual é o seu nome, pele-vermelha?

- Já tive muitos nomes, cowboy. E te garanto que os privilegiados pela minha companhia pouco se importam com isso. Mas se conhecer um nome é algo imprescindível para você, fique sabendo que no mal freqüentado saloon de Amaldiçoada, eu era conhecida como Zuni, um apelido que ganhei de Dirty Billy, o repugnante dono daquele lugar decadente.

- Ora, eu adoraria ficar falando sobre seu trabalho, Zuni. Mas, na verdade, estou mais interessado nesse desenho que você carrega no ombro.

- Você me diverte, cowboy. Primeiro um nome e agora desenho? Bem, o dinheiro é seu. Gaste como quiser. Mas, posso te contar sobre os riscos em minha pele. Afinal, eu preciso dar um jeito nessa situação. No fim, quem sabe você não se anima a me ajudar...

Em seu relato, a índia confessou que fora obrigada a abandonar a cidade, pois não eram raras as noites em que não recebia nem um reles Dólar furado por seus préstimos. Amaldiçoada era um lugar difícil, ela fez questão de frisar. Mas não era seu desejo abrir mão de viver lá, porque, no fundo de sua alma, ela nutria a convicção de que algum dia encontraria alguém disposto a se aventurar com ela nas ruínas da velha igreja, em busca da merecida redenção.

Ela disse que há muitos anos, a ferrovia, que ainda hoje serpenteia os arredores da Cidade Maldita, fora percorrida pela última vez por um trem, antes que a ponte, o único elo com a cidade, simplesmente desabasse no derradeiro cânion antes do vilarejo, sem qualquer razão aparente. Um dos vagões trazia em seu interior um grande carregamento de ouro. Reza a lenda que representantes das mais diferentes classes de Vale Dourado, como até então era conhecida a cidade, participaram do ataque ao vagão precioso. Políticos, policiais, religiosos, gente do povo, enfim, praticamente toda a cidade, de alguma forma, esteve presente no roubo. Simularam uma ofensiva Apache. Passageiros, operadores, maquinistas, seguranças, todos foram assassinados. Muitos foram escalpados, a maioria queimada.

O ouro seria usado para financiar o combate a uma terrível peste que assolava o outro lado do país. Dizem que a maldição estava diretamente relacionada a esse detalhe, o sofrimento de muitos pela ganância de poucos...

Verdade ou não, o fato de que Vale Dourado entrou em franca decadência após o incidente era inegável. Todos os envolvidos simplesmente desapareceram, assim, sem qualquer explicação. Sabe-se apenas que eles planejavam construir uma igreja, a qual serviria como uma fachada para proteger e ocultar o segredo enterrado, até que a poeira baixasse. Alguns céticos forasteiros insistiam que os ladrões haviam fugido com o fruto do roubo, lançando os boatos no ar como forma de confundir as investigações. Mas, mesmo estes, que carregavam a desconfiança debaixo do braço, não ousavam por os pés no solo arenoso de Amaldiçoada.

Alguma coisa rondava aquela área, algo hediondo e maligno, capaz de afugentar os operários que trabalhavam na construção da casa sagrada. Os que insistiam em continuar simplesmente apareciam mortos, assim como os tolos que tentavam revolver a terra em busca do ouro. Muitos corpos amanheceram largados no cemitério nos fundos da construção. A igreja inacabada mostrava-se como uma ameaçadora advertência: Afaste-se ou morra!

- Certo – disse Jack – então suponho que o desenho que você carrega na pele indica a localização exata do ouro roubado?

- Sim. Isso mesmo.

- E como você conseguiu a tatuagem com o mapa?

- Não sei.

- Não sabe?

- Não. Sempre tive o desenho. Desde que nasci.

- E por que você não foi atrás do tesouro enterrado?

- Você não me ouviu? Aquele lugar é maldito! Eu não quero morrer!

- E você acredita mesmo nessas tolices?

- Escute, cowboy, você não conhece Amaldiçoada. Você não viu as coisas que eu vi. Gente que aparece morta simplesmente por caminhar durante a noite, religiosos com as entranhas à mostra por rezarem pelas almas perdidas, apitos e engrenagens rangendo numa ferrovia desativada, sombras e gritos no cemitério, o último xerife da cidade rasgou a própria garganta com a estrela que carregava no peito. Não, forasteiro, prefiro não me arriscar por lá. O dinheiro que ganho com o meu corpo não é muito, mas pelo menos vejo a luz de um novo dia. A não ser que...

- A não ser que?

- Que você queira tentar localizá-lo comigo. Escute, sozinha eu não tenho coragem. O meu maior desejo é resgatar todo aquele ouro e nunca mais ter de aceitar o hálito fétido de um bêbado em mim. Mas, entenda, eu sou de lá, sozinha eu não conseguirei. Seja na cidade ou nas terras além de suas fronteiras, eu nunca encontrei uma viva alma disposta a me acompanhar.

Ora, Jack não era homem de virar as costas aos apelos de uma bela mulher, ainda mais se esta trouxesse o caminho para o ouro estampada nas próprias curvas. Se o Tridente do Diabo não temia os braços da lei, o que dizer de toscas histórias de fantasmas?

Assim, não tardou para que o grupo cruzasse a aridez do deserto rumo à Cidade Amaldiçoada. Durante todo o longo percurso, nada de anormal surgiu no caminho dos renegados. No entanto, bastou que descessem o curso do Rio Vermelho, já nas entranhas rochosas do povoado, para que um estranho fenômeno se abatesse sobre os bandidos.

Sem qualquer motivo aparente, Ted Wild, o mais impulsivo do grupo, aproximou-se do adormecido Cactus Bill de maneira silenciosa e traiçoeira, tal qual uma cascavel. Em seguida, descarregou o conteúdo de seu rifle winchester 73 contra o corpo do companheiro. A vida ensinou a Jack Rattlesnake que no Oeste Selvagem, se você quiser prorrogar sua existência, precisa aprender a dormir com um dos olhos bem aberto. Nunca teve lição melhor. Com habilidade, o pistoleiro conseguiu se proteger numa rocha antes que o irreconhecível Wild também pudesse alvejá-lo.

Tendo a pedra como escudo, Jack chegou a trocar tiros com o maldito traidor, mas já era tarde. Ted conseguira partir levando consigo a mulher. Os cavalos jaziam ao lado de Cactus Bill. Aos poucos, as sombras da Cidade Maldita abraçaram o casal fugitivo.

Jack Rattlesnake desprezava xerifes, índios e cavalos fracos. Odiava trapaceiros no poker, covardes e whisky barato. Porém, mesmo sendo um cafajeste da pior estirpe, o que ele mais detestava, com toda a fúria e rancor de sua alma condenada, era a traição. Em sua moral ilógica, ele julgava que até mesmo entre os canalhas deveria haver honra.

II

O sol estava se pondo. Se fosse apenas por sua vontade, Jack Rattlesnake teria acabado com a raça de Ted Wild ali mesmo, sobre a madeira enegrecida do balcão imundo daquele saloon. Não fora difícil encontrar o traidor. Um bêbado inveterado como era, não se daria ao trabalho de seguir numa empreitada sem antes queimar a goela com as graças do demônio etílico. No entanto, um bandido honrado como Rattlesnake não poderia estourar os miolos do infeliz sem lhe dar o direito de defesa num duelo justo. Até o mais podre dos ratos merece uma chance. Os antigos amigos lutariam pelo direito aos caminhos tortuosos do corpo da prostituta.

Segundo a lei local, os tiros deveriam ser trocados até a partida do sol, porque, uma vez sob o domínio da escuridão, não haveria vencedor ou perdedor. Na verdade, não sobraria ninguém nas ruas. Jack achou tolice, mas, a cozinheira de uma velha taberna, sua lembrança mais remota da palavra “mãe”, sempre lhe dizia: “Na casa alheia, recolha a sua teia.”

O céu avermelhado marcava o tom do cenário. Escarlate no céu, sangue na areia, era o que diziam. O agente funerário fizera uma leitura visual das medidas dos oponentes, a prática levava à perfeição. Um velho Apache intermediava o duelo. Os homens permaneciam de costas um para o outro.

- Após a contagem de dez passos, virem-se e atirem - disse o pele-vermelha.

O suor escorria pela barba espessa do rosto de Jack. Mesmo com a proximidade da noite, o calor insistia em torrar os miolos de cada ser vivente de Amaldiçoada. Os efeitos da bebedeira desapareceram de súbito da mente entorpecida de Ted Wild. De uma forma estranha, parecia que ele havia retornado da espécie de transe no qual estivera mergulhado. Mas já era tarde. Não havia como retroceder daquele ponto.

O dedo vacilante de Wild deslizava sobre as ranhuras do gatilho. Parecia que toda a população daquele lugar amaldiçoado estava presente para testemunhar o duelo. O ouro pouco importava naquele momento. Ele só queria se virar e pedir para o companheiro esquecer de tudo aquilo, havia um sem número de diligências para serem saqueadas, muitos bancos esperando por uma visita sórdida.

Um ...

O olhar de cada um dos habitantes oferecia um misto de apreensão e excitação. Jack já havia tirado a vida de muitas pessoas, umas por merecimento, outras nem tanto. Mas nunca se sentira com a fragilidade tão exposta quanto naquele momento. Em sua mente vagava a possibilidade, e o medo, de que pela primeira vez em sua vida, ele pudesse hesitar em despejar o veneno em forma de chumbo.

Quatro ...

Ted sentia todo o peso do mundo em suas pernas. Mas, ainda assim, marchava rumo a um dilema: Perder a própria vida ou ceifar mais uma parte do Tridente? Céus! Como seria viver carregando o peso de uma dupla traição? Maldita hora para ser abraçado pela sobriedade. Mas nem mesmo um barril de whisky seria capaz de tirá-lo da realidade mórbida que lhe encobria até o pescoço.

Sete ...

Muitos abutres sobrevoavam a região defronte a casa oficial do prefeito. Com a proximidade da noite, o canalha já deveria estar escondido feito um rato nas profundezas da fortaleza. Muitos queriam oferecê-lo ao apetite voraz das aves carniceiras. Mas, pelo menos por aquela noite, parecia que os bicos afiados estariam destinados ao banquete iminente oferecido pela carcaça de um dos forasteiros. A carne nobre do político teria a sua vez...

Nove...

Rattlesnake apertava com vontade o cabo do seu Colt 45. Ele jurava ter visto uma imagem improvável, talvez fosse obra da ilusão causada pelas luzes incomuns do arrebol. Não havia tempo para divagações.

Jack sentiu, Ted Wild também percebeu, algumas pessoas exibiam um brilho faiscante no olhar. O cheiro da morte tomava-lhes as narinas...

Dez...

Estampidos ecoaram pelo ar da Cidade Amaldiçoada. A multidão gritou, exultante, com os disparos. Em ambas as armas, o cão era alisado com velocidade pelas mãos calejadas. A maciez da carne era rompida sem cerimônia pelo chumbo em brasa.

A terra seca e batida da rua principal da cidade banhava-se com o sangue carregado de pecado. O chão parecia sorver com sofreguidão o líquido expelido pelos inúmeros buracos espalhados pela superfície dos corpos abatidos. Não houve vitória naquele início de noite em Amaldiçoada. Pelo menos não para aqueles que duelaram.

Naquela altura, o Tridente do Diabo já deveria ter retornado para seu dono. Mas antes de cerrar os olhos pela última vez, Jack Rattlesnake teve a certeza acerca da visão que tivera. Não, não fora ilusão. Era Cactus Bill que lhe sorria do alto da única torre da igreja. Ele exibia o mesmo sorriso deformado de sempre, mas seu olhar era vazio por trás daquele brilho tímido.

Não havia dúvida quanto ao que vira, afinal, ele mesmo também estava nas ruínas da igreja. Ao seu lado estava Ted Wild. Agora ele entendia que os corpos arrastados de maneira apressada pelos moradores seriam largados em covas rasas no cemitério às suas costas. Porém, suas almas não seriam enviadas de imediato para o inferno. Elas permaneceriam trancadas nos novos tijolos que se somavam à obra, até que a igreja fosse finalmente terminada.

- Você – disse o Apache que fizera às vezes de mediador do duelo, apontando para a mulher com a tatuagem na pele, Zuni – você conseguiu mais duas almas. Mas ainda faltam muitas, até que o monumento ao Deus do homem branco esteja concluído às custas do sangue daqueles que nos acolheram.

- Sim, meu amado.

- O roubo do ouro que ajudaria os necessitados. A culpa lançada contra os Apaches. A profanação de um solo sagrado com o fruto do pecado. Acho que nada disso enraizou tanto o ódio no coração dos índios quanto o nosso amor proibido. A maldição proferida por seu pai, e pelo maldito do seu marido, não deixará nossas almas descansarem até que terminemos. O tormento de Amaldiçoada continuará até lá. Ninguém poderá deixar a cidade, seja vivo ou espírito.

III

A noite lançava seus braços traiçoeiros sobre a Cidade Maldita. No saloon de Dirty Billy, os bêbados tentavam se refugiar da ira das almas condenadas. Em vida, tolos enganados pela esperança do ouro fácil, agora predadores em busca de vingança nas ruas desertas.

Notas distorcidas eram despejadas no ar por um piano, enquanto as mãos habilidosas de um marceneiro talhavam uma nova inscrição na placa de entrada do saloon: “Amaldiçoada, população nas paredes da igreja, 13.877 almas”.

Longe dali, numa cidade qualquer do Texas, uma índia de beleza radiante desfilava sua presença por entre as hordas mais sórdidas num saloon da mais baixa categoria. Displicentemente, ela deixa cair as vestes que lhe cobriam parte das costas, chamando a atenção de um sujeito mal-encarado que sorvia uma garrafa de whisky no gargalo.

- Ei, indiazinha. Você mesma. Venha aqui...

Zuni apenas sorriu...

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 24/01/2011
Código do texto: T2749561
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