Na folga do diabo...

Gastón era francês, uma pessoa calma, barbeiro, aprendera o ofício quando ainda infante, na região basca onde nascera, e na verdade o nome Gastón já é uma referencia a quem vem do país Basco.
52 anos, bem vividos, bonachão, um longo bigode e uma inseparável boina francesa, dos tempos da tumultuada juventude. A rebeldia revolucionária lhe levara muitas vezes ao champs elysees, para os famosos quebra-quebras das noites parisienses.
Hoje o jovem trazia além da experiência, inúmeras marcas no corpo e uma memória invejável, às vezes com dois ou três amigos daquela época, passava horas, lembrando datas, rostos, feitos...
Era manhã e apesar da distancia e da neblina via-se na penumbra a torre Eiffel, mesmo ali distante do centro.
Ainda arrumava seus utensílios de trabalho, limpava os móveis e cantarola aranjuez mon amour, quando viu o andar lento e dificultoso de um velho senhor do outro lado da boulevard em frente.
Gastón encostou bem os óculos no rosto e acompanhou o andar trêmulo da pessoa até outro lado da rua, e, por conseguinte, em frente a sua barbearia.
O Homem parou, olhou o nome fantasia da placa, olhou de um lado e de outro e entrou...
___Bom dia senhor!
___Bom dia, responde Gastón, passando a mão no queixo, havia algo familiar naquela voz...
___Mas sente-se, fique a vontade, disse Gastón e arrumou a cadeira de barbeiro.
O homem arrumou o tapa olho do lado esquerdo, retirou a sua boina e disse.
___Cabelo e barba, por favor...
___Pois não, concluiu Gastón...
Depois que colocou a proteção de pano para a roupa do cliente, Gastón notou uma cicatriz na orelha esquerda dele.
Resolveu começar a conversar...
___O senhor vem de onde?
___Reims em Marme, afirmou o idoso.
___Estou apenas de visita, completou.
___Como está a Catedral de Notre Dame? Perguntou Gastón.
___Ótima, o senhor conhece Reims? Indagou o idoso.
___Sim, em 1968, houve manifestações lá também... Disse Gastón.
Quando Gastón falou em 1968, o idoso remexeu-se na cadeira de uma maneira nervosa.
___Foi na batalha de Rua da Catedral que um policial me levou o dedo mínimo da mão esquerda e me alvejou com um tiro aqui, veja... E mostrou Gastón uma grande cicatriz na espátula.
___Ainda bem que sobrevivi.
___Como se chama senhor? Indagou Gastón.
___Serge, afirmou o idoso.
O cabelo do idoso estava quase cortado, mas aquela orelha cicatrizada dele incomodava demais Gastón, e agora este nome...
Ao preparar o creme para raspar o pescoço do cliente, Gastón por trás dele o olhou longamente...
Não era possível... Depois de tantos anos, será? Será que Serge Cloud Tissot, o carniceiro de Reims, o assassino de estudantes estava ali sentado na sua frente, e estava a sua feição matá-lo?
Um rubor pousou na pele de Gastón como sob o efeito do veneno de uma lagarta, o seu rosto contorceu-se e ele disse ao idoso...
___Um instante senhor vou ao banheiro e já volto.
___Com a cabeça o idoso consentiu...
Em frente ao espelho, passou a conjecturar: Meu Deus faz tantos anos, e se for outra pessoa com o mesmo nome? E a orelha? Pode ser coincidência... Não usava tapa olho... Mas... Mas... Passou água no rosto e aquietou-se.
Poucas vezes Gastón viu na verdade, Serge, e por isso, considerou a idade de Serge, quase 20 anos a mais que ele, e resolveu voltar para a sala da barbearia.
Por diversas vezes esteve para perguntar qual era o nome completo do idoso, mas viu que não tardaria para que a morte o viesse buscar por vias naturais.
Em outras oportunidades, ali, passeou com a navalha no pescoço do carrasco, e na dúvida arrefeceu o seu ódio, embora a cada passada de navalha, lhe vinha na memória o rosto de quem segurava a arma que lhe pôs no chão, desfalecido, naquele dia...
Terminado o trabalho, o idoso, levantou-se no momento em que uma viatura policial estacionava em frente...
Antigos clientes, de longe acenaram para Gastón, saíram do carro e já se dirigiam para a barbearia, quando Gastón cobrou o idoso, e o acompanhou até a porta...
Na saída enquanto cumprimentava os policiais Gastón Perguntou ao idoso...
___Como é seu nome mesmo senhor?
___Serge...
___Serge Cloud Tissot.
___Neste momento um veiculo ao seu lado abriu a porta ele entrou e sumiu na boulevard.
 
Gastón que ainda estava com a navalha na mão, para ser usada num momento final, fechou-a, e engoliu sua cólera com um sorriso para os amigos...
 
Malgaxe 
Malgaxe
Enviado por Malgaxe em 22/01/2011
Código do texto: T2745626
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.