Meu Coração Está nas Terras Altas

Estou nas Terras Altas há uma semana. Na verdade, estou de volta às Terras Altas há uma semana. Adoro a Escócia. Traz-me inspiração.

Meu coração está nas Terras Altas.

Há alguns anos, vinha de Londres para cá em qualquer folga. Trazia sempre comigo Lizzie e as crianças. Hoje, porém, estou sozinho.

É uma história complicada. Tentarei explicá-la. Não garanto que irei conseguir.

Comprei uma bela casa em Inverness, há cinco anos. Dois andares, três quartos, e a apenas alguns minutos do Lago Ness. Um lugar perfeito para passar as férias, pensei.

Não, o velho Monstro do Lago nada tem a ver com a história que vou contar. Bem, pelo menos até onde eu sei.

Passamos nossas primeiras férias aqui logo depois da aquisição da casa. Que lugar maravilhoso! Castelos, lagos e haggis à vontade. Passeamos por toda Inverness, por Stirling e outras cidades próximas. Ben, nosso filho mais velho, na época com sete anos, ficou encantado em conhecer o Lago Ness. A pequena Jane, então de apenas quatro, adorou correr e brincar em nossos piqueniques. Nossa primeira estada foi de um mês. Conhecemos vizinhos, e fizemos amizade com alguns, especialmente com o casal Heaton. Os Heaton foram guias das Terras Altas para nós, uma vez que eram nascidos e criados aqui. Também tinham um filho pequeno, de modo que os passeios eram sempre familiares. Foi um tempo muito agradável.

Fomos pela segunda vez na primeira folga que tirei do trabalho. Enquanto estava na Inglaterra, eu só pensava em voltar para cá. Mal pude conter a excitação quando o dia da viagem se aproximava. Falava sobre isso noite e dia, em casa, ao telefone e no trabalho. Eu estava perdidamente apaixonado pelas Terras Altas.

Nossa segunda temporada na nova casa foi mais curta. Apenas uma semana.

Mas igualmente prazerosa.

Eu relutei em ir embora. Porém quando se é um adulto você tem deveres a cumprir. Já haviam me ligado da loja por conta de alguns imprevistos, logo eu não podia estender por nem mais um dia minha folga. Na volta, apenas uma certeza.

Meu coração já estava nas Terras Altas.

Assim vivi durante três anos. Indo e vindo de Londres para Inverness. Quando não estava na Escócia, pensava como seria bom se estivesse. Quando estava, só conseguia pensar que era o paraíso.

Lizzie e as crianças também adoravam. Não tanto quanto eu, devo admitir, mas nunca reclamaram de me acompanhar. É bem verdade que algumas vezes passei sozinho aqui por curtos períodos quando por algum motivo não podíamos vir os quatro. Não eram tão animados quanto, mas assim mesmo eu me sentia extremamente bem. Nessas ocasiões, os Heaton foram especialmente gentis e atenciosos comigo, me suprindo qualquer eventual necessidade.

Foram belos esses anos. Pena que acabaram.

Agora explicarei por que.

Primavera, há dois anos. Os negócios em Londres estavam indo de vento em popa. Na condição de gerente, me dei uma folga de uns dias. Fazia dois meses que não vinha a Inverness, e eu já estava ficando impaciente. Arrumamos as malas, e partimos de manhã cedo.

Os primeiros dias seguiram a regra. Foram maravilhosos.

Depois vieram os barulhos. E a mensagem.

Alguns dias após nossa chegada, fomos ao Castelo de Stirling. É um lugar lindo, ao qual já tínhamos visitado algumas vezes. Passamos o dia na cidade, e no fim da tarde voltamos a Inverness.

Jantamos com os Heaton na casa deles. Depois, voltamos para casa, todos exaustos do passeio de dia. Deitamos cedo.

Foi quando ouvimos.

Estávamos os quatro deitados há algum tempo, e as crianças certamente já haviam adormecido. Escutamos murmúrios baixos e distantes. Vinham do andar de baixo. Desci para verificar,e nada encontrei. Apenas impressão, pensei, apesar de Lizzie também ter afirmado escutá-los. Não pensei mais no assunto, e dormi. Mas tivemos uma grande surpresa no dia seguinte.

Sentado à mesa do café, quase derramei meu chocolate quente. Na parede sobre o fogão, em tinta vermelha, estavam as palavras NÃO HÁ ESCAPATÓRIA. Meu sangue gelou.

Mostrei a Lizzie. Ela quis imediatamente ir embora. Não, depois de dois meses sem vir, eu não iria embora por uma mensagem na cozinha, por mais misteriosa que fosse. Perguntamos a Ben e Jane, então já com dez e sete anos, se algum deles havia aprontado aquilo. Os dois negaram. Para que não ficassem assustados, dissemos que era brincadeira, que papai e mamãe haviam feito.

Perguntamos aos Heaton e a outros vizinhos mais íntimos, se havia sido algum deles em uma pegadinha para nós. Sabíamos que provavelmente isso não teria acontecido, mas quisemos ter certeza. Todos também negaram.

Na noite seguinte, veio a visão. E a segunda mensagem.

Estávamos mais uma vez deitados em nosso quarto, ao lado do quarto das crianças, no andar de cima. Devido ao ocorrido na noite anterior, ficamos alerta até mais tarde.

Então vimos. Assim como Ben.

Da nossa cama, podia-se espreitar pela porta, que deixamos aberta. Quando estávamos os dois, eu e Lizzie, quase pegando no sono, um flash de luz grená brilhou fortemente, passando pela porta.

Fomos ao corredor, mas mais uma vez não havia sinal de nada fora do comum. Voltamos para cama.

Pouco depois, Ben entrou em nosso quarto aos prantos.

"Papai, mamãe! Tive um sonho muito ruim, uma luz vermelha escura queria me pegar, e...". O acomodamos entre nós enquanto ele soluçava.

O que Ben tomou como um pesadelo, Lizzie tomou como um ultimato para irmos embora na manhã seguinte, sem esperar sequer mais um dia. Rebati com todos os argumentos que pude, mas nada a convenceu do contrário.

Aquele mistério me assutava, mas de algum modo, me fazia amar ainda mais aquele lugar repleto de castelos, história e montanhas. Parecia-me fascinante, e decidi que iria desvendá-lo. Não naquele momento, pois minha mulher estava claramente exaltada demais para discutir a permanência no local, nem que fosse por mais uma noite apenas.

Voltamos à Inglaterra, quatro dias antes do previsto. Fiquei extremamente chateado, pois estava irremediavelmente atraído pelo local, e agora pelo mistério no qual nos encontrávamos.

Meu coração para sempre pertenceria às Terras Altas, eu percebi.

A segunda mensagem, encontrei antes de partirmos. Na mesma tinta vermelha, desta vez no espelho do banheiro, estava escrito O GRENÁ VOLTARÁ, E TUDO LEVARÁ. Contei a Lizzie sobre isso. Não havia necessidade. Até hoje não entendo porque o fiz.

Bem, isso foi há quase um ano. Não preciso mencionar que minha mulher e meus filhos jamais voltaram a Inverness desde então. Na verdade, eu mesmo estou de volta há apenas uma semana, como já disse. Não que eu não tenha querido vir, mas porque pretendia manter meu casamento. Ele chegaria ao fim no minuto que eu voltasse para cá, tamanho o pavor de minha esposa diante da situação. Pavor que para mim era estimulante. Não houve um dia sequer durante todo o tempo que estive ausente em que eu não pensasse sobre o assunto.

Meu coração está nas Terras Altas, como já mencionei.

Então surgiu minha oportunidade de ouro. O pai de Lizzie está gravemente doente. Ela viajou a Manchester para vê-lo e dar suporte à sua mãe. Levou as crianças, pois provavelmente seria a última oportunidade de encontrarem o vovô.

Peço perdão, mas fiquei muito feliz com a notícia da viagem dela. No dia seguinte me dei folga da loja e viajei a Inverness. Ah, como era bom estar de volta!

Revisitei todos os lugares dos quais sentia saudade, assim como os bons e velhos amigos, que não entendiam nosso sumiço repentino. Vida atribulada em Londres, menti. Comi Haggis, fui ao Lago Ness. A alegria pela volta era tanta, que o mistério ficou em segundo plano, o que chocou a mim mesmo.

Mas há algumas horas, tudo mudou.

São duas e meia da manhã.

Hoje saí com Jim West, velho amigo e vizinho. Jantei em sua casa e voltei para a minha. Assisti televisão e fui me deitar.

Comecei a sentir meus olhos se fecharem. Estava quase dormindo.

Então eu vi.

Aquela mesma luz grená, brilhando dessa vez ainda mais intensamente e jogando seu brilho por todo o meu quarto de modo ofuscante. Durou apenas alguns segundos.

Porém, ela estava de volta. Como o prometido.

Quando o brilho cessou, pude ver em letras garrafais a nova mensagem, agora na parede em frente a minha cama.

NÃO HÁ VOLTA AGORA.

Vejo que realmente não há.

Consigo escrever estas palavras com o pouco de energia que me resta. E com o pouco de sanidade da qual ainda desfruto.

Logo não serei capaz de mais nada. Ainda estou em minha cama, mas em breve estarei em outro lugar. Um lugar terrível, posso ver. A luz voltou. Agora está ficando tudo grená. Logo engolirá tudo o que sou. Por todos os dias de minha existência, amaldiçoarei meu coração. Foi o que me trouxe a este desastre, o que me fez ser recrutado por este pavoroso destino que me aguarda através do grená. Eu vou, mas ele ficará.

Meu coração está nas Terras Altas.

Título do conto inspirado no poema "My Heart Is In The Highlands", de Robert Burns.

Dylan Jokerman
Enviado por Dylan Jokerman em 15/01/2011
Reeditado em 10/03/2011
Código do texto: T2731283
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.