A menina que se apaixonou pelo diabo
Responda se puder: Quantas vezes você pode me ouvir gritar agora?
Os sussurros daquela garota ainda eram ouvidos por todos daquela cidade. Ela já não gritava mais, não ria histericamente, apenas sussurrava nos ouvidos de cada um daqueles que a matou de ódio.
Vale das Orquídeas, ao norte de um condado rural na Inglaterra vivia Lídia, a menina anjo. Davam-lhe esse apelido por ela se parecer muito com uma pintura antiga de um anjo feita pelo fundador da vila. Lídia desde pequena sempre foi uma mocinha animada e alegre, costumava-se dizer que a garota afastava a tristeza como se fosse um amuleto. Tudo mudou no seu aniversário de 16 anos.
O dia começou agitado na casa da guria, os pais sempre davam super festas e geralmente eram poucos os que não iam. Era quase um festival. Lídia como sempre estava com a avó na cidade comprando um belo vestido e voltaria para o almoço. Todos os cidadãos faziam questão de ajudar.
Lídia e a avó estão no centro da cidade mais próxima do Vale, um lugar bem tranqüilo, não se compara a Londres em matéria de novidades, mas é uma cidade que tem seu charme. A senhora de aproximadamente 65 anos entra num café para pegar um para a viagem, enquanto a neta permanece quietinha na porta apenas observando todos a sua volta...quando o vê.
Algo nele expõe que ele não pertence aquela paisagem, mas é difícil identificar o que é. Para qualquer pessoa, ele era apenas um rapaz normal de aparentes 20 anos, alto branco e forte. Talvez fossem os cabelos desgrenhados e médios que lhe dessem aquele ar de estrangeiro. Lídia não conseguia tirar os olhos daquele sujeito, ela ficava ao mesmo tempo absolutamente perdida em tanta beleza e assustada com tamanha magnitude. Ela não saberia jamais descrever aquele homem para ninguém, aquilo ficaria com ela para sempre e somente com ela.
Voltaram para casa, o anjo do Vale das Orquídeas parecia cada vez mais perto do céu. A menina ficou aérea o dia todo, mesmo na hora da festa ela ficava andando pelos cantos e sempre com um sorriso bobo, mas ao mesmo tempo nervoso no rosto. Os parentes e amigos acharam que devia ser apenas coisa da idade, mas estavam enganados. A garota que antes era um símbolo de felicidade aos poucos se tornou uma menina retraída e calada. Tinha alguns surtos de agitação e nervosismo intensos que geralmente resultavam na sua mãe tendo que tranca-la como um animal.
- Ela ficou louca, pobrezinha!
- Dizem que os pais abusavam dela...
- Com certeza foi culpa da mãe, viu como ela sempre tratava a menina como uma deusa?
- Talvez ela já fosse assim,os pais que escondiam.
- Obra de bruxaria! Tenho certeza!
- Será que os pais dela venderam sua alma pro Diabo?
Os comentários na vila eram diversos, alguns tinham certeza que ela estava sob influencia do diabo, outros achavam que havia ficado louca. Lídia não dava mais sinais de que era aquela menina, não brincava nem cantava nem corria... Estava acabada. A garota passava a tarde trancada no quarto do sótão desenhando coisas que não mostrava a ninguém.
Num ato desesperado, a mãe mandou trazer da capital um médico renomado. Um grande psicólogo especialista em casos de esquizofrenia. Era um homem bem velhinho, mas com uma experiência médica de dar inveja. Ao chegar na casa da família, quis logo conversar com a mocinha e perguntar-lhe o que tanto fascinava ela a ponto de faze-la mudar completamente seu modo de agir. A resposta foi curta e simples:
- Eu vi um anjo a cinco meses atrás e ele disse que ia vir me buscar.
O médico ficou sem entender e fez mais uma bateria de perguntas, mas a menina permaneceu muda. Algumas semanas depois, o médico morreu enquanto dormia. Na cidade, todos acusavam o doce anjo de estar possuída, a mãe estava desesperada, já tinha muito tempo que não dormia a não ser à base de calmantes fortes.
Lídia nunca parecia se perturbar, a não ser quando dava as crises. Às vezes ela ficava rindo perturbadora e histericamente a noite toda e outras vezes gritava e esperneava como se a tivessem torturando. O médico presenciou ambos os ataques e ao perguntar o porquê de tudo aquilo a resposta variava entre as duas situações citadas:
- Ele veio me ver.
- Ele brigou comigo.
A vida da menina passou a ser controlada, segundo o médico, por um “amigo imaginário” e que só voltaria ao normal se a menina esquecesse esse amigo. A mãe da menina passou a entorpecê-la. Lídia aos poucos foi retrocedendo, até um ponto que ela começou a agir como se tivesse oito anos novamente. Andava linda e ingênua pelas redondezas de casa, mas sem nunca poder ir para muito longe, a mãe tinha medo de abusarem dela por ela ser linda e estar em péssimas condições mentais.
Depois de um tempo, a família de Lídia começou a preferir esconder a menina. Agora, nem nas redondezas mais ela andava com medo dos comentários maldosos dos vizinhos. A garota era tratada como um animal feroz que devia ficar preso dentro de casa para não machucar ninguém. Mais algum tempo se passou, e os arquivos de casos do falecido médico da moça foram abertos e a “existência” de Lídia fora revelada.
Outro médico foi até a vila para examinar a menina. O estado dela já estava deplorável, já não se reconhecia o anjo que um dia ela fora. Lídia apresentava olheiras fundas, estava magra e muito pálida, seus cabelos estavam mais ralos e quase não apresentavam mais uma cor viva. Até os olhos da garota parecia ter perdido o brilho. O médico ficou um tempo na casa da família, conversou e tratou de Lídia sem muito avanço. Até que percebeu algo que ninguém tinha parado para ver, foi olhar o que tanto a garota fazia com o caderno e o lápis dentro daquele quarto. A menina se debatia e gritava para que o médico não olhasse seu caderno, mas em vão. Logo foi descoberta certa obsessão por crucifixos, igrejas e um rapaz cujo rosto não se vê.
O médico ficou dias analisando o caderno, e cada vez que o abria mais um berreiro começava. As crises ficaram mais graves quando o médico passou a mostrar os desenhos para Lídia. Era como se a moça desenhasse para tirar aquelas coisas da cabeça, e quanto mais o homem insistia em mostrar as imagens ou falar delas, mais a garota gritava e se contorcia.
A vila inteira parecia ouvir os três meses de cruel tortura. O quadro mental da garota piorou de jeito tal que ela agora jurava que podia ouvir o que diziam dela pela cidade. Jurava que todos a depreciavam, a julgavam, a machucavam. O pai abandonou a mãe e a garota, agora com 16 anos, e a mãe, que virara alcoólatra, demitiu o médico e batia na menina toda a vez que ela começava a dar ataques. Numa última tentativa de salva-la, o padre local decidiu exorciza-la. Durante o ato, o padre prendeu as mãos e os pés de Lídia na cama e prendeu espinhos nos pés e nas mãos dela.
Durante cinco longas horas, ouviu-se a menina gemer, gritar e chorar de dor enquanto lutava para se libertar enquanto sua mãe morria afogada no próprio vômito esquecida na cozinha. Após esse período Lídia desmaiou. O padre concluiu que o exorcismo havia sido um sucesso, ele e as beatas se preparavam para sair quando avistaram na porta um homem desconhecido. O rapaz aparentava ter 20 anos, estava trajado com roupas de frio e seus cabelos embaraçados não permitia que os outros vissem seu rosto.
As beatas começaram a gritar dizendo que era o demônio, enquanto o padre tinha uma convulsão no chão. O rapaz andou calmamente pela confusão e, chegando até a cama de Lídia, tocou-lhe o rosto. A menina acordou e como num conto de fadas sua pele, seus cabelos e seus olhos voltaram a ter o tom vivo novamente. A menina não sorria, olhava fixamente para a janela de onde podia ver todas as casas e as pessoas, o homem, com um sorriso satisfeito, falou-lhe algo no ouvido, algo que a garota sussurrou por todo o Vale das Orquídeas enquanto sumia na neblina nos braços de seu cavaleiro negro e marido.
(Dedicado ao meu amado marido Spectro Sombrio)