A Vó

I.

Sinceramente, o que aconteceu nos meus primeiros anos de estágio me abalaram de forma tão avassaladora que decidi abandonar a faculdade no último ano. Estava eu cursando o quarto ano de psicologia na cidade de C. Quando por obrigação, para conclusão do curso, tive de ingressar em alguma instituição psicológica para acompanhamento diário de um profissional em atividade.

Minha grande felicidade foi conseguir uma das disputadíssimas vagas no Centro de Tratamento Psiquiátrico I. A. Onde fiquei aos cuidados do Dr. Osório. Era este um galante homem na faixa dos seus quarenta, quarenta e cinco anos, e eu sonhadora menina fiquei com o coração saltitante de felicidade ao pensar que aprenderia muito com aquele homem.

Os primeiros dias foram dedicados aquela espécie de aprendizado mecânico, me explicou o Dr. Osório toda a rotina da instituição bem como perpassou repetidas vezes o ideal ético de nunca comentar com ninguém os ocorridos internos. Talvez estas palavras, de um médico tão renomado, tenham realmente me afetado, ou talvez minha ética interna ou mesmo o puro medo tenha feito com que só agora muitos anos depois eu tenha coragem de relatar tais ocorridos.

A rotina diária dos internos constituía em acordarem por volta das oito da manhã, tomarem café em um grande salão seguido da dosagem de medicamentos. Logo após eram encaminhados aos grandes jardins que rodeavam o prédio, horas depois eles almoçavam e passavam cada um para seus tratamentos diversos. A instituição abrigava cerca de cento e cinqüenta, duzentos pacientes. Cabe aqui um pedido de desculpas àqueles que lêem este relato, afinal tantos anos passados podem afetar minha memória, aumentando números ou floreando fatos, mas não compete a mim esmiuçar os labirintos da memória para descobrir o que há de verossímil e o que foi modificado pelo tempo.

II.

De todos os pacientes assistidos pelo Dr. Osório, em especial uma me chamava a atenção. Seu nome era Lara, tinhas os cabelos loiros contrastando com sua sobrancelha escura, um nariz aquilino e uns olhos castanhos vitralizados, que até hoje não me saem da memória. Comumente ela se portava de maneira distante, nunca interagindo com os outros pacientes. Em seus banhos de sol, sentava-se ao pé de uma árvore e ficava com os olhos de vidro perscrutando o horizonte.

Como todos os outros pacientes, antes de começar meu acompanhamento ao lado do Dr. Osório, li seu histórico médico o qual constava, salvo erros de minha memória, o seguinte:

Lara Monteiro, casada, 35 anos, dona de casa. Sem antecedentes de problemas psiquiátricos na família. Após estresse pós-traumático, devido a perda de um filho passou a criar historias fantasiosas que explicam a morte do filho.

Lembro-me de ter ficado extremamente entristecida com o estado da paciente. Sou capaz de visualizar as seções, com o Dr. Osório sentado em sua cadeira de espaldar largo, pernas cruzadas, cigarro na mão junto com sua caneta e ao lado a prancheta onde ele tomava notas que depois me apresentava. Eu ficava sentada em um cadeira pouco confortável, com uma mesa tomada por carunchos, uma maquina de escrever onde eu datilografava as conversas entre Dr. Osório e Lara. Não consigo esquecer a maneira com que ela se sentava, como dobrava as pernas e abraçava os joelhos, como se aquela poltrona fosse o local mais incomodo do mundo. Certas passagens ainda estão claras como água para mim. Como quando Dr. Osório depois de várias tentativas o Dr. Osório conseguiu ganhar a confiança da paciente e ela começou a contar seu estranho relato.

III.

- Senhora Lara, poderia me dizer o que aconteceu ao seu filho? – perguntava o Dr. Co calma e voz de leitor de missa.

- Não quero, Dr. Ninguém acredita, do que adianta? Vim parar aqui justamente por isso, justamente por sair falando aos quatro ventos o que se passou naquela maldita casa.

- A senhora tem que entender que estou aqui para auxiliá-la. Que se cooperar e juntos descobrirmos o que está se passando, poderá voltar para seu marido. Poderá voltar a viver confortavelmente ao lado do homem que ama.

- Ninguém que perde um filho pode viver confortavelmente. Um filho é a coisa mais importante que uma mulher pode ter. Um filho é a razão nossa de existir e agora eu não tenho mais um porquê de existir. Estou vazia, vazia feito uma noz podre. – Nesse momento ela me olhava, seus olhos eram estáticos, não se moviam, como que travados no tempo, como que ancorados em algum momento do tempo onde a dor e o sofrimento haviam imperado.

De alguma forma, ao falar do filho, ela havia se virado para mim, na esperança de que sendo eu mulher pudesse compreender melhor o peso da perda de um filho. Logo eu, jovem ainda...

Mas o ato de virar-se para mim, afetou-me de alguma forma. Senti que pela primeira vez um paciente tinha confiança na minha pessoa. Que os primeiros passos rumo à uma vida profissional estavam sendo dados. Com certo receio mais cheia de vontade eu tomei a frente e decidi falar.

- Lara. Se a senhora sentir-se mais segura, eu poso não datilografar esta conversa, podemos falar assim como amigos, sem a obrigação de tomarmos notas. Podemos simplesmente ouvir sua historia. E eu sei que tanto eu como o Dr. Osório estamos aqui livres de qualquer preconceito. Estamos abertos a ouvir o que a senhora tem a dizer e buscarmos compreender o que se passou. – falei isso de supetão, as palavras esvaíram se de minha boca. Logo após fiquei com certo receio de ter passado por cima da autoridade do Dr. Osório, porem quando olhei para ele recebi um olhar de aprovação e até certo sorriso de orgulho.

Lara, pela primeira vez, desabraçou as pernas e reconfortou-se na poltrona. Empurrei a maquina de escrever para o lado, ao mesmo tempo que o Dr. Colocou a prancheta sobre a mesa. Ela pediu um copo de água que eu lhe entreguei, bebeu com sofreguidão, mexeu os olhos como a procurar por algo, quando sentiu-se, talvez, mais confortável, começou a historia.

IV.

“Tudo começou quando nos mudamos para a rua J. Em um pequeno bairro suburbano dessa mesma cidade. A casa era espaçosa e confortável, comprada por um preço relativamente bom e simbolizava o progresso de meu marido na fábrica, afinal com sua promoção tínhamos tudo para ingressarmos em uma vida melhor. Visualizava, eu, um ótimo futuro para nossa filho Michel, estudando em boas escolas e até quem sabe, tornando-se futuramente um médico. Com faculdade e tudo.

A rua era plana, uma espécie de beco, terminando em um balão. Atrás deste, havia um pequeno córrego, onde uma água brejeira e suja passava. Para atravessar essa ponte, alguém construirá a muito tempo uma ponte, pequena, feita de madeira e já quase toda tomada por musgos verdes que davam um aspecto um tanto lúgubre ao lugar. Michel desde a primeira vez que viu tal ponte, entrou em uma espécie de extasse. Uma felicidade estranha e pueril tomava conta dele, quando nos aproximávamos de tal lugar.

O primeiro mês naquela casa foi ótimo. Estávamos felizes e não existia família mais alegre que a nossa. Talvez a felicidade tenha me embriagado, ou talvez tudo realmente tenha só começado no segundo mês. Só sei que foi exatamente no meio do segundo mês de estadia naquela casa que eu reparei algo estranho. Michel veio até mim e me perguntou como era a vovó. Tanto eu como meu marido já aviamos perdido nossos pais e justamente por isso agarrávamos um ao outro dedicando todas nossas força na construção de uma boa família. Descrevi minha falecida mãe para meu filho tal como ela era: gorda, de olhos azuis, cabelos bem brancos, cortados bem rente. Depois descrevi a mãe de meu marido que era baixa, usava óculos e tinha o hábito de se vestir muito bem. Michel ficou muito nervoso, gritou comigo. Chamou-me mentirosa, atirou uma pedras, que carregava nas mãos ao chão e correu para seu quarto, onde escondeu-se entre cobertas e travesseiros e recusou-se a responder meus pedidos de que conversasse comigo. No jantar Michel permaneceu casmurro, e quando a sós com meu marido comentei com ele o ocorrido. Ele disse que crianças da idade de Michel costumavam criar amigos imaginários, que isso era bem comum e que era melhor eu não me preocupar. Mesmo descontente com a pouca atenção dada por ele, eu acabei me esquecendo disso e voltando as minhas obrigações de dona de casa.

Michel começou, cada dia mais, a se comportar estranhamente, e se por um lado isso me angustiava para o meu marido nosso filho estava normal e era eu que me preocupava demais e não deixava a criança crescer tranquilamente.

Vivia com pedrinhas na mão, tentava sair de casa às escondidas, não queria mais ir comigo até a pontinha. Tempos depois começou a pedir para ir até a pontinha junto com a vó, toda vez que ele me dizia isso eu ralhava com ele, tomava as pedrinhas de sua mãe e algumas vezes até o coloquei de castigo.

Certo dia acordei assustada, levantei-me e fui até a cozinha para beber um pouco de água, qual não foi a minha surpresa ao ver meu filho sentado de pernas cruzadas no chão da sala, absorto, olhando fixamente para a poltrona do sofá à sua frente, acendi a luz ralhei com ele, mandei-o para a cama, ele me xingou, acusou-me de nunca contar historias para ele e de que a vó sabia de muitas historias, disse isso e correu para o quarto. Sentei-me no sofá e comecei a chorar, procurando uma resposta para o que se passava com o meu filho. Nesse instante senti um cheiro forte de cigarro, tive até a leve impressão de que via uma serpentina de fumaça sair do nada acima da poltrona a qual meu filho olhava. Corroída de medo gritei pelo meu marido que, em instantes, chegou até a sala, perguntando pelo que ocorria. Falei a ele tudo o que havia se passado, ele me deu água com açúcar, abriu as janelas e levou-me para cama, não sem antes conferir que Michel dormia bem e tranqüilo.

Na noite seguinte, esperei meu marido dormir profundamente e sai na ponta dos pés, caminhei até a sala, e escondendo-me na borda da parede vi que Michel estava novamente sentado, como ele não demonstrou perceber minha aproximação, fiquei observando-o. Vi como ele estava compenetrado, como se alguém lhe contasse uma historia, em alguns momentos batia leves palmas, dava sorrisos ou assustava-se, com qualquer criança ao acompanhar uma narrativa. Eu percebia o forte odor de cigarro, e constatei que realmente uma serpentina de fumaça bamboleava saindo do vazio da poltrona. Exatamente as três da madrugada Michel despediu-se abraçando o vazio e antes que ele percebesse corri até meu quarto.

Passei o resto da noite em claro. Surgia em minha mente duas hipóteses, ou meu filho estava com algum distúrbio mental, ou algo inexplicável estava ocorrendo em minha casa. Decidi que não contaria nada ao meu marido e que tiraria o dia para descobrir algum meio de comprovar o que para mim parecia o incomprovavel.

Não sei bem onde ouvi que espíritos aparecem e espelhos, então peguei as economias destinadas ao presente de natal do meu esposo e comprei um grande espelho, para disfarçar coloquei-o de forma a refletir a poltrona que meu filho olhava todas as noites. Era dia em que meu marido pegava o turno da madrugada, portanto estaria eu sozinha em casa, ótimo momento para por em prática, sem preocupar-me com explicações, o meu plano.

Chegou a noite, escondi-me desta vez, atrás de um sofá, de forma que podia observar sem nenhuma dificuldade o espelho. Algum tempo de espera, e então veio meu filho, sentou-se como outras vezes eu já o tinha visto, fechei meus olhos, num último momento de covardia, vencendo-o abri as pálpebras e me deparei com algo assustador. O sofá vazio e o espelho refletindo uma velha senhora, tinha o rosto enrugado, a pele de um pardo que parecia possuir traços indígenas, os cabelos eram um amalgama de fios pretos, cinzas e branco formando um estranho grisalho. Vestia roupas simples, uma calça de pano barato azul, uma blusa de botões bege. Era magra, com um barriga protuberante, os olhos tinham as bordas esfumaçadas o que causava um certo desconforto ao mira-los. Na mão um cigarro de palha, que tragava lentamente, soltando pequenas baforadas, não conseguia ouvi-la mas parecia-me que contava uma longa historia. Pouco a pouco o medo foi tomando conta de mim, não conseguia pensar com clareza, mas temia o que poderia acontecer ao meu filho. Tentei levantar, mas tinha o corpo congelado, nesse momento senti que todo o meu corpo era uma imensa prisão, era como se eu estivesse trancada dentro de mim mesma. Com o coração estourando de tanto bater e sentindo um gelado que dominava meu ventre, fui aos poucos perdendo a consciência.

Acordei com dores no corpo, por sorte antes do meu marido chegar do serviço. Deitei-me na cama e fingi que dormia. Durante a tarde conversei com meu filho, perguntei-lhe mansamente sobre quem era sua vó e o que ela queria. Ele respondeu-me que ela era simplesmente sua vó, que gostava dele e vivia a pedir perdão, que também desejava muito jogar pedrinhas no rio como antes eles jogavam. Perguntei ao Michel se alguma vez ele tinha jogado pedras com ela no rio, respondeu-me que não, mas que como a vó era muito boazinha ele não dava atenção a essas coisas estranhas que ela dizia. Perguntei como ele sabia que ela chegava, ele me respondeu que o cheiro do cigarro anunciava a chegada, eu então questionei-o se poderia eu falar com ela. Ele disse que a vó me ouviria, mas que eu não ouviria ela.

Ponderei então que se eu deixasse meu filho jogar pedras com aquele espírito no rio ele estaria em paz e nos abandonaria. Comecei então a montar um plano, pedi alguns espelhos emprestados, quebrei e espalhei-os em locais estratégicos pela rua, inclusive de maneira a poder ver a velha pontezinha. Coloquei dois espelhos no corredor de casa e um na área.

Combinei com meu filho que esta noite, logo depois que papai fosse trabalhar, eu esperaria para falar com a vó, e que ele ficasse quietinho em seu quarto. Quando ficamos só nos dois em casa, abracei-o forte e pedi que ele fosse para seu quarto. Rezei para Nossa Senhora e de terço em punho esperei pelo cheiro. Algumas horas depois senti o cheiro forte do cigarro, abri a porta e falei que ela poderia entrar, que não fizesse mal ao meu filho, que levasse-o para jogar pedrinhas no rio, com a condição de nos deixar em paz. Me movi de forma a dar a entender que ela entrasse e que meu filho estava no quarto. Pouco depois vinha Michel pelo corredor segurando o ar, mas pelos espelhos eu via que na verdade ele segurava a mão da velha senhora. Arqueada ela o levava, calmamente. Michel me olhou e eu disse que ele podia ir, que estaria logo atrás dele. Saiu Michel pela rua, um vento gelado soprava e fomos indo lentamente pela rua em direção ao balão que no pequeno córrego. De espelho em espelho posicionado eu enxergava a velha senhora, ao mesmo tempo com que me assustava com a calma e confiança que Michel parecia demonstrar.

Pelo espelho que coloquei na ponte, vi como a velha sorria, um sorriso doce e terno, ao ver meu pequeno filho atirando pedrinhas no corregozinho. Um vento gelado soprou, esvoaçando meus cabelos, fechei os olhos para proteger-me da areia que espalhava-se junto ao vento. Quando abri os olhos, não havia mais ninguém ao meu redor. No espelho nada se refletia. Desesperada corri em direção a minha casa, entrei escancarando a porta no quarto de Michel, pulei em sua cama e senti seu corpo, gelado, rijo, inerte, morto.

O que me lembro depois foi que me vi no meio da rua berrando, alguns vizinhos chegando e então mais nada. ”

V

Após contar este relato, Lara chorou convulsivamente, Dr. Osório aplicou-lhe um sedativo e levaram-na para seu quarto.

Passei o resto do dia, sem prestar atenção em mais nada, dominada pela lembrança daquela historia contada com tanta emoção pela paciente. Dr. Osório, sensível como todo psiquiatra, reparou em meu estado e pediu-me para tirar um dia de descanso, dispensando-me das atividades do dia seguinte. Foi a pior coisa que ele podia ter feito.

Durante a noite não consegui dormir, pensando em tudo que Lara tinha passado. Pela manhã, tomei banho, me vesti e fui até o endereço de Lara. Observei a casa que foi dela, dirigi-me até o fim da rua, que realmente terminava em um balão que por sua vez dava em um sujo córrego, onde uma ponte velha de madeira já quebrada me arrepiou a coluna.

Bati de porta em porta perguntando sobre as famílias que moraram na casa de Lara e somente um já muito velho senhor de bengala e óculos grandes mencionou que outrora uma velha senhora morara naquela casa. Consegui descobrir dele que uma parente dela morava ainda na cidade e com poucas informações, encaminhei-me ate outro bairro, onde depois de várias perguntas cheguei até a casa de uma senhorinha. Inventei que era estudante de historia e queria catalogar as historias de bairros e casas suburbanas da cidade, que queria mostrar a historia que a historia não abarca, algo assim.

A senhorinha de muito bom grado, trouxe-me um velhíssimo álbum de fotos. Contou-me então que morara naquela casa Dona Angelina Silva, sua tia avó, mulher de historia triste, pois tendo uma única filha, certa vez brigou com esta e a filha então foi embora da cidade levando junto o filho. Dona Angelina arrependida e com saudades do neto em vão tentou reatar as pazes com sua filha, mas essa negou-se a vida inteira e perdoar-lhe. Conta-se então que a velha Angelina passou o resto da triste existência, sem sorrir um único dia, com os olhos opacos de tamanha saudade do neto e que suas últimas palavras foram para contar a vontade que tinha de uma última vez jogar pedrinhas no corregozinho como fazia com seu lindo netinho.

Sai da casa, sem rumo e sem chão, não sem antes verificar a única foto de Dona Angelina, uma senhora com traços indígenas, cabelos de um singular grisalho, sentada em uma cadeira com um cigarro na mão.

Depois disso, nunca mais voltei ao estágio, ou à faculdade.

Luís Figueiredo
Enviado por Luís Figueiredo em 03/01/2011
Reeditado em 15/11/2011
Código do texto: T2707226
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