Mistério Profissional

Há pessoas que parecem predestinadas a exercer certos tipos de profissões, independentemente das vantagens que se pode tirar delas, de estarem ou não em evidência no mercado trabalhista ou até mesmo da vocação; é difícil explicar. Sou dado a viagens constantes por força da profissão que escolhi, e faço-o por puro prazer; prazer que me traz dinheiro e um conhecimento diversificado em relação à cultura de outros povos. Sabia de antemão que ser escritor me levaria a isto e que precisaria ir tão longe quanto me levasse o sucesso das minhas obras e a projeção do meu nome. Felizmente, eles têm sido maiores e mais gratificantes do que eu alguma vez concebera. Se hoje colho os frutos devo ao meu trabalho, no qual ingressei consciente do que queria; tenha sido por dom, opção ou por sorte.

Mas, com alguns, diria, escolhidos pelo destino, que tive oportunidade de conhecer mundo afora, não é assim que acontece. Bert, um negro simpático com quem travei conhecimento durante a minha rápida passagem pela Guiana Inglesa, por ocasião do lançamento de um dos meus livros, é um desses exemplos inexplicáveis da compulsão profissional. Havia assistido à palestra que eu proferira uma manhã em Georgetown e, na tarde do mesmo dia, abordou-me no restaurante do hotel onde estávamos hospedados. Viera de outra cidade exclusivamente para me conhecer, o que me deixara deveras lisonjeado.

Eu acabara de almoçar e me distraía com um jornal na saleta contígua ao restaurante. Percebi que me olhava com certo interesse e admiração enquanto almoçávamos não muito distante um do outro. Tinha sobre sua mesa um livro e não custei a concluir que me esperava terminar a refeição para falar comigo; por certo pedir-me uma dedicatória ou um autógrafo. Recebi-o com um sorriso e um aperto de mão.

- Acabei de comprar e já comecei a leitura; promete ser fascinante - disse enquanto se sentava ao meu lado no sofá. O livro era “O Tesouro de las Mercedes, recém-lançado e já com uma vendagem surpreendente. Agradeci, dei-lhe o autógrafo e começamos a conversar.

- O que faz? - perguntei

- Estou aposentado. Já fiz a minha parte para o país e agora tenho tempo de sobra para me dedicar a coisas exóticas; como ler, por exemplo, - falou, levantando lentamente o livro do colo.

Achei surpreendente a expressão que usara referindo-se à atividade de ler. Na verdade, tudo nele parecia diferente do usual: a forma de falar, de sentar-se e até as roupas que vestia.

- O que fazia, então?

- Quando parei vendia apólices de seguro. Trabalhei durante anos nesta área. Alias, durante toda minha vida profissional estive ligado a esse ramo de negócios, trabalhando em várias profissões.

- Que outras profissões pode haver ligadas ao ramo de seguros? - perguntei curioso.

- Quando falo de seguros refiro-me a seguro de vida ou pecúlios.

- Sente atração por isto?

- Sim; ou melhor, não. É uma atração diferente.

- Como assim? - comecei a achá-lo um tanto neurótico.

- Como explicar? A coisa não me atrai, mas sou atraído por ela.

- A que está se referindo?

- À morte - disse, com grande naturalidade. Comecei a me sentir um tanto desconfortável. Procurei mudar de assunto falando do livro, mas ele percebeu e quis se explicar.

- Quando falo “morte” refiro-me a profissões ligadas à morte, como, coveiro, por exemplo.

- Já foi coveiro?

- Sim; durante algum tempo. Breve, por sinal, porque não dava para a coisa. Passei por situações constrangedoras e ao mesmo tempo hilariantes. Quer ouvir?

Olhei o relógio. Como o voo seria à noite e a tarde mal iniciara, achei que poderia tirar dali uma boa história para os meus leitores. Fechei meu jornal e passei a dar-lhe atenção.

- Não adianta fugir de trabalhos deste tipo; parece que me perseguem. Depois de deixar currículos em diversas agências e esperar por semanas, nada acontecia. Até que fui chamado por uma delas. Encontrei-me frente a frente com a entrevistadora.

“-Infelizmente, não há, no momento, vaga para nenhuma das funções que o senhor menciona aqui no currículo.

“- Então para que me chamaram? - perguntei, aborrecido, já que gastara, sem poder, dinheiro para locomover-me até eles.

“- Temos disponibilidade para uma função que muitos não querem exercer.

“- E qual é a vaga?

“- É para trabalhar como coveiro em um cemitério - já ia perguntar se existe outro lugar para se trabalhar como coveiro além de num cemitério, mas desisti; não estava em alta o meu bom humor.

“ Não tive alternativa senão aceitar o emprego. Não possuía qualquer experiência em lidar com os mortos e nunca encontrara alguém para me ensinar de boa vontade; para falar a verdade, nunca pensei nisto. Mas, ali estava a ocasião. Passei por um período de treinamento, assistia aos enterros, às exumações; tentava aprender com os mais experientes. Mas não conseguia me sentir à vontade na profissão e, por incrível que pareça, tinha horror a cemitérios. Já soube de algum salva vidas que não sabe nadar ou de um médico que não consegue ver sangue? Não existe, não é mesmo? Porém, se um dia perguntarem ao senhor se conheceu um coveiro que não pode olhar um cadáver sem se arrepiar dos pés à cabeça e, por nada nesse mundo, ver o dia anoitecer dentro de um cemitério, pode citar o meu nome como exemplo.

“Sempre trabalhava em grupos de dois ou três. Estava, portanto, protegido e livre de cometer erros. Mas, receava algum dia ter que fazer o trabalho sozinho. E, para meu azar, este dia acabou chegando. Um dos coveiros faltou ao serviço por motivos de saúde e o outro precisou fazer um serviço de emergência em outro cemitério. Como só haveria dois sepultamentos achou, a administração, que não teria problema eu assumir sozinho os serviços funerários do dia. Como estavam enganados!

“Estava tão nervoso que não via a hora de terminar logo com aquilo. Acabei fechando o ataúde minutos antes da hora, antes mesmo de procederem às orações de praxe, o que todos acharam muito estranho. Não tinha absoluta certeza da localização da campa e fiz diferentes percursos, com todos atrás de mim, debaixo de um sol escaldante. Já estavam indignados. Os que carregavam o caixão transpiravam profusamente e já não aguentavam de cansaço.

“Finalmente encontrei o jazigo, já debaixo de olhares furiosos e xingamentos silenciosos em respeito ao morto. Consegui a ajuda de dois parrudos; eles me auxiliaram com as correntes. Entretanto, pediram que antes fosse aberta a urna. Queriam levar ao defunto as últimas despedidas. Mais um acesso de tremedeira com a visão de um cadáver; logo eu, um coveiro. Então, aconteceu o que causou a minha demissão do emprego e um processo contra a administração do cemitério. Não devo ter fechado a urna devidamente e, ao erguê-la pela corrente, a tampa se soltou. Teria ficado apenas nisso se não tivesse havido a queda. Estávamos em plano ligeiramente inclinado e ao bater, o caixão, na beirada do túmulo, aquele emborcou para o lado de fora. O resultado não poderia ter sido outro. O cadáver desceu, rolando, sobre um pedaço do terreno, parando ao bater contra o cimento de outro túmulo mais abaixo.

“A comoção foi geral: correria para um lado e gritaria para outro. As crianças choravam e as mulheres soltavam gritos histéricos. Os homens partiram para cima de mim e teriam me agredido se eu não tivesse corrido em busca de ajuda. Confesso que senti satisfação maior ao assinar minha demissão do que no dia em que aceitei o emprego.

Durante os lances da narração de Bert eu não sabia se ria com as peripécias que provocou ou se me apiedava de sua condição de vítima do destino, como ele próprio se achava. E acho que tinha razão, segundo me contou ao concluir sua história.

- Acabou ficando sem emprego novamente - falei.

- Até que não; aceitei uma proposta logo em seguida.

- Ah! Sim; e qual era o trabalho?

- Um produto cujas necessidades abrangem todos os seres humanos, pois da morte ninguém escapa.

- Morte, novamente! O que era dessa vez?

- Agenciador de jazigos perpétuos. Um cantinho no cemitério. Nem pensei duas vezes quando me foi oferecido. Não ia conseguir outra coisa mesmo!

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 29/12/2010
Reeditado em 07/05/2011
Código do texto: T2697527