O Último Natal

Muitos foram os dias em que ele sobrevoou nas asas da morte um extase surreal, representado por pedrinhas amarelas, um isqueiro e um pequeno tubo com um recipiente onde ele aspirava a liberdade, segundo a versão tortuosa de sua mente dominada pelo crack.
Hoje era dia de natal, quando ele acordou de manhã, até pensou nisso, mas vasculhou o bolso em busca de mais uma pedra, só uma... Qualquer pedacinho que lhe trouxesse novamente ânimo para viver o irreal, porque depois de cada viagem vem a depressão e um amargo indescritível na boca lhe joga no rosto a dureza da realidade.
Fumou, delirou, adormeceu em meio ao lixo de um velho casarão abandonado...
As lindas horas do dia passaram diante de um adormecido verme consumido pelo vício, e arrastou-se perfumado, festivo até a linda tarde, a tarde que antecedeu a noite de natal.
O crepúsculo e um friozinho acordou aquela caricatura de homem sonolento ainda, e o incrível amargo na boca que envolvia a alma, com a noite parecia mais solitário.
 Aqueles trapos de vida testemunhariam o brilho dos fogos logo no limiar da noite do reis magos, das luzes de natal, de Cristo Jesus.
Esfregou os olhos, a carne ansiava evasiva e louca um pouco de fumaça para refazer-se e penetrar no íntimo da noite como um príncipe a viajar em seus delírios, e na imortalidade que só estas viagens proporcionam.
Então... Viu na bruma da sua cegueira uma mão recheada de podridão lhe estender algo que o faro de verme lhe dizia ser o lenimento, a cura de sua dor...
Abraçou como um moribundo a vida, a droga em fumaça, levou a doente boca e sorveu a cura, depois sorriu enquanto passeava em seu corpo a lenta morte...
Levantou, olhou o céu estrelado e sorriu novamente, e lhe foi ofertado nova baforada, sorveu, agradeceu, e devagar iniciou a caminhada em direção ao natal...
Depois do casarão antigo, a praça, depois da praça o nada, o êxtase do crack, uma luz esfuziante, e a viagem, a grande viagem...
Ele caminhara dali mais algum metro abraçara uma árvore, entrelaçou alguns fios das luzes natalinas nos braços, no pescoço, girou o corpo e inconsciente adicionou mais alguns metros de fio em volta do corpo... E então, foram acesas as luzes de natal...
Menos naquela árvore, menos naquela alma carbonizada exteriormente pela eletricidade, e interiormente morto a muito tempo pelo crack. O termo de um resto de vida na noite de natal.

Malgaxe
Malgaxe
Enviado por Malgaxe em 21/12/2010
Reeditado em 21/12/2010
Código do texto: T2685055
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