O Míope

Pablo acordou em uma cama que não era a sua. Abriu os olhos vagarosamente, a cabeça latejava um pouco. Virou-se lentamente para a direita, viu uma enorme marca vermelha na cama. “A noite foi boa, ainda foi regada pelo vinho.”, pensou.

Sentou-se na cama, espreguiçou-se. Olhando para suas roupas pode reconhecer seu pijama exclusivo, só o usava quando ia dormir na casa da amiga Mayara. Procurou no criado mudo seus óculos, mas não encontrou, Pablo sofria de miopia em alto grau. Era “semi-cego”, como costumava dizer, não enxergava dois palmos na frente do nariz sem os óculos. Uma de suas maiores decepções na vida era ter sido reprovado na prova da Marinha de Guerra, justamente, no exame de vista. Lembrou-se que a amiga costumava esconder seus óculos, por brincadeira, só de pirraça.

Levantou-se e deu mais uma espreguiçada, a estaladeira de ossos percorreu sua coluna. Como gostava daquela sensação de se espreguiçar. Ficou um minuto ou dois com a mente vazia, que os olhos saíram de foco. Ficou pensando. “Onde foi que a Mayara escondeu meu fundo de garrafa?”

Saiu tateando nas paredes, passou pelo pequeno corredor da casa da amiga com certa velocidade, olhou para a sala e viu uma pessoa deitada no chão, era Edmundo, primo da amiga, Pablo, novamente, pensou. “A noite foi muito boa. O Edmundo deve ter tomado todas. Dormiu no chão da sala.” Ele saiu tateando a parede e em tom zombeteiro começou a chamar pela amiga:

- Mayara, cadê os meus óculos? Onde foi que você escondeu meus fundos de garrafa?

Ele escutou um barulho vindo da cozinha, deveria ser a menina. Saiu andando para a cozinha, sempre com a mão na parede, pois não confiava na sua vista e muito menos no seu equilíbrio.

Chegou à cozinha, a porta da geladeira estava aberta, parecia haver alguém dentro da geladeira, pegando alguma coisa. Pablo sempre bem humorado:

- Que é isso? Vai virar esquimó agora? – perguntou enquanto sorria.

A pessoa levantou-se, revelando sua cabeleira loira. Pablo reconheceu os cabelos loiros da amiga, ele vivia dizendo que ela era uma metamorfose ambulante, aliás, quem não tem uma amiga metamorfose ambulante? Que de tempos em tempos muda pelo menos a cor do cabelo, o jeito de se vestir, etc.

A menina fechou a geladeira e encarou o rapaz por algum tempo. Pablo cerrando os olhos para tentar enxergar melhor disse:

- Que é que você tem?

Mayara não respondeu, saltou de onde estava no susto Pablo protegeu-se com o braço e levou uma senhora mordida da menina, arrancando-lhe um pedaço de carne e pele.

- Ai sua rapariga! Está ficando louca?

A menina não respondeu apenas grunhia coisas indecifráveis. Ela partiu para cima do rapaz novamente, ele ainda conseguiu dar um empurrão na amiga.

- Que diabos que você tem?

A menina tentou atacar. Paulo saiu correndo para o quarto onde tinha acordado. Fechou a porta atrás de si. Notou que a porta estava sem a chave, tentou procurar na gaveta do criado mudo. Não encontrou a chave, mas encontrou seus óculos, estava vizinho a ele o tempo todo. Coloco o “fundo de garrafa” no rosto e tentou procurar a chave. Mayara enlouquecida já gemia no corredor.

Ao olhar para cima da cama, ele reparou na marca de vermelha, se aproximou um pouco mais para ver melhor, pois agora estava com a visão “perfeita”. Não era vinho, como ele pensara antes, na verdade era sangue.

Mayara invadiu o quarto gritando, de sua boca pingava sangue, suas roupas estavam todas ensangüentadas, os lindos cabelos estavam assanhados, mas o que chamou a atenção de Pablo foi o olhar vazio da menina. Mayara bufou um pouco antes de avançar para cima do rapaz.

Uma dentada, duas. Pablo não tinha forças para se defender. Definhava. Ia morrer. “Que diabo era aquilo?”, pensou. No momento em que eles caíram na cama, Mayara grudada nos lábios dele, arrancando-lhe a parte inferior, a televisão ligou.

Algum tipo de plantão de noticias estava no ar, e em letras garrafais, Pablo pode ler, pouco antes de morrer:

OS MORTOS ANDAM.

João Murillo
Enviado por João Murillo em 15/12/2010
Código do texto: T2672356
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