CONFISSÕES DE UM PESCADOR

Tarde, compadre! Por favor, encha uma caneca com o néctar do seu velho alambique. Sabe, compadre, tenho andado muito por esse imenso mundo de Deus, mas em nenhum lugar pude encontrar uma bebida como a que o senhor cultiva nesses toneis.

A adega está vazia, tome assento aqui ao lado de um velho amigo. Beba comigo, compadre. Pode ser que não tenhamos uma outra oportunidade. Sabe que tenho sentido as dores do tempo como nunca senti antes. Acho que não tenho muito tempo. Essa carcaça já suportou tanta coisa, mas nada comparado ao fardo que enverga a minha mente desde os tempos de menino.

O senhor bem sabe que o vento que sopra nessas paragens gela os ossos como em nenhum outro canto, assim como o sol que arde sobre nossas cabeças age como as próprias labaredas do inferno quando quer. É, compadre, a poeira da nossa terra é diferente e, insisto em dizer, não há lugar como nosso lar.

Ahhh! A cachaça queima a goela! Mas é bom para lembrar que estamos vivos. O senhor me acompanha no cachimbo, compadre? Esse fumo do quadrante sul é o melhor que há! Nunca encontrei nada que se comparasse a ele, especialmente o da Estância do Brejo! Aprecio o mesmo, desde menino!

Quando a gente começa a ficar velho, e passa a enxergar as últimas curvas da linha do próprio tempo se aproximando, sente a inegável necessidade de compartilhar certas experiências. Eu poderia dividir a minha história com algum familiar, quem sabe com um filho, mas o senhor sabe que não tenho ninguém nesse mundo. Então, se o compadre puder me ouvir...

Naquela época, eu era um molecote, como se diz por aí. Tinha escolhido e preparado uma amostra do bambuzal da estrada ainda na primavera. A vara funcionaria muito bem para o que dela se esperava, ela envergava firme e chicoteava no ar. Eu havia passado a tarde colhendo minhocuçus na terra preta e fértil que margeia a plantação das hortaliças do Ranchão. Consegui encher um pote muito bem servido.

Eu esperava aquela noite com ansiedade, era a primeira da Crescente. A cheia do velho riacho deixava a lagoa com a profundidade ideal. Esse fato, somado à temperatura favorável do verão, fazia com que os tucunarés e os surubins salpicassem no espelho d’água.

Porém, o melhor pesqueiro ficava nas dependências da Fazenda Silveira. O compadre lembra bem como era o velho Tião, não lembra? Pois então, não era qualquer um que ousava bulir nas terras dele. Mas até que era bom. Eu sempre achei que pescaria não combina muito bem com confusão. Pescaria é coisa séria, e se eu fosse me arriscar na Silveira, que eu fosse só. Era melhor assim.

A noite estava fabulosa. Um manto azul escuro adornado por salpicos cintilantes esparramava-se sobre a minha cabeça, tendo um quarto radiante em amarelo vivo como peça principal. Rex me fazia companhia. Era um vira-lata, deveria ser mestiço de pastor-alemão com alguma outra coisa, pois apesar da falta de pedigree, ele apresentava o bom porte e a fidelidade inerente à raça famosa.

Obviamente, não era possível simplesmente atravessar a Fazenda. Logo, para se chegar à margem desejada, era preciso fazer um longo contorno até o outro lado da imensa propriedade. Pois, na parte oposta, havia uma falha no cercado de arame farpado. Não era grande coisa, mas a abertura se mostrava mais do que suficiente para que Rex e eu pudéssemos passar.

Sabe, compadre, é incrível como os cães se tornam cúmplices dos seus donos, não é mesmo? O vira-lata se comportava como gente. Mesmo com a fazenda cercada pelos cães de guarda do velho Tião, o bicho se mantinha quieto e comportado.

Quando lancei a linha, a face da lagoa nem se mexeu. Lembro como estava abafado, não soprava uma mísera brisa, a folhagem por todo lado estava absolutamente imóvel. A reentrância da lagoa era mais profunda naquela parte, os peixes se aglomeravam no emaranhado de saliências rochosas que por lá se estendiam.

O primeiro par de horas se mostrou pleno de normalidade. Os graúdos ocupavam para mais da metade do cesto de palha. Com um bom fumo da velha Estância queimando num canto da boca, eu achava que estava no paraíso.

Foi quando o primeiro sinal de estranheza surgiu. Uma nuvem errante nublou o céu eliminando o reflexo amarelado do espelho da lagoa. Uma folha do pessegueiro caiu suavemente derrubada por uma lufada inesperada. O cachorro, que até então não fazia outra coisa que não fosse cochilar, levantou uma das orelhas e passou a farejar o ar.

Imediatamente joguei terra na fogueira, pois meu temor era de que alguém da fazenda tivesse me descoberto. Recolhi a linha e fiquei o mais quieto que pude, mas, justamente naquele momento, o vira-lata resolveu expor toda a desobediência que jamais demonstrara.

Como um raio, ele partiu por entre o mato que ladeava a borda da lagoa e ganhou o campo aberto, já na parte exposta da Silveira, para meu completo desespero. Larguei vara, cesto, cigarro e corri atrás dele. Todos conheciam o Rex nas redondezas, se o vissem, saberiam que eu estava xeretando naquela área, afinal, o bicho não me largava. No fundo eu temia que fizessem mal ao cachorro só para me punir.

Curiosamente, não vi nem sinal dos cães de guarda da fazenda. Rex cruzou o quintal com impressionante velocidade, sem que surgissem vestígios de vigilância de qualquer tipo. Mesmo com a aparente tranqüilidade, eu não poderia abrir mão da prudência. Assim, tentei chamar por ele a certa distância, mas todas as tentativas culminaram em frustração.

Cautelosamente, tentei seguir seus rastros, os quais me levaram até o criadouro local. Lá chegando, fui invadido por um odor nauseante. Os poucos animais que vi pareciam se lamentar numa manifestação angustiante. Uma fagulha de luz seria bem-vinda, pois a escuridão causava uma dor aqui dentro, no peito. Não sei se o compadre acompanha o que quero dizer, quando se sente que o vazio parece ferir...

Chamei baixinho pelo cão...eu não queria estar ali. Eu sentia medo por parte do desconhecido, compadre. Mas eu não poderia simplesmente ir embora sem o Rex.

Foi quando ouvi um ganido. “Rex! Rex! Cadê você, rapaz?” Eu falei...mas tudo o que obtive como resposta foi um grito. Num primeiro instante o som assemelhava-se a um urro bestial, mas eu prefiro chamar de grito pois havia um teor humano naquele som, algo que nunca mais esqueci.

O susto fez com que eu caísse no chão. Mil penas foram projetadas no ar. “Rex!” Eu gritei. Mas não poderia mais esperar por ele, então, me levantei como pude e corri. O cheiro de sangue se impregnava em minhas narinas, a jovialidade me favoreceu naquela noite, não há dúvidas quanto a isso.

Olhei para trás e vi uma sombra ganhar corpo sob a luz do Quarto Crescente que, naquele momento, se mostrava livre de nuvens no céu. A coisa havia saltado do aviário, ela agarrava uma galinha em cada uma das mãos. Digo mãos, pois aquilo se postava em pé como um homem, embora não houvesse muitos traços humanos no que vi.

A bem da verdade, era difícil definir com exatidão aqueles contornos. Tudo não passava de um borrão longilíneo e extremamente esguio, cujo destaque ficava por conta do brilho esverdeado, tão semelhante ao olhar de um gato nas trevas.

A criatura olhou em minha direção, inspirou profundamente o ar noturno, e gritou novamente, com toda a força dos seus pulmões. Compadre, eu nunca havia sentido tanto medo em minha vida e, posso jurar, que nunca mais voltei a experimentar algo parecido com aquele sentimento. Naquela hora, eu entendi que seja lá o que fosse aquilo, ele não me deixaria sair livre dali.

Quando ele caiu sobre os quatro membros, rasgando a noite como um cão selvagem, tudo que pude fazer foi rezar para que eu conseguisse alcançar um lugar seguro. Por mais que eu clamasse por ajuda, parecia que a única viva alma naquele lugar era eu mesmo.

Meu pensamento me levava a correr para um local específico: o buraco na cerca. Ainda que ele conseguisse vencer o obstáculo, acreditei que o empecilho pudesse me fornecer um pouco mais de tempo.

Deslizei pela abertura e ganhei a margem da lagoa, o brilho esverdeado crescia em minha direção. Vi a criatura se atrelar no emaranhado metálico, e percebi que o cercado não o deteria por muito tempo. Não havia como escapar, a Fazenda Silveira era distante da cidade, eu nunca chegaria à estrada a tempo.

Sem ter muito o que fazer, decidi escalar uma mangueira que crescia bem rente ao lago. Os galhos mais distantes se alongavam sobre o espelho d’água.

Esgueirei-me rapidamente pelo tronco espesso. Ao olhar para baixo, vi os braços furiosos da criatura tentando alcançar minhas pernas. Ela rosnava como um animal faminto. Não tardou para que ela se agarrasse à madeira e seguisse em meu encalço. Fiz valer a condição franzina do meu corpo para alcançar os galhos mais frágeis e extremos, a fera tentava fazer o mesmo.

Senti a indescritível dor causada pelos ganchos retorcidos de sua mão quando esta alcançou minha panturrilha direita. Gritei e desejei que a morte me abraçasse para que eu não sentisse o que estava por vir. Foi quando percebi que algo acontecia e, mesmo com o desespero me chicoteando, arrisquei uma nova olhada e vi algo inacreditável: Rex, meu velho companheiro vira-lata, se agarrava numa das pernas da criatura.

Aproveitei-me do seu momento de indecisão e puxei a lâmina que pendia em minha cintura. Bati a parte afiada do aço com tanta força que cheguei a ferir minha própria perna, mas funcionou. O besta gritou, largando-me em seguida.

Os movimentos descompassados fizeram com que eu caísse na água. Mesmo sem conseguir mexer a perna ferida, consegui nadar para o centro da lagoa. Compadre, Rex foi valente naquela noite. Ele lutou como pôde contra algo que não poderia vencer. O embate terminou com o mestiço de pastor sendo erguido no ar. Seu ventre fora rasgado pela boca da fera, a qual, permanecera por um bom tempo sorvendo o conteúdo da barriga exposta do animal.

Ferido do jeito que eu estava, seria impossível alcançar a outra margem sem ser interceptado pela besta se ela resolvesse se aventurar pela água. Porém, como uma dádiva dos céus, a criatura nada tentou. Limitou-se a espreitar na borda da lagoa.

Tentei a todo custo não afundar. Eu rezava e pedia com todo o fervor para que o dia chegasse, porque, como sabemos, compadre, as coisas ruins costumam partir perante a presença da luz do astro-rei. Assim, como eu suspeitava, a criatura se foi. E, com a proteção do sol, nadei de volta à terra firme.

A claridade me mostrou todo o horror que jamais pude esquecer. Havia muito sangue e cheiro de morte em toda a parte. Recolhi a carcaça do meu amigo e voltei para casa. Mas o pior eu só soube depois, o senhor também deve desconfiar, não é mesmo, compadre? Sim, aquela foi a noite em que toda a família Silveira fora brutalmente assassinada. Não pouparam nem os bichos da fazenda...

Eu nunca falei nada do que vi para ninguém, nem mesmo para os meus pais. Só agora, com a proximidade da morte, me arrisco a desabafar sobre isso. Culparam um ex-funcionário, ou algo parecido, pelo ocorrido. Mas a verdade, compadre, acho que só eu sei. Só eu vi. Aquilo não era gente não senhor. Não mesmo.

Sabe, meu amigo, que só quando cheguei em casa, enterrei o cachorro e fui me isolar num canto, que percebi algo em mim? Havia algo preso em minha perna, tenho comigo até hoje, veja: essa garra negra e curva, com coisa de quinze centímetros. O ferimento em minha perna causou uma infecção tão séria que os médicos foram obrigados a amputá-la.

Para todos, inclusive para os meus pais, a ferida fora causada por obra de vergalhões enferrujados. Naquela época as infecções costumavam conduzir à morte...Por sorte, não foi para tanto. Só perdi a perna, se é que se pode chamar isso de alento.

Encha mais uma caneca, compadre. O ardor nos deixa vivo! É o que sempre digo. Sabe, velho amigo, depois da morte dos meus pais, na ocasião em que fui embora, pois quase nada me prendia aqui, pude aprender muito. Na cidade grande a possibilidade de informação é vasta. Mas disso o senhor deve saber, pois também passou bastante tempo por lá.

Eu pesquisei muito, compadre. Tentei de toda forma entender aquela anomalia da natureza. E sabe a que conclusão cheguei? Que não se pode bulir com a ordem natural das coisas. O sagrado é sagrado e ponto final.

Pelo que eu me lembro, compadre. Sua mãe, que Deus a tenha, não era freira quando seu finado pai a desposou? Ela ainda não havia largado o hábito quando morrera no parto, não é verdade? Não, não precisa responder, pois eu sei que sim.

Também não é verdade que seu pai fora um dos poucos funcionários da Silveira que sobreviveram ao massacre e que logo depois ele tratou de mandá-lo para a capital? Não é fato que, enquanto você não estava aqui nada de anormal aconteceu? Que o seu filho, o qual eu mesmo batizei nas águas sagradas, não vingou porque a besta é incapaz de procriar? Por acaso é mentira que desde que você voltou para essa maldita terra um ou outro andarilho desaparece sem deixar vestígios? Ou que os estábulos, criadouros e aviários da cidade são saqueados noite após noite entre a Crescente e a Cheia?

Pois é, compadre. Não há ninguém aqui. Só nós dois. Não há como negar. Você não se lembra do episódio, pois não há memória na cabeça da fera, mas você mastigou a carne do meu cão. Você me mutilou. E, pode acreditar, nem essa cadeira de rodas vai me impedir de enfiar uma bala no meio da sua testa. Sabe, compadre, não é preciso uma bala de prata para matá-lo nessa sua condição humana. Mas eu fiz questão de derreter todo o metal que eu tinha para confeccionar uma especialmente para você.

Sabe do que eu sinto falta? De andar, compadre, correr livre pelas ruas. Então, tive uma idéia: meus estudos revelaram que eu posso me tornar uma besta como você, para isso, basta consumir o seu coração depois de matá-lo. Você sabia que os membros mutilados crescem enquanto o amaldiçoado está na condição ferina?

Pelo menos por algumas horas, eu terei o prazer de caminhar novamente, nem que para isso eu tenha de ceifar muitas vidas. Eu não tenho muito tempo. Eu mereço isso. Mereço!

O que você está dizendo, compadre? Não tente me confundir! Não tente! Como assim não é você a fera? Eu sei que é você! Eu sei! Irmão? Que irmão? Gêmeo? Você tem um irmão gêmeo? Ele foi mantido escondido primeiro por seu pai e depois por você durante todo esse tempo? Não acredito! Não acredito nisso! Mostre-me suas mãos! Agora! Nenhum dedo faltando...mas, como? Você o mantém preso e o alimenta com indigentes e animais? Você não trancou a porta? Não trancou a porta? Nãããããããããããoooooo!!!!!!!!!!!!!!!!

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 14/12/2010
Reeditado em 14/12/2010
Código do texto: T2671498
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