Aparição de Porco

Primeiro gostaria de comunicar aos leitores que estou revisando meus textos mais antigos, devido aos erros e ao pouco apelo argumentativo dos contos de terror. Se quiserem podem ver a diferença acessando a supracitada conta. Espero que gostem. Estou dando meu sangue, num esguicho profuso, para melhorar sempre.

Aos leitores.

O corredor era branco. Branco como seu desespero. Branco e oco. Oco como seu útero. Oco como a sua vida. Seus sonhos eram brancos, agora. De um branco sem paz. O corredor recendia a doença. O hospital não a curou. O branco do hospital só era sinônimo de morte e rejeição. Destruição... E o vermelho, sanguíneo, fruto da menstruação, era estéril. Era aborto. Uma profusa poça de sangue pingando no branco do hospital. Minguando os seus sonhos de cor azul, rosa, amarelo-bebê...

Era isso. Não podia mais ter filhos. A última esperança, os gêmeos, pingaram, vazaram em meio à dor, num esguicho violento, numa tortura pior que o parto, foram privada abaixo, ralo abaixo, mancharam o branco do piso do banheiro e da sala séptica do hospital. A vida se fora tão rápido do seu ventre que ela não os pode salvar do esgoto. Não se podia fazer mais nada. Seu útero não “seguraria” um óvulo sequer. Nunca mais.

Karen Atrom saiu desesperada. Saiu como que expulsa do hospital como expulsara seus filhos. Sua vida fora rompida. Escorreu pelas pernas. Imprecava os deuses. Imprecava a ciência. Imprecava o mundo, enfim. Daí nasceu um desejo forte. Um amor odioso. Um anelo ferrenho, materno, como que da fêmea que a todo custo protege a cria. A cria que ela não tinha. Por isso, das mais profundas paredes do útero desejou um filho.

Desejou que o filho que vira na rua, sorrindo à sua mãe, fosse seu. Invejou. Amaldiçoou o céu. Amaldiçoou aquela mãe risonha para sua cria. E seu desejo se tornou maior. E pensou “eu faria tudo, tudo para ter um filho, eu até...” Vendo isso, e pressentindo o desespero no interior da protagonista uma velha verruguenta e de má aparência, feiticeira famigerada, lhe chegou perto e disse:

- Cuidado com os seus pensamentos, minha filha, os deuses podem ouvir. E os demônios podem atender – e soltou um som gutural que parecia um estertor, o grunhir de um poço imundo, mas Karen julgava que a velha ria. E tal riso ao mesmo tempo lhe apavorou e hipnotizou.

Como Karen não se prestou a dizer palavra à bruxa lhe entregou um papel roto, sujo, nas bordas, com salpico de sangue e disse:

- Eu posso realizar vossos desejos minha filha. O preço é caro – e novamente emanou um grunhido acompanhado de um cheiro nauseabundo. – Nada que você não possa pagar. Vá até a minha casa. Estarei à sua espera.

Karen tremeu, pois seu corpo parecia envolto por uma crosta de gelo. Olhou diretamente ao sol para se aquecer. Quando baixou seus olhos a bruxa já não estava mais ali.

Sentiu-se liberta da bruxa má. Mas no fundo sentiu o desejo de realizar o seu desejo. Cada vez mais o desejo de desejar se tornava maior. Ia ganhando força. Ia querendo explodir e ser real. Tal como tantos abortos que cometera sem os querer.

Mas queria. De toda maneira. Para ser capaz de gerar. De dar à luz. E em meio a essas aspirações fúnebres dormiu. Sonhou que era um feto. Um aborto no chão em meio a filhotes de porco. Sonhou que a poça fetal estava em infernos hediondos sendo devorada por demônios eternamente ao som da risada malévola e suína da feiticeira. Acordou!

E a voz da velha mulher reverberava em seus ouvidos, bem próxima, mas bem baixinho. Ia hipnotizando com tambores africanos ao fundo da voz metálica. Levantou da cama. Suja de sangue. Estava decidida. Pegou o papel emporcalhado. Seguiu para o endereço toscamente anotado em letras misteriosas e antigas por entre becos escuros e taperas sombrias. Logo chegou. O medo crescendo em estágios inimagináveis.

Bateu na porta. Foi preciso bater sete vezes. Neste ínterim ela ouviu uma imensidade de sons desagradáveis e macabros: podia imaginar o porco sendo degolado, pois o barulho que fez era ensurdecedor, medonho, malévolo. O sangue cercou seus pés por atravessando por debaixo da porta no momento da sétima batida. A velha atendeu. Limpando as mãos em um pano pardo, imundo.

Desviou os olhos para dentro do recinto. O odor que veio a tonteou. Moscas pousavam nas paredes da sala, pintada com sangue, imaginou, coagulado, agora. Tremeu espasmodicamente num frêmito agudo e intenso. Como se tivesse sido mordida por um daqueles demônios sem tempo dos sonhos perturbadores. Ficou assim por alguns segundos. Até a bruxa a puxar, com força para dentro. Os saltos do sapato de Karen quebraram devido aos tremores de pavor.

Foi carregada até uma antessala, conduzida por uma mão hábil em degolar e matar, sempre suja de sangue, sempre sedenta por morte e desgraça. Atrom observou que na sala menor havia vudus, ossos, inclusive crânios humanos, animais mortos, tal como o porco que ouvira a pouco e cujo sangue ainda escorria pela garganta em foice e um banco de três pernas, o qual a bruxa fez Karen se sentar.

Apesar do pânico a volição era tremenda.

A velha perguntou, com uma astucia rubra nos olhos:

- Que queres minha filha?

- Eu... Eu?!!! – e sussurrou – Eu quero um filho gerado dentro de mim – respondeu Karen. Depois caiu num choro histérico.

- Estais disposta a pagar qualquer preço, minha querida – sorriu sorumbática a velha e completou – Digo, um preço espiritual?

A moça apenas meneou a cabeça positivamente. Cruza as pernas para conter o sangue e espantar as varejeiras. A bruxa sai para um dos quartos que guarnecem a casa macambúzia.

Pouco tempo depois aparece com uma bandeja coberta por um pano negro. Retira-se novamente e aparece com outro banco de três pernas onde deposita a bandeja em frente a jovem mulher. Karen sente náuseas com o cheiro proveniente do conteúdo cerrado e mais ainda em imaginar que pernicioso produto podia se esconder embaixo do tal veludo obscuro.

A feiticeira guincha na sua habitual gargalhada ou tosse. Karen lhe fita nos olhos. Como criança que se recusa a tomar o remédio ruim. A bruxa:

- O preço é caro, minha querida! – Seus olhos se inflamam de maldade. Ela tira o pano e põe à mostra o conteúdo iníquo: uma faca fina e pequena como se fosse uma mini cimitarra com signos geométricos com cabo de presas de javali, uma taça de cobre com um líquido leitoso pela metade e um feto de porco em decomposição.

- Como você não pode mais conceber pelas fendas de baixo, certamente o será pela fresta de cima. – assim disse a bruxa. Karen teve um espasmo que lhe causou um solavanco e lhe fez cair do banco. A velha ajudou-a a repor no banquinho de três pernas. Saiu mais uma vez. Voltou já vestida com uma máscara repulsiva e carrancuda e um tambor cujo ruído era enlouquecedor.

- Primeiro coma o feto – disse com rispidez. E dança ao som do instrumento que toca.

Karen vomita sobre o colo.

- Coma! – e grunhiu prazerosamente.

A moça fecha os olhos. Tapa o nariz. E engole o feto suíno. Sente alguns vermes se retorcendo em sua língua. O estomago entrara num estágio diferente ao som do tambor. Por mais que quisesse que o órgão devolvesse, não conseguia por causa daquele maldito som.

- Agora beba!

- Que é isso! – ela pergunta à bruxa e chora.

- É o sêmen deste porco que jaz diante de vossos olhos e que agora pouco salpicou vossos pés de sangue. HêorcHêorcHêorc.

A jovem deixa cair um pouco do liquido no chão devido aos tremores. Mas bebe. Cada gota.

O estomago se contrai e relaxa bruscamente. Tal como uma máquina de lavar. Mas faltava ainda a faca. Que destino...?

- Com esta faca, minha filha, tereis de cortar vosso órgão seco e ingerir vosso fluido. Agora, penetrai! E bebei! Bebei! – grunhia cada vez mais como uma porca.

Ai!

Ela corta. Bebe. E no mesmo instante sai dali. As suas costas maldições são jogadas. Pragas são rogadas. Demônios são evocados dos infernos. Mas estava feito. Era o que importava. Preferia as paredes sujas e andrajosas de sangue aos corredores alvos dos hospitais que lhe negavam a gravidez.

NOVE MESES DEPOIS:

Não houve como escapar dos hospitais que tanto detestara. Estava ali para dar à luz. Seu desejo fora realizado. Mas o preço não fora pago. Seu espírito ainda vivia... Nunca tanto sofrimento se abateu sobre uma mulher. Dizem que o maior sofrimento de uma é o parto. O dela foi o pior, pois não lhe foi concedida, pelos deuses ou pela ciência, o privilégio de desmaiar diante da dor que teve de enfrentar. O preço pago pelo corpo já fora muito alto. Porque ela sabia que não sobreviveria àquele estiolamento vindo da magia negra. Tal foram sua estupefação e terror ao ver o que havia parido que desejou nunca ter nascido ou ter sido um aborto. Pois Karen tinha parido:

UM PORCO.

Texto revisado em 14 de dezembro de 2010.

Original de 2005.

DominiCke Obliterum
Enviado por DominiCke Obliterum em 14/12/2010
Reeditado em 22/08/2012
Código do texto: T2671401
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