O Prato do Dia

Suas mãos estavam amarradas atrás das costas, enquanto seu corpo, espremido violentamente contra a parede úmida e sórdida daquele armário, tinha espamos de dor e dormência nos músculos.

Era um homem comum, vestia uma camisa social azul, calças jeans de cor azul escura, e fora até aquele restaurante naquele dia, para comemorar o fim da sua pesquisa sobre uma tribo indígena da época do descobrimento do Brasil.

Tinha trinta e cinco anos, cabelos abundantes, olhos azuis, enfeitados com terríveis olheiras de cansaço, e viera de Santa Catarina para trabalhar com pesquisa naquele fim de mundo, incrustado no interior do Brasil.

Fechou seus olhos; a lembrança de sua mulher, Caroline, sorrindo-lhe na última vez que se viram, não lhe saia da mente. Suas roupas encardidas fediam a sangue, mas não era seu sangue, era o sangue seco na parede. Sangue humano.

-Está tudo bem aí? - Gritou um homem do outro lado da porta. A voz esganiçada, jocosa, e um som de machado ou facão atingindo uma superficie amadeirada -. Por que o cheiro de medo tá chegando aqui... - Risadas sádicas ecoaram exponencialmente pelo ambiente imundo, atingindo em cheio o pequeno armário em que ele se encontrava trancado.

Sons de conversas, susurros, algazarra vil, vindas do restaurante do outro lado da parede, lhe atingiam sorrateiramente, enquanto espreitava o ouvido contra a superficie mal cheirosa que o enclauzurava.

Incapaz de se concentrar no cheiro de fluídos cadavéricos, daqueles que tiveram o mesmo destino que agora o atingia, pensava em quais seriam as suas chances de escapar dali ou de que forma morreria. Sufocado. Num ataque nervoso. Morto com uma facada na testa. Uma facada na testa.

-Com as tripas se faz sopa, com os olhos se enfeita o bolo, com o coração se faz o molho... Com os miolos, o recheio e o resto do corpo, meu querido, se põe no meio... - A voz sarcástica do cozinheiro de grandes dimensões, olhos profundos, cabelos desgrenhados, entoava esta canção, enquanto o som de água fervente enchia de tensão o peito de Maurício.

O que faziam as pessoas antes de morrer, pensou. Rezavam? À merda qualquer deus, e mesmo tão perto de morrer, não conseguia acreditar em nada. Aliás, não sentia vontade de rezar, de implorar por sua vida.

Suas mãos sangravam, e o cheiro fresco de sangue confudia-se com o que secara nas paredes daquela pequena prisão. Saliva escorria de sua boca, seus olhos doíam nas órbitas, sentia-se atordoado, e sua mente parecia um computador velho tentando executar uma tarefa muito superior a sua capacidade.

Sal ou pimenta, como quero ser temperado? Oh, estou enlouquecendo... Enlou... O que importa? Vou estar morto daqui há pouco, vou ser comido por um bando de caminhoneiros, numa vila isolada no interior da Floresta Amazônica, que acharão estarem comendo carne de b... Caroline... Carol...

Um grito contido fez notar que há muito sua garganta secara. Estaria morrendo? Sentia seu corpo retraír-se, como uma sonda marinha a procura de um tesouro escondido nas profundezas do mar, era o seu corpo consumindo desesperadamente os últimos vestígios de energia que lhe sobravam.

Quem eram aqueles que lhe sucubiram a tal pesadelo? Lembrava-se apenas de entrar no restaurante, estava tarde, sentara-se perto do balcão, um homem gordo viera atendê-lo, sorrindo, "bela camisa", ele disse. Escolheu um prato qualquer, pedira uma cerveja, tomou-a e acordou algum tempo depois, amarrado, dentro daquele mesmo lugar.

-Assassinos! - Ainda tivera forças para gritar. O movimento de projetar-se para frente, para que o som que saíra de sua boca fraco, mas raivoso, encontrasse satisfatoriamente aqueles a que foi destinado, forçara dolorosamente as suas mãos contra a corda esfiapada que as prendiam.

-Sabe, meu amigo - disse o homem gordo, sorrindo, enquanto descascava uma batata, que serveria como acompanhamento ao molho de fígado e rim de Maurício, e limpava as mãos no avental encardido -, não me considero isso que você falou... Quero dizer, eu o coloquei aí, sim, eu o fiz, mas, não o matei e nem o farei... Você morrerá em breve pela própria fraqueza do seu corpo, talvez sufocado, desidratado, por inanição... Mas enquanto isso eu não tocarei um dedo em você, amigo...

-Com as tripas se faz sopa, com os olhos se enfeita o bolo... - Continuou o cozinheiro corpulento, de olhos grandes, negros, barba suja de restos de comida, que com a mesma mão que segurava o pulmão desfalecido de um homem, servia aos seus clientes.

Enquanto sentia a cabeça girar e tinha a visão anuviada pela inconsciência, percebeu de relance que a corda que prendia as suas mãos estava mais frouxa. Fora o sangue. O sangue provocado por dezenas de feridas de farpas, havia amolecido a corda, facilitando a sua remoção.

Se eu pudesse me soltar, ficaria de pé com alguma dificuldade, e então, arrombaria a porta e tomaria de assalto quem ali estivesse. Engoliu a saliva que escapava da boca. Sim, era um bom plano.

As feridas provocadas pelas farpas lhe faziam gemer dolorosamente, temia chamar a atenção do cozinheiro, e pensou por um momento que não seria possivel desamarrar-se.

Um desespero crescente lhe fez utilizar as mandíbulas para tentar desobstruír-se das correntes que lhe condenavam àquele destino exdrúxulo e não pôde evitar bater contra a porta do armário, logo após forçar a corda com tamanha violência, que acabou por desmanchar o nó.

Após isso, apoiou os pés fortemente contra a porta do armário, e projetou o seu corpo para cima, escalando a parede úmida e fedorenta com as costas, até estar de pé.

Agora, teria de ter força suficiente para arrombar a porta ou então, se falhasse, denunciaria-se para eles e sua morte seria fatalmente antecipada.

-Um... Com o coração se faz o molho... - Contava mentalmente até três, enquanto a música macabra cantada pelo cozinheiro imúndo, vinha-lhe à mente -, dois... Com os olhos se faz o recheio... estou enlouquecendo... Três... E o resto, meu querido... PUFT... A porta foi quebrada num estálo, e Maurício estava em pé, os olhos vidrados, o corpo em posição de ataque, pronto para vingar-se contra aqueles que lhe subjulgaram tão cruelmente.

Um homem baixinho, de cabelos negros enrolados, uma barba que caia até o pescoço, e um facão nas mãos, adiantou-se contra ele, gritando gruturalmente, frente ao estado atônito em que se encontrava.

Maurício defendia-se com o pé, enquanto o homem desferia-lhe golpes com a faca afiada, que há pouco estava sendo usada para cortar os temperos que acompanhariam os seus restos mortais.

Sangue escorria-lhe pela mão, misturando-se com os líquidos ensebados que se encontravam no chão asqueroso do lugar. Cheiro de podre, de carniça. Sons de risadas vindas por de trás da porta que levava ao restaurante. A respiração ofegante do pequeno homem.

-Desgraçado... - Lutava com as forças que ainda lhe restavam, tentado empurrar o homem para os panelões que ferviam água.

Então, conseguiu o seu intento. O pequeno auxiliar de cozinha atingiu em cheio o fogão às suas costas e com o impacto, três panelas projetaram-se para a frente, jorrando o seu conteúdo contra o seu pequeno corpo. A água fervente transformou-o numa figura amorfa, derretendo-o como um boneco de cera.

Maurício continuou em pé e virando-se para sair dali... CRASH... Foi o som do Facão do cozinheiro gordo atingindo o crânio do pobre homem.

-Com as tripas se faz sopa, com os olhos se enfeita o bolo, com o coração se faz o molho, com os miolhos, o recheio, o resto do corpo pôe-se no meio, e para finalizar com destreza, cozinha-se o pequeno cozinheiro e assim, está resolvida a sobremesa! - Cantava o cozinheiro esdrúxulo, sorrindo ao cortas as víceras do pobre pesquisador.