Amaldiçoado Será Vosso Sangue

O sol forte da manhã feria-lhe as vistas. Acordou de sobressalto descobrindo estar em um local desconhecido.

Isso não era novidade para João Ribeiro Albuquerque, filho de um dos mais ricos fazendeiros da região, afinal ele aproveitava bem a fortuna do pai em bebedeiras homéricas enquanto se aventurava debaixo das saias de escravas ou moças de família.

A diferença, contudo é que ele estava sozinho na mata, com as roupas rasgadas e com o corpo sujo de lama. Notou então que havia sangue em suas mãos.

Primeiro tentou recompor-se e pensar no que tinha acontecido. Procurou também lavar-se para tirar aquele sangue, que descobrira não ser o seu, de suas mãos. Após lavar-se em um ribeirã próximo ele tentou lembrar o que fizera na noite passada. Tinha certeza de que não havia se embriagado e que nem ao menos saíra da fazenda naquela noite.

Caminhou cambaleante em direção à fazenda de seu pai, onde encontrou uma estranha movimentação entre os escravos. Encontrou Josué, o feitor da fazenda e grande amigo de bebedeiras que lhe esclarecera a situação.

- Mataram o Furioso, Seu João - referia-se ao melhor cavalo da fazenda.

- Como assim? - perguntou espantado - Quem faria isso com o Furioso?

- A gente acha que foi argum bicho, ou coisa pior. Mataram o cavalo a dentadas!

- Meu Deus! Pode deixar que nós vamos encontrar esse bicho. Não deve estar muito longe.

Uma das maiores diversões de Josué eram as caçadas. Era um homem rude, de feições ásperas e tinha extrema habilidade com cavalos e armas, completamente diferente do sempre indolente João.

Claro, isso se deve ao fato de que Josué sempre teve que trabalhar desde cedo, enquanto João fora mandado para estudar na capital no começo da adolescencia. Eram mundos diferentes, mas ainda assim eram grandes amigos de infância.

João era diferente dos demais jovens ricos da região. Não era um esnobe almofadinha, apesar de gostar de aproveitar as facilidades que o dinheiro lhe proporcionava. Outra diferença mais visível é que ele era mestiço, fruto de uma aventura de seu pai anos antes.

Joaquim Albuquerque era um português que ganhara muito dinheiro como mercador, viajando de um porto ao outro. Quando cansou-se de viajar comprou as terras do que viria a ser sua enorme fazenda e comprou escravos para trabalharem lá, uma coisa muito comum naqueles tempos em que o Brasil ainda era um Império.

O velho português era casado, mas seu único filho homem, após seis mulheres, era fruto de uma união proibida. João era filho de uma das escravas da fazenda, mas fora retirado de sua mãe verdadeira. Ele sabia de parte desses fatos, mas não de que fora retirado à força.

Apesar disso, se orgulhava de ser diferente. Orgulhava-se da pele morena e dos cabelos mais crespos que os do resto de sua família. De seu pai herdara os olhos verdes, o que dizia ser o charme com o qual conquistara inúmeras mulheres.

Naquele momento, contudo, João notou algo diferente. Os escravos lhe olhavam com uma expressão assustada. Não era o medo que sentiam de um patrão branco e sim temor em sua forma mais simples. Como se algo maligno rondasse o jovem.

Lembrou-se então do sangue em suas mãos momentos antes e de como estava em farrapos. Tentou ligar uma coisa a outra enquanto ia em direção à casa de seu pai, onde poderia tomar um banho melhor e colocar roupas limpas.

Encontrou seu pai no quarto, ajoelhado em frente a um pequeno altar próximo a cama. Ao seu lado uma garrafa de aguardente já quase pelo fim. Notou que o homem chorava enquanto rezava.

- Pai, o senh...

- Foi você!!! - Gritou Joaquim virando-se abruptamente - Tu trouxeste a desgraça para essa casa!

- Mas o que o senhor está falando?

- Mataste o Furioso! Vais matar a todos nós também!

- Pelo amor de Deus, pai, conte-me o que está acontecendo aqui!

Com lágrimas no rosto o velho homem de bigode impecável começou a contar algo que tentara manter em segredo por mais de vinte anos.

- Tu bem sabes que não és filho de minha falecida esposa Catarina, mãe de tuas irmãs...

- Sim, eu já sabia disso, mas o que isso tem a ver com a morte do cavalo?

- Eu não aceitei que meu filho fosse criado entre os escravos. Você teria que viver em nossa família, sendo reconhecido como filho meu e de Catarina. Por isso, nós o tiramos de vossa mãe verdadeira, mas ela enlouqueceu com isso...

- Como assim? O que houve?

- Ela estava a falar em uma língua estranha, dizendo blasfêmeas sobre mim e nossa família. Ameaçava agredir Catarina se ela o tomasse como filho. Para castigá-la ela foi levada ao Tronco, onde após inúmeras chibatadas ela proferiu sua maldição. "Amaldiçoado será o vosso sangue" ela gritava antes de morrer.

- Maldição? Mas que absurdo pai! E esses castigos são coisas tão brutais... Eu não acredito em nada disso! Não pode ser!

Revoltado o jovem se afastou da fazenda. Não sabia o que fazer, o que pensar.

Vagando só pelos campos começou a se lembrar vagamente de correr como um raio e de sentir uma fome avassaladora, só saciada ao ver o grande animal que dilacerara com os dentes. Será verdade? Havia mesmo uma maldição? Sabia que aquele povo era muito supersticioso, mas seus tempos de estudos na capital lhe fizeram descobrir que tudo não passava de crendices.

O mais chocante, contudo era saber que sua mãe verdadeira fora assassinada de forma brutal. Catarina cuidava dele como se fosse seu filho, mas agora ele se lembrava do olhar de desprezo com o que ela o fitava às vezes. Pertencia a dois mundos e nenhum ao mesmo tempo.

Já não sasba há quanto tempo vagara, mas já a noite já caía e ele ficava imaginando o que fazer. Voltar pra fazenda não era uma opção e sua fama de mulherengo não o tornaria bem aceito em outras casas. Mas ele logo parou de se preocupar com isso.

Olhando para o céu enquanto a noite tomava conta, João fitou a lua. Estava em todo o seu explendor, um enorme disco prateado de luz fulgurante. A lua cheia causara-lhe algum efeito misterioso e logo sua mente. Logo, o majestoso Lobo corria livre pelos campos uivando para a lua.

Em seu último vestígio de pensamento consciente descobriu que a maldição era para os outros. Para ele era a liberdade. Encontraria enfim seu lugar no mundo.