Mente assassina



 
Enquanto contava as tábuas do teto encaixadas perfeitamente e desgastadas pelo tempo, senti uma onda de pavor quando me senti parte delas. Uma teia de aranha ali, a pintura descascada adiante, a sanca de gesso feia e grosseira do século passado precisando de reparos. Enquanto  eu permanecia deitada no colchão roto e cheio de caroços, escutando o som irritante da bica gotejando e todos os barulhos que uma casa velha faz, uma ponta de angústia apertava meu coração. Minha barriga incomodava e eu mal podia colher os legumes e verduras da horta que mantínhamos no quintal, agora seria mãe e não era nada disto que sonhei para mim.  João comprava o pesado no armazém da cidade que eu nunca visitei, ele sempre esquecia o doce ou confeito para matar meu único desejo. Completamente só, escutei o carrilhão soar onze vezes e soube que ele não voltaria, aquela seria mais uma noite longa e solitária.  

A cama de madeira escura assim como todos os móveis, eram herança de família e não podiam ser trocados. Tentei alegar que tinha pulgas e ele nem se deu ao trabalho de responder. Eu odiava cada cômodo mofado, detestava as roupas de cama remendadas, as toalhas encardidas e a sensação de estar sendo observada por olhos mortos. Aquele casarão tinha ranço de um passado pesado, tão ruim quanto o vento gelado que toda tarde assobiava me causando arrepios. Nem televisão, rádio, nada que pudesse me distrair um pouco. Achei alguns livros, romances bem bobos que só podiam ter sido de uma mulher solitária e romântica. Talvez a mãe de João se sentisse como eu, mas pelo menos ela teve uma família.

A única coisa boa do casamento foi sair de casa e não ter que aturar uma mãe maluca e sua prole infestada de piolhos. Um bando de moleques que ela nem sabia quem eram os pais, vivíamos das sobras das panelas dos vizinhos e eu ficava em casa para ela ir ganhar dinheiro nas ruas.  Minha mãe sempre dizia que quando eu completasse quinze anos, também iria trabalhar e ela não estava preocupada em me poupar dos detalhes da profissão. Eu tinha verdadeiro pavor daqueles homens bêbados, como nunca freqüentei escolas e mal sabia ler e escrever meu nome, sabia que seria minha única opção. Meu destino como de todas as outras meninas daquele cortiço imundo era seguir os passos das nossa mães  e cair na vida.

Um dia estava na calçada com os meninos e apareceu um caminhão de entregas, enquanto os operários descarregavam os tijolos para a  casa ao lado, um rapaz muito louro me chamou atenção. Ele era forte e sorridente, um pouco mais velho que eu, e com um sotaque caipira que fazia com que todos fizessem piadas. Bem humorado e brincalhão o rapaz sobressaía, os homens trabalharam empilhando os milheiros:

- João é mais novo, cheio de energia e não vai negar um refresco pro amigo. – Um senhor implicou e acendeu um cigarro.

- Só se o senhor me der uma parte da sua diária, sou trouxa não...- O rapaz retrucou com sotaque forte e houve um alvoroço de assobios e gargalhadas.

Ele era alto e fazia questão de exibir os músculos, não usava camisa e sabia que eu estava observando todos seus movimentos.
João sorriu pra mim e eu retribuí, mandou um beijo soprado quando partiram  e fez sinal que iria voltar. Não precisei esperar muito, naquela mesma noite ele apareceu e me convidou para um passeio:

- Mas eu estou cuidando dos meus irmãos. Não quer conversar um pouquinho aqui mesmo? – Ele pareceu contrariado e eu não queria perder a chance de ter um namorado.

- Que pena, gostei tanto de você. – Ele sorriu e eu imediatamente me decidi.

Deixei as crianças sozinhas e fomos dar umas voltas pelas ruas mal iluminadas. João estacionou sua caminhonete barulhenta em um terreno abandonado. Na cabine apertada ele segurou meu rosto e eu tremi. Meu primeiro beijo foi bem desajeitado, não sabia o que fazer direito, e a língua dele mexendo na minha boca era tão gostoso que fui relaxando. Achei que o certo seria fazer o mesmo, e ficamos nos beijando por um tempo.
João apertou meus seios, senti suas  mãos por todo meu corpo e nossas respirações embaçaram os vidros. Ele sorriu e tirou minha blusa.  Era tão boa a sensação de ter um carinho,  escutar  que eu era linda todo o tempo,  que  acabei me sentindo especial pela primeira vez na vida.
João não  era como os homens que minha mãe levava pra casa e arrastava para o quartinho dos fundos, eu e as crianças precisávamos tampar os ouvidos com as mãos algumas vezes de tantos palavrões e xingamentos que trocavam. Ele era doce e carinhoso, fechei os olhos desejando guardar para sempre aquele instante.

Quando ele me puxou para o seu colo não me importei, João arrancou minha calcinha e desceu seu  fecho éclair. Minha saia estava enrolada na cintura e ele foi me ajeitando, os dedos me esfregando e abrindo, comecei a balbuciar coisas sem sentido. Perdi a vergonha e timidamente  acariciei  o corpo de João. Ele me ensinava onde tocar e tudo parecia tão bonito e romantico.
 Foi quando ele nos encaixou e me penetrou. Naquele momento senti uma dor aguda, não me importei porque não queria estragar nada. Enquanto nos movíamos cada vez mais rápido, ele me abraçou apertado e gemeu alto.  Foi a primeira vez que me senti querida e quis me aconchegar. Ele me afastou, pegou um rolo de papel higiênico, se limpou  e jogou o que sobrou no  meu colo:

- Que merda é essa sua vagabunda? Sangue? Quer armar pra cima de mim?  – Ele me sacudiu pelos ombros.

- Eu não entendo, não sei porque está zangado. O que eu fiz?  

- Sou um caipira pra você, um otário para  enganar com este cabaço? Que merda! E eu não consegui segurar. Droga!- Ele deu um soco no volante e eu me encolhi no canto da porta.

- Pensei que você tinha gostado de mim.

- Coitadinha! Tão pura e inocente. Não se enxerga? O que eu iria querer com uma vaca gorda e feia como você? Estou duro e você ficou se oferecendo toda, disseram que ali era rua das piranhas, a zona da cidade. Pensei que tinha dado sorte e ia sair de graça.

- Eu não sou isso.- As lágrimas caíam sem parar e eu me senti enojada.

- É sim. Deixou eu fazer tudo e agora vai querer cobrar mais caro. Dane-se você, melhor seria ter ficado no alojamento e tocado uma punheta.

- Quero ir pra casa. – Ele veio pra cima de mim, tremi de medo mas ele apenas prendeu meu cinto de segurança. Em seguida acendeu um cigarro e tragou profundamente, os olhos apertados  como se buscasse uma solução para o problema. Finalmente deu a partida e dirigiu em silencio até a rua sombria.

João não imaginou que a filha da puta mais conhecida da cidade fosse virgem, perguntou minha idade e entrou em pânico. Quando  me largou  na porta de casa com algumas notas amarrotadas no bolso da saia, foi embora apressado e eu me senti a pior das mulheres.
Caminhei até a venda e comprei leite e biscoitos. Infelizmente minha mãe já me esperava furiosa e cheia de cachaça. Ela fez um escândalo, a vizinhança apareceu nas janelas e eu fui chamada de todos os palavrões conhecidos. Já haviam contado que eu tinha saído com o moço da fábrica de tijolos.  

Um pobre coitado que não tinha onde cair morto. Ela tinha planos de me apresentar seus melhores clientes na hora certa, por isso ficou com tanta raiva, paramos de nos falar até minha barriga começar a aparecer. Minha mãe me obrigou a ir com ela até a fábrica de tijolos, chamou o gerente e ameaçou chamar a polícia se não tomassem uma providencia. Ela recusou o dinheiro para o aborto, gritou que eu era menor e que todos já sabiam que eu estava perdida. Finalmente entendi que ela havia encontrado uma forma de se livrar de mim.

João aceitou o casamento e a velha meretriz calou a boca. Para garantir que ninguém soubesse da nossa história, mudamos para o interior onde ele havia sido criado. E então eu descobri que havia coisas piores que viver em uma cabeça de porco. Para o meu marido retornar ao campo foi como admitir sua incapacidade. Perante  a família ele era mais um caipira fracassado, expulso pela cidade grande e um idiota, vítima do golpe mais velho do mundo. Para piorar a  situação, a namoradinha de infância de João morava na mesma cidade e eram primos  distantes. O casamento entre eles era esperado e eu, a intrusa passei a ser odiada pelo clã. Pelo menos era esta a historia que ele me contou, portanto nunca íamos à cidade, não recebíamos ou visitávamos ninguém. Isolada naquela imensidão verde, na mais completa solidão aprendi a viver em minha própria companhia.

Meus dias vazios limitavam-se à ficar sentada em uma poltrona ou deitada na cama. João não conversava comigo, limitava-se a responder de má vontade minhas perguntas sobre o dia a dia e corria para a varanda onde ficava fumando até a hora de dormir. Nosso único contado sexual e as conseqüências, foram o suficiente para ele sempre  deitar o mais longe possível e me ignorar por completo. Finalmente ele começou a dormir fora alguns dias na semana, eu não falava nada e nem podia, dependia dele para comer e sobreviver. Além do mais, o silencio sempre foi um velho companheiro.

A fazenda ficava tão escondida que eu nem sabia a distancia até a estrada principal. Não havia nada pessoal naquela casa caindo aos pedaços, fotos ou objetos que remetessem ao passado de João. No terceiro mês seguinte à minha chegada, encontrei uma senhora sentada na poltrona da sala, ela já havia feito café e apontou para a mesa arrumada. Imediatamente desconfiei e não gostei nada do jeito como ela se movia pela casa, passando os dedos nos móveis e fazendo cara de nojo para o pó acumulado:

- Sou tia de João, pode me chamar de Cotinha ou tia Cotinha, vim ajudar com a casa até você ganhar o bebê.- Ela já estava com uma vassoura e começou a varrer sem a menor cerimônia.

-  A senhora não precisa se preocupar que eu dou conta da casa, estou acostumada com trabalho.

- Eu não estou pedindo pra ficar, vou ficar e é assunto encerrado. Esta casa está um lixo, vai dar uma trabalheira colocar tudo em ordem.

- Então eu vou deitar. Estou com sono e não preciso fazer mais nada.

- Não! Você precisa tomar um pouco de sol, está pálida demais. E vamos começar a caminhar, está engordando feito uma leitoa prenha. Quero ver na hora de parir. - Aquela senhora apesar da idade, tinha uma força descomunal e logo eu estava sentada na varanda. Literalmente arrastada e sem direito a retrucar.

Este imprevisto me tirou do sério e fiquei realmente zangada. Respirei fundo e não vi saída senão me adaptar à nova situação. João apareceu para o almoço e não tocou no assunto. A tia de João tornou-se minha sombra, sempre vigiando meus passos. A convivência com meu marido melhorou, passamos a trocar algumas palavras e eu aprendi a bordar e costurar as roupas para o bebê.

Um dia ele trouxe um  velho berço e em pouco tempo reformou e pintou com uma cor clarinha. O quartinho estava quase pronto, das cortinas ao tapete tudo havia sido feito pela tia de João com minha ajuda. Ele pregou as prateleiras e fez uma cômoda, foi assim que descobri que todos os trabalhos de marcenaria da cidade eram feitos por ele. A fazenda não nos sustentava há tempos, quando ele se recusou a vender ou arrendar para os parentes criadores de gado, alguns cortaram relações e por isso ele quis ir embora para a cidade grande. João estava tão sozinho quanto eu, mas seu ressentimento era maior.

Estava no oitavo  mês de gestação quando sofri o acidente, o piso úmido da cozinha fez com que escorregasse e caísse de mau jeito. Não consegui me levantar,  João me levou até o hospital local, como eles não possuíam recursos fui transferida para a capital. Entrei em trabalho de parto, fui para o centro cirúrgico e João apareceu à tardinha na enfermaria. Eu já sabia que o bebê não havia sobrevivido:

- Você viu a criança? – Perguntei e ele balançou a cabeça em negativa.

- Vamos batizar e enterrar aqui mesmo, já falei com o padre.- João puxou uma cadeira e percebi o quanto ele estava bonito e bronzeado, tinha um ar quase feliz o que em nada combinava com o momento.

- Era um menino. Quando vou ter alta? – Ele me olhou frio e distante.

- Amanhã de manhã. Olha,  acho melhor você passar uns dias com sua mãe.

- Você está me devolvendo? É isso?  Vai me devolver  feito um fardo podre. Aposto que está aliviado.

- Olha como fala comigo.  Nunca quis este filho,  não tive escolha. Agora você está casada, mando dinheiro todo mês até ter idade para trabalhar. Depois a gente se separa.

- Eu não quero voltar pra rua das putas. Vai ver mandou sua tia deixar o chão molhado de propósito. – Não sei de onde tirei coragem para falar tanto, mas estava realmente muito magoada.

- Não invente coisas, minha tia foi a única que teve pena de você, sua ingrata maluca! Não vou te levar de volta, se vire com sua mãe e me esqueça. Não tem mais nada que me prenda a você.

Não respondi. João deixou na mesinha da cabeceira um envelope com algum dinheiro, e eu não tinha forças nem para chorar.  Tudo que eu não queria naquele momento era encarar a casa lotada de crianças e as ironias da minha mãe. Notei minha sacola de roupas no cantinho perto da cama. Mordi os lábios até sangrarem, naquele momento comecei a planejar minha vingança.

Quinze dias mais tarde mudei para outra cidade e fui viver em uma  pensão próxima  ao mercadão das flores. Algum tempo depois encontrei o emprego que queria. Finalmente estava trabalhando na maior floricultura local e este foi o primeiro passo. Deu algum trabalho conseguir a vaga, felizmente a ex-funcionária era muito ruim e foi mandada embora após vários telefonemas reclamando do péssimo atendimento. Meu serviço era tranqüilo e logo aprendi a fazer arranjos de flores e cuidar de algumas delas com o maior cuidado.

A dona da loja percebeu minha dedicação e começou a me ensinar sobre o cultivo de algumas, ela e o marido também mantinham um herbanário e vendiam ervas medicinais. O stand ficava em um grande mercado municipal, no entanto tudo era cultivado em um sítio retirado, eu sempre ajudava a descarregar as flores mais delicadas e aproveitava para conversar com os jardineiros do local. Um deles era bem jovem e não se cansava de falar sobre a imensa variedade de espécies, imediatamente comecei a sonhar em um dia conhecer tal lugar:

-  Silvinha, venha me ajudar a preparar estas orquídeas.

- Sim senhora. – começamos a trabalhar e percebi que ela estava atenta aos meus movimentos, procurei ser o mais cuidadosa  possível.  Agora eu era Silvia Helena, uma pobre mocinha sem família nem história para contar.

-  Menina, percebi que você tem muito carinho e gosta realmente do que faz aqui. Mas tem dificuldades com o público e sua timidez pode não ser ideal neste local. – Tremi antevendo o que viria a seguir, não podia ser despedida e voltar pro cortiço. Meus olhos se encheram de lágrimas.

- Dona Júlia, vou me esforçar para ser mais simpática. Eu aprendo rápido, preciso demais deste emprego.

- Querida, eu quero propor sua ida para a fazendinha por uns tempos. Minha melhor ajudante ficou doente e precisa de ajuda, só não sei se você tão jovem vai aceitar. Não há nada lá, só muito mato e silencio. Fique a vontade para recusar. – Respirei aliviada e quase pulei de tanta alegria, o caminhão partiria em poucas horas e eu tinha o tempo exato de voltar à pensão e buscar minhas poucas roupas e acertar o aluguel. Naquela mesma noite adormeci ouvindo o som dos bichos noturnos, o cheiro bom da terra me relaxava e eu sabia que iria ser muito feliz naquele lugar.

Durante dois anos aprendi bastante e fui me sentindo mais forte, meu corpo com o serviço do campo foi perdendo o volume e ganhando músculos. Algumas vezes ia até o mercado e ficava observando as pessoas, sempre apressadas e falando muito. Minha vidinha era pacata, simples ao extremo, fiz amizade com as pessoas da terra e sabia onde pisar, qual a época de plantar e colher. Principalmente aprendi que tudo tem sua hora. Mantinha o cabelo curtinho com jeito de menino,  não chamava atenção e nem arrumava pretendentes. Era apenas uma moça calma e pacata como todos se referiam. Boa com as plantas e que não gostava de conversa fiada, o que me garantia ponto com as senhorinhas do lugarejo.

A tinta para cabelos manchou a toalha, livrei-me do louro cinzento e passei ao castanho escuro, quase preto que combinou  com meus olhos claros. A gorducha também não existia mais, estava praticamente irreconhecível. A nova aparência também ajudou a disfarçar minha idade, embora eu carregasse um peso de mais de cem anos de mágoas ainda tinha dezessete. Pedi demissão do emprego e  a patroa não aceitou, eu já contava com a recusa:

- Silvinha, você nunca tirou férias, vive no meio do mato praticamente sem amigos. Trabalhamos juntas há  mais de dois anos e nossas conversas são sempre as mesmas.  Apenas sobre plantas e flores. Não sei quase nada sobre você, apenas que é responsável e faz um excelente trabalho. Isto me basta, mas se precisar desabafar, pode contar comigo. Tire alguns dias e depois venha me dar a resposta definitiva. – Ela era uma boa mulher, mas tão fofoqueira que eu jamais confiaria um só comentário. Além do mais, não queria qualquer elo com ninguém, ser uma sombra é como passar despercebida sempre. Uma ninguém.

- Obrigada Dona Julia, vou aceitar. Gosto muito de trabalhar para  a senhora.

- Se for algum problema e eu puder ajudar, também pode contar com minha ajuda.

- Agradeço muito mas é isto mesmo que a senhora disse, vou passar uns dias na praia e mudar de ares. Adoro o campo e logo estarei de volta com mais disposição.

- Eu me lembro do seu primeiro dia aqui na loja. Entrou aqui tão assustada e hoje está forte,  todos os empregados falam bem de você. Semana que vem é Natal e contratamos um cantor para animar. Sem contar os presentes dos funcionários, desta vez vamos premiar os destaques do ano. Entendeu querida?

Eu sabia muito bem que eram comemorações lindas, com muita comida e bebida. Mas todos tinham família para levar e eu era sozinha. Nunca cogitei a hipótese de ser olhada com dó, principalmente por aquela gente roceira e sua prole remelenta. Podia imaginar todos chegando de olhos arregalados à fazenda bem cuidada, os donos da casa e seus cinco filhos enfileirados na porta sorridentes e exibindo suas melhores roupas. Não. Eu não gosto nada deste tipo de reunião familiar, quis um dia fazer parte de uma família e fui repelida feito um cão vadio.
 
Finalmente havia chegado a hora de mostrar que eu realmente não fugi às raízes, como minha mãe eu também pertencia ao mundo real, aquele que não está nas fotos dos álbuns nem aparecem nos comerciais de TV. Sorri com falsa simpatia:

- A senhora tem razão,  será um prazer comemorar com vocês.- Nos despedimos e fui para a rodoviária.
 
A  bolsa de viagem pesava, meu coração ao contrário, muito leve e tranqüilo quando escolhi o assento nos fundos pulsava felicidade. Usava um jeans surrado e largo e uma camisa xadrez masculina, botinas pesadas completavam o vestuário.
Oito  horas mais tarde, desci na cidade pequena do interior, fiz um lanche na padaria e perguntei por uma pousada mais em conta. Só havia uma e era quase em frente. O lugar era bem movimentado, muitos caminhoneiros e viajantes usavam para pernoitar e seguir viagem.

Ninguém reparou quando saí para dar uma volta, a recepção estava cheia e barulhenta. Acho que uma rua principal com paralelepípedos e outras laterais de terra ou pedras resumiam tudo. Uma  farmácia, duas padarias, uma barbearia vazia onde dois homens sentados à porta liam um jornal. O único   mercadinho era minúsculo e exibia promoções em cartazes pendurados. Em uma largo no final da rua,  ficavam a prefeitura e a escola que funcionavam em casas comuns.

Nenhum prédio de dois andares, a igrejinha e o hospital pareciam recém reformados, o restante resumia-se a uma praça ampla e bem arborizada, crianças andavam de bicicleta e senhoras conversavam sentadas nos bancos de jardim. Os botequins como sempre, cheios de cachaceiros dividiam a mesma calçada com lojinhas mixurucas e lanchonetes. Durante tanto tempo sonhei com este momento, foi realmente uma grande maldade João não ter me deixado conhecer aquela porcaria insossa, sonhei tanto com um passeio de braços dados e ele me apresentando todos os amigos.

Sentei para descansar em um banco de madeira afastado, algumas crianças corriam em volta dos brinquedos, mulheres conversavam e riam entre si. Foi quando vi João, ele estava abraçado com uma moça loura e bonita, a barriga proeminente era exibida com orgulho, senti o corpo tremer e meu coração disparar de tanta raiva.
O primeiro baque passou e muito a contragosto deixei o jardim, ainda guardava o sorriso do casal na memória, rosto de gente feliz. Sentada na recepção da pousada, puxei conversa com um rapaz que atendia no balcão, ele era bem novo e parecia meio abobalhado:

- Que lindo este presépio, tudo tão bem feitinho.

- Foi o João, ele fez o bonequinho do menino e os reis. Ele me deu este cavalo também. – Senti vontade de arrancar das mãos do garoto o cavalinho que havia sido feito para o meu filho, eu me lembrei perfeitamente do dia em que João colocou na prateleira.

- Um presente e tanto, você gostou?

- Claro, ele agora vai fazer outros pro filho dele, ele me contou.

- Que bonito, então o seu amigo vai ser pai? – Tentei sorrir com suavidade.

- Ele vai casar com a Marina. Lá na fazenda, eu quero ir ao casamento, mas meu pai disse que tem trabalho aqui.

- A fazenda é longe?

- Não, a Santa Margarida é a primeira, meu pai podia deixar. O João mora na Santa Maria, é a ultima quase no final da serra. Depois só tem mato.

- Santa Maria? É um nome bonito, são tantas fazendas que a gente confunde. Eu ouvi falar em uma bem antiga, fica no meio das outras... Acho que é mal assombrada de tão feia.

- Ah! É da tia dele, é uma fazenda que nem tem nome. É da dona Cotinha, a velha solteirona que vive se metendo no que não é chamada. Minha mãe é quem fala assim. Não conte pro meu pai.

- Pode deixar querido. Engraçado, estes bonequinhos são tão perfeitos que tem as caixinhas dos reis parecem de verdade. O que será que tem dentro delas? Você sabe?

- Minha mãe não deixa mexer no presépio. Mas eu queria ver o que tem dentro também.

- Que pena, eu sou curiosa demais. Você é um garoto obediente. Daqui a pouco vou para o meu quarto tomar um bom banho, será que ainda tem um refrigerante gelado na cozinha?

- Eu não posso sair daqui até minha mãe voltar, ela foi ao mercado aqui ao lado. Ela mandou eu atender as pessoas.

- Bom, não tem ninguém aqui e se chegar eu te chamo.

- Você é legal. Vou pegar seu refrigerante e  volto rápido.

- Pode deixar amigo. - Minhas pernas mal podiam se mexer, eu nunca havia estado na fazenda de João. O que ele pretendia fazer comigo e a criança? O que ele planejava até que eu fosse maior e ele pudesse se livrar de mim? Porque agora estava tudo muito claro.

O moleque trouxe a bebida, dei uma nota de cinco e mandei ficar com o troco, ele havia sido tão útil que merecia muito mais.
Quando o sol começou a baixar deixei a pousada, a mochila nas costas, jeans e botas de caminhada. O chapéu enterrado escondia os cabelos curtinhos e meu rosto, poderia passar por um moleque andarilho sem qualquer problema. Calculei que gastaria um dia e meio para chegar à fazenda, biscoitos, algumas frutas e água seriam o suficiente. A estrada de barro seco parecia não ter fim, vez por outra um caminhão se aproximava e eu me escondia no mato, não queria carona nem ser vista, só buscava forças para prosseguir.

Avistei a primeira fazenda da família de João: Santa Margarida era  a tradução da  grandeza, o gado gordo e bem tratado reluzia ao sol, cavalos eram conduzidos e escovados. Muitos empregados apressados iam de um lado para o outro, a casa sede parecia uma piada se comparada à que eu vivi, reconheci imediatamente os tios do meu querido marido, dando as ordens montado em seu cavalo caríssimo, parecia um pavão de tão orgulhoso e prepotente. A esposa, no traje de montaria branquíssimo, exibia uma égua linda que logo levou para passear.
Um peão chegou até a cancela, olhando curioso:

- Está perdido? – Ele pensou que eu fosse um rapaz. Isto me animou. Fiz que não com a cabeça baixa.

- Tô procurando serviço. – Ele me encarou e abaixei a cabeça.

- Sempre precisamos de gente, infelizmente não empregamos desconhecidos. Olhe,  meu patrão sempre manda oferecer um prato de comida e água aos passantes. Se estiver necessitado, você tá pele e osso.

- Agradeço a bondade. - Ele abriu a porteira e segui pelo caminho mais retirado, longe das vistas das outras pessoas até um galpão. Lá era uma espécie de dormitório e no fogão a lenha do lado de fora panelas imensas fumegavam.

Meu estomago embrulhou de fome, não sabia qual havia sido minha ultima refeição decente.
Ele apontou pro tanque de água e lavei as mãos e o rosto, ato contínuo, uma senhora serviu um prato com polenta, carne e verdura. Sentei na ponta da mesa e comecei a comer bem devagar, a fazenda estava em plena movimentação e estávamos sozinhas:

- Se quiser mais, não se acanhe, está tão magrinho moço. – A senhora fez uma careta no lugar do sorriso, notei que faltavam quase todos os dentes. Mãos calejadas e pele queimada de sol. O peão que me recebeu tinha ido tratar de outros assuntos, com certeza havia mandado que ela me vigiasse:

- A senhora pode me dar um pouco de água? Por favor?

- Pode pegar na cabaça, os copos estão do lado. Ainda falta descascar alguns legumes e logo o almoço será servido. Sou eu sozinha pra alimentar este mundaréu de gente, mas não quero ajudante se metendo na minha cozinha...

A velha não parou mais de falar, peguei um daqueles copos usados por todos e derramei a água fresca, de repente ela falou que ia tirar umas couves e se eu podia esperar o homem do cavalo pra me levar embora. Imediatamente concordei e enchi uma colher com gosto, ela riu e apontou para a panela:
 
- Pode comer mais, o patrão aqui não tem pena de comida. É brabo mas não é mesquinho. – Ela se afastou com uma cesta grande e um facão, a horta devia ser pertinho. Eu não tinha muito tempo.

Enquanto era escoltada de volta pra estrada, vi mais uma vez os magníficos animais do tio de João, os cães corriam em volta do pasto e tudo era tão bonito e perfeito. Os jardins repletos de flores, a grama aparada como em um cenário de filme. O homem se despediu e segui a estrada, andei algum tempo até um lugar afastado e testei a cerca de arame farpado. Meu alicate começou a trabalhar, levei algum tempo e logo estava do lado de dentro. O  mato alto me escondendo perfeitamente, meu pensamento focado apenas em uma direção. Não pensei em cobras, não pensei em mais nada além daquela casa linda.

Ao longe avistei o pátio, não havia como me aproximar mais sem correr riscos, a noite custou a descer. Os cães eram um grande problema, mas o saco com a carne do almoço já estava bem preparada, espalhei pelos cantos e alguns comeram e logo procuraram um canto qualquer deixando o caminho livre. Fui me aproximando com cuidado, não havia ninguém e com facilidade cheguei à porta da cozinha. Abri com cuidado e tudo estava arrumado, procurei os potes de açúcar, café, encontrei um bolo ainda morno e tudo que é preciso para um bom café da manhã. As laranjas estavam em cima da pia, prontas para serem transformadas em um delicioso suco, agradeci a cozinheira por tamanha organização. Depois mexi nos alimentos da geladeira, nunca se sabe se alguém perde o apetite e resolve optar por um simples iogurte.

A casa era tão bem decorada que tive vontade de revirar cada cantinho, não podia me dar este luxo e isto me aborreceu. Subi os degraus devagar, precisava matar minha curiosidade ou nada teria valido a pena. Decidir qual das portas abrir primeiro foi fácil, ao chegar próxima à primeira, ouvi gemidos de um casal e calculei que deveriam ser os tios de João. Em seguida um enfeite de ursinho anunciava o quarto do bebê. No quarto ao lado foi fácil girar a maçaneta da porta e ver a moça deitada de lado com sua imensa barriga.
Havia um copo de água na cabeceira da cama mas não quis arriscar, lentamente tirei o vidro da bolsa e deixei que uma pequena e letal aranha escapasse. Com a ponta do lápis instiguei e ela atacou, a mulher gemeu e o pé imediatamente formou um pequeno inchaço. Saí com a alma lavada.

Faltavam duas visitas e foram bem tranqüilas: as baias e o gado. No primeiro usei torrões de açúcar com um fortíssimo veneno, com o gado foi um pouco mais complicado, por isso escolhi os bois premiados. Enquanto andava pela fazenda silenciosa, pessoas vomitavam e se contorciam em dores cruciais, em poucas horas a maioria estaria morta ou tão intoxicada que até descobrirem o veneno, não teriam tempo de salva-los. Poupei os tios de João por uma razão especial, queria assistir o sofrimento deles e o de João. Para depois terminar o serviço.
 
Um grito horrível atravessou a madrugada e logo as luzes foram acendendo, mais gritos e o tio de João apareceu gritando pelos homens. Agora duas mulheres gritavam, mãe e filha partilhavam a agonia, uma da morte e a outra sem poder fazer nada. Uma hora mais tarde ouvi as sirenes das ambulâncias. Ainda escondida pelo mato observava a fazenda com satisfação, vi quando a velha caminhonete de João passou em disparada e logo em seguida várias outras seguiram na mesma direção. Como gostaria de poder assistir de perto, mas ainda não era o momento, tudo tinha o momento certo e eu sabia esperar.


 
João
 

Quando o telefone tocou às quatro da manhã, senti um arrepio e desejei que não fosse Marina passando mal outra vez. Desta vez eles estavam nervosos e fiquei assustado, disparei para a fazenda deles com o coração na mão. Ela adorava ser o centro das atenções, agora com a gravidez estava mais mimada que nunca, me agarrei à este pensamento e tentei manter a calma. Marina era minha vida, nos apaixonamos ainda crianças e acreditávamos sermos almas gêmeas.

Foi difícil convencer meus tios a aceitarem a situação sem o casamento, eles imediatamente providenciaram um bom advogado e meu divórcio saiu em poucos dias, sem precisar ter o menor contato com aquela cretina. Depois do nascimento do bebê planejávamos um evento e tanto, com direito a tudo que uma noiva poderia imaginar e mais ainda, fechar a boca da cidade com muita comida e fartura. Pelo celular liguei para meus tios, eles estavam em pânico e mandaram  que eu corresse porque alguma coisa muito ruim, muito ruim mesmo estava acontecendo com Marina e eles não sabiam o que fazer.
Quando cheguei à sede, os poucos que se agüentavam em pé mal conseguiam falar e um desespero tomou conta de mim. Subi com o coração aos pulos e mal pude conter o horror quando me aproximei da cama da minha noiva. Placas roxas cobriam o corpo da pobre, pequenos filetes de sangue escorriam dos poros, olhos, nariz e boca. Ela tentava falar alguma coisa  mas eu não entendi, abracei Marina e chorei feito um menino. Logo em seguida ela parou de respirar.

Meu tio lá fora gritava sem parar, parecia que o inferno havia aberto as portas e deixado todos os demônios escaparem. Quando os policiais chegaram, eu ainda continuava agarrado ao corpo sem vida de Marina, os médicos e enfermeiros me obrigaram a solta-la e minha tia desmaiou. Marina estava completamente negra.

Os doentes e os mortos seguiram para a cidade grande, os parentes corriam de um lado para o outro trazendo noticias cada vez piores. Até os bichos haviam morrido. Uma praga ou contaminação eram as principais suspeitas. Fomos aconselhados a deixar o lugar até descobrirem a causa das mortes, os familiares assustados partiram em debandada horrorizados com as cenas que presenciaram.
Somente meu tio não aceitou deixar o lugar e eu decidi ficar com ele. Tia Luiza se arrastava completamente dopada pelos medicamentos aplicados, ficou andando sem tino até desmaiar no sofá. Em uma noite havíamos perdido tudo, pelo menos foi o que pensei naquele momento, mal sabia que havia mais...muito mais adiante.

Decidi fazer um café forte e esperar o dia amanhecer. Não nos deixariam nem chegar perto do corpo de Marina, não havia estimativa de quando poderíamos enterrar minha mulher e o filho que ela ainda trazia na barriga.
A água ferveu e enchi duas colheres bem cheias dos grãos torrados, o cheiro forte logo encheu a cozinha. Fiz um bule grande e levei a bandeja para a sala. Servi duas xícaras. Em silencio tomamos o café e logo sentimos uma dor forte, como uma cólica intestinal aguda e constante.

Foi quando eu vi uma figura franzina, suja e maltrapilha. Pensei que fosse um menino da fazenda, mas olhando bem naqueles olhos claros, reconheci a besta que mantinha um sorriso cruel de puro contentamento. Alice.
Ela chegou perto e tocou meu pulso, meu tio estava caído no tapete e parecia em pior estado. Gemia sem parar e pedia por socorro, Alice o chutou quando passou por ele em minha direção, ela abaixou e ficamos bem próximos:

- Oi João. Lembra-se de mim? A vaca, puta, lembra-se de mim? – Ela  parecia transtornada e ao mesmo tempo, a satisfação estava estampada no sorriso maldoso.

- Alice, o que você fez?

- Não, eu não fiz nada. Foi você, você fez tudo isso. Você me tornou má. Eu era uma pessoa boa João, você me fez ficar assim.

- Então me perdoe, eu te peço. Se não por mim, pelos meus tios e os outros. O que você deu para esta gente Alice? Veneno?

- Venenos. Pesticidas, misturas que matam plantas e que eles mereciam provar porque estão matando a terra. É bem feito para eles. Tomara que morram todos. Eu não queria que você morresse, não assim...você merecia um final mais lento, queria saber tantas coisas mas deu tudo errado. Errado!

- Alice, Deus me perdoe. - Esta foi minha ultima frase. Depois senti uma picada no braço e desmaiei.


 
O delegado caminhou pela sala e parou na minha frente de cara amarrada. Eu estava  sentado no sofá, minhas pernas tremiam e minha cabeça doía horrivelmente, a visão embaçada não me impediu de enxergar a dura realidade.
Um policial exibiu  sacos plásticos com vários vidros de pós e misturas. Até duas pequenas aranhas em potes de vidro, mexendo as patinhas peludas e letais foram encontradas no meu celeiro. Não tinha a menor idéia de como tinha voltado pra casa, a última coisa que me lembrava era a conversa com Alice. Aquela maldita:

- João, você ia casar com a filha do homem mais rico da região e ainda por cima ia ser pai do neto dele, porque não esperou um pouquinho? Porque resolveu matar todos? Você não agüentou a pressão? Ele era um tirano, mas ele era louco pela menina. Ia te dar vida de rei.

- Era? Porque era? Estávamos juntos há pouco tempo atrás.

- Estava lá e veio buscar mais veneno? Achou que nunca seria pego?

- Eu não sei... eu estava na casa do meu tio, fiz um café pra nós. Depois disso, eu não lembro de mais nada. Minha noiva! Ai meu Deus! Marina está morta. Eu quero ver minha noiva.

- João, seu tio está morto. Você está vivo e muito bem, quer que acreditemos que beberam o mesmo café e aconteceu um milagre? E este monte de veneno que achamos escondidos na sua fazenda?

- Como acharam? Eu nunca vi isto antes. Foi ela... a filha da puta. Ela voltou.

- Você deu um presépio para o filho do dono da pousada, ele ainda estava com a caixinha com um pó branco nas mãos, encontraram o menino se debatendo e gritando de dor. Fizeram de tudo aqui, mas acabaram transferindo o coitadinho pro hospital na capital. Foi de lá que ligaram para falar que aquele pó era veneno, você encheu de veneno e deu pro  menino. Venenos! Cara! Você é um monstro... Depois toda aquela gente da fazenda, um horror que nunca vi igual.  Vamos levar este cão para a delegacia com cuidado, o povo quer linchar o miserável e sinceramente eu não dou a mínima, o problema é a imprensa. Tem repórter de tudo que é estado.

- Linchar? Mas eu juro que não fiz nada. Armaram pra mim, porque eu faria isso? Vocês não entendem? Foi ela, aquela bruxa maldita! - Comecei a chorar de novo, minha vida estava acabada.

- Isto, chore mesmo porque até seus parentes querem sua cabeça. Vai chorar o resto da vida na cadeia ou no hospício. Olhe que se fingir de maluco pode ser bem pior, vão te encher de porrada em qualquer lugar que você cair.

- Eu juro que não fiz nada, foi aquela mulher! – O delegado não agüentou e mandou o primeiro soco, logo estava no chão levando chutes de todos até um infeliz interceder.

- Tirem este cretino de perto de mim. Assassino! Quer se fingir de doido e fica repetindo maluquices de mulher bruxa.  Vou acabar matando este filho da puta...

Fiquei olhando sem saber por onde começar, eles estavam com todas as provas e riram quando falei de Alice, e eu estava tão confuso que comecei a misturar tudo e já nem sabia se o que havia visto era real. O delegado disse que eu estava louco, talvez eu estivesse mesmo porque tudo parecia distorcido e eu mal me conseguia andar. Os guardas me arrastaram e jogaram no banco de trás do carro, três carros e tantos homens armados para me prender. Logo eu, um completo idiota incapaz de fazer mal a uma mosca, vomitei quando as curvas da estrada começaram a estreitar. A freada brusca logo após a primeira explosão me deixou apavorado, lentamente olhei em direção às minhas terras e vi o imenso fogaréu. Minhas terras ardiam. Minha vida havia acabado. Eu não era mais ninguém. Ninguém.

Ninguém percebeu o moleque  escondido nas sombras enquanto prendiam o assassino, nem quando ele se aproximou o bastante para escutar o diálogo entre João e o delegado. Ninguém viu as risadinhas  de puro contentamento quando arrastaram o culpado. O responsável por toda a desgraça local não falava coisa com coisa, era tudo que eles iriam lembrar daquela prisão e por isso Alice sentiu-se vingada e quase feliz. Quase porque por muito pouco ela não havia perdido o controle, mas agora estava tudo bem e isto bastaria até que ela encontrasse a mãe. Sim. Elas também precisavam ajustar contas, mas levaria algum tempo até a poeira assentar, Alice mentalmente calculava o tempo e fazia planos.

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Não podendo correr o risco de permanecer mais tempo na cidade, roubou um dos  carros do  falecido tio de João e partiu. Na confusão levaria algum tempo para darem falta e  até lá ele não existiria mais.  Alice   planejava tocar fogo no automóvel  em algum lugar ermo antes da próxima cidade.
Fogo. O fogo apagou todos os vestígios e levaria muito tempo até conseguirem provas para condenar João, o  que prolongaria em muito seu tempo na cadeia local. Um inferno e tanto, ela pensava enquanto dirigia, sorriu  muito orgulhosa de si e acendeu um dos cigarros de João.
Alice havia trocado a placa ainda na fazenda e usava as roupas de Marina,a aliança grossa agora  brilhava em seu dedo . Uma moça magrinha, muito bronzeada e bem vestida contornou a rodovia principal e tomou o caminho para outro estado. Ela havia ligado para os antigos patrões e pedido mais um tempo livre, queria acompanhar toda a tragédia e saborear cada detalhe.

Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 02/12/2010
Reeditado em 07/12/2010
Código do texto: T2649467
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