Violação

Travesti

Uma das histórias dela. Desde muito ela andava protegida com uma alteração na personalidade. Um homem protegido. Pela mulher que também era. E que nunca deixou de ser. Aquela mulher era a coragem. Era a faca no punho frágil, mas de homem. Um homem covarde. Que não sabia empunhar a sua espada. Era a mulher que empunhava com os dois pulsos fortes. Sempre perseguida, por causa dele. Sempre desmentida por ele. Sempre defendida por si mesma. Porque ele era menos homem do que deveria. Por ela. Por ela, que era. A ponta do punhal no escuro, dentro da tocaia. Violada e violando aqueles que planejavam a escaramuça. Com a lâmina de sua arma branca. O vermelho escorrendo escorrendo e uma vida pesada indo junto. Secar na areia do deserto. Se tornando a própria areia. A Travesti era ela de longe com seus homens. E com as mulheres destes. Com o veneno nos punhos fechados. Com a fio cortante nos seios. Com a serpente na vagina. Para matá-la. Os velhos e as crianças com as pedras nas mãos. Porque era negra. Só os homens com o coração, com o corpo e com a cópula. Só os homens, e ela não era. Porque o homem se escondia dentro de si. Dentro de sua calcinha. Perto de sua faca de estimação. Essa faca não cortava o homem, o homem que ela queria matar. Numa tarde eu fui sentir o deserto. Me despi. Acendi um cigarro. Mas não fumei. Deixei que a fumaça me embebesse um pouco. A erva. O demônio. Eu esperava um cliente. Uma paixão já antiga. Um pai. Um marido. Meu escravo. Ele vinha a essa hora. Eu estava nu. Numa tarde. Quase noite eu esperava, nua. Deitei, então a areia cobria minhas costas. Minhas pernas. Minha vergonha, que eu não tinha. Porque ali não haviam esposas, nem velhas nem crianças para me violar. O homem que me violaria, eu violando ele, não chegava. A fumaça era o céu violeta. Eu ouvi uns passos mansos na areia. Era ele. Suado, magro e feio. Belo. Tirando a roupa com violência. Me virando com sua boca. A areia colando em seus pelos. E na sua pele. E minha boca naquela boca. Ele se virou. Ele se tonou meu escravo. Por poucos segundos. Porque a nossa volta haviam velhas, crianças e a esposa. Com uma tesoura. Ela gritou. Eu apenas sai dele. E traguei. E a fumaça enegreceu meu céu. Dentro de mim. Também tirei a fumaça. Ela ameaçou. Tão belo. Ela cortou, num clique que eu não ouvi. Pois estava sendo possuída mais uma vez. Pela erva. Procurei a minha calcinha vermelha. A faca lhe fez um buraco. O homem jazia no chão. Sem ele. A tesoura era apontada pra mim. A mulher era feia e vulgar. Suas palavras eram sujas. Mais que a sua calcinha. Porque eu sabia que ela sangrava. Sua menstruação. Eu sentia aquele cheiro. Joguei o cigarro. Já a noite cingindo a vista. Sem a lua. Sem a lua que sumira a muito. Sem nenhuma estrela. A não ser eu. Uma negra brilhando de raiva. Mas uma raiva calma. Como se cada segundo fosse o próprio segundo que era. Porque a erva era assim. Calmamente eu peguei meu vestido branco. E coloquei uma folha daquelas no cabelo. Ela gritava e eu não ouvia. Ele não se mexia. Então chorei a sua morte. E jurei vingar. Lhe beijei. O corpo inteiro. Ela gritava a viúva. Eu também, a viúva negra. As velhas todas e algumas crianças jogaram as pedras. Uns paus, uns poucos socos. Peguei a faca. Na calcinha furada. Ela gritou “degenerado, homossexual, viado e bicha”. E avançou com a tesoura aberta. Como sua vagina suja. Suja de sangue. Dele. A minha faca varou o seu ventre. E sua tesoura passou longe de mim. Mulher tola. Que não sabe empunhar. Que não sabe ser mulher. A faca penetrou seu útero. E o sangue escorria pelos buracos. A sangue que eu a fiz derramar era puro. Porque saiu da minha mão. Por ele. As velhas decrépitas balbuciavam o nome de algum deus e me imprecavam pelas costas. Alarido corriqueiro. As crianças foram quase todas. Ficando os filhos. Que jurei cuidar. Apenas por ele. Os pequenos me ajudaram. Com esgar. Era seu pai. Era sua amante. A fazer o tumulo dele na areia. Cerquei com as pedras que me atacaram. Ele seria identificado pela calcinha furada debaixo de uma pedra. E pela tesoura penetrada na areia. Como eu nele, outrora. A mãe ficou para amanhã. Porque enterrar é um ofício trabalhoso. O fim de um romance. Talvez dois. Seu sangue ali misto ao deserto, como meu corpo no inicio da tarde. Meu sangue escorria abundantemente. Era mais doloroso. Porque sangrava meu coração. Porque era eu quem empunhava a faca. A faca na calcinha. Acendi mais um cigarro. Fui pra casa. Amanhã haveria outro amante. E talvez outra mulher. E haviam os filhos dos enterrados. E havia a vida com toda a violação.

DominiCke Obliterum
Enviado por DominiCke Obliterum em 25/11/2010
Código do texto: T2635945