A velha Abortadeira - A história de Anne Blackwood

O vento noturno carregava o odor melancólico, um cheiro de morte e agonia capaz de congelar qualquer alma viva. O cemitério estava abandonado, cercado por árvores gigantescas e o limbo que tomava conta das lápides frias. Nele as mais ilustres figuras que já andaram pela cidade de Cursed City, descansavam em sono eterno.

Em um passado glorioso a cidade era conhecida como a pérola do oeste. Um lugar onde a vida nunca fora fácil para os homens rudes, endurecidos pelo sol do deserto. Forjados a ferro e fogo, desde pequenos eram disciplinados a manejar com excelência as armas e a encarar com os punhos uma boa briga. Mas a calmaria fora passageira, até que a família Blackwood amaldiçoou a cidade, transformando-a em uma cidade fantasma. Um lugar amaldiçoado onde homens perderam sua mente para a loucura e perversão. Hoje histórias macabras perambulam pelas ruas estreitas, escuras e sombrias, por onde o próprio demônio caminha a procura de novas almas solitárias.

As lembranças já haviam sido esquecidas com as novas gerações, que pouco se importavam com a história da cidade. Mas uma permaneceu, dentre outras não menos importantes. A da velha abortadeira, patrimônio histórico digno de respeito e medo. Esta senhora já fora uma jovem belíssima e desejada, Anne Blackwood, porém por insistência do pai, que julgava que não havia homem á altura de sua única filha, exterminava qualquer galanteio de um jovem rapaz a golpes de chicote, sendo assim ela jamais se casou. No inicio trabalhou como enfermeira, mas logo se especializou em partos. Percebendo que abortar filhos bastardos de jovens desvirtuosas seria muito mais proveitoso, do que auxiliar o parto de futuras mães, escolheu entregar os pequenos a morte precoce, o que de fato era pago um alto valor. Não foram poucos, milhares talvez de pequenas almas, jamais tiveram a chance de crescer, sorrir ou viver. Para ela não havia rancor, nem culpa, não lhe atingia a consciência em saber que o seu rendoso negócio condenava um pequeno ser, ao ser arrancado de um útero ingrato antes de nascer.

Mas Anne era por demais ambiciosa, e descobriu um meio sombrio de enriquecer ainda mais, criou um emplasto miraculoso que prometia a jovens mulheres a juventude eterna. Sua composição era um grande mistério, e logo todas as mulheres da cidade não pouparam grandes quantias de moedas de ouro para obter a formula mágica, denominada emplasto Blackwood. A princípio o emplasto funcionou perfeitamente, mas logo depois fatos estranhos ocorreram, as mulheres desapareciam misteriosamente, outras se transformavam em feras horrendas de face deformada sedentas por carne humana, foram abatidas pelos homens da cidade que logo descobriram o segredo de Anne Blackwood. A principal composição do emplasto eram os fetos abortados triturados e misturados a ervas e outras formulas químicas tóxicas e letais.

Depois de um longo julgamento e ameaças de execução, Anne foi imediatamente banida da cidade. Sendo então o tempo começou a cobrar a sua divida. A jovem lentamente se transformou em uma velha decrépita, com rugas profundas que marcavam a pele flácida, a boca murcha era um risco sem cor, a única coisa vivida ainda era seu olhar desconcertante e violento que causava desconforto a quem os fita-se. Caminhava arrastando sua perna manca pela cidade distribuindo insultos e maldições a quem cruzasse o seu caminho. Solitária, vivia em uma casa isolada nos arredores da cidade, a mesma casa onde seu velho pai faleceu. Sua única companhia incomum eram os cães e gatos, talvez os únicos que suportavam a velha, em silêncio.

Além do tempo, algo mais haveria de cobrar sua divida, as pequenas almas, vitimas dos segredos mais pérfidos dos habitantes da cidade. O silêncio da casa foi invadido por estranhos sons; choros, sussurros, palavras ininteligíveis, todas as noites sem cessar. A velha imaginou que depois de longos anos de isolamento ela havia ficado louca. A cada noite novos fenômenos surgiam, louças quebradas, pequenas mãos ensanguentadas apareciam marcadas nas paredes, pés sombrios caminhavam rápidos pelos cantos da casa, a escuridão a espreitava.

Durante dias, meses e anos, ninguém vira a velha caminhar pela cidade. Foi então que sentiram um cheiro nauseabundo que pairava no ar, perceberam que o odor vinha da casa da velha. Depois de uma semana, poucos corajosos se dispuseram a ir a casa, os que foram encontraram o corpo da velha decrépita entregue aos vermes, a moscas se mesclavam ao ar pesado com cheiro de morte antiga. O cadáver jazia na cama, com os lençóis ensopados de sangue seco na cor ferrugem e um liquido viscoso que brotava das narinas, olhos e boca da morta.

No dia do enterro, não havia ninguém para lamentar a morte da velha, nenhuma flor que pudesse ser lançada, nenhuma lembrança daquela mulher que merecesse ser lembrada. Apenas o coveiro magro e o corvo no alto da árvore, únicas companhias de quem trilhou a vida espalhando a morte a quem não há desejava.

Em determinadas noites, dizem as más línguas que se pode ouvir ao longe o choro de uma criança, diante do tumulo da abortadeira, uma pequena sombra diante de tantas outras, únicas a sorrir ou a lamentar a morte de sua algoz.

Taiane Gonçalves Dias
Enviado por Taiane Gonçalves Dias em 22/11/2010
Reeditado em 23/11/2010
Código do texto: T2630849
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