A CONFISSÃO
Pelican Bay, prisão de segurança máxima – Califórnia
Outono de 1930.
- É o último desejo do homem, não há como negar, mesmo se tratando de um assassino como ele – dizia o diretor Alec Gordon.
O homem era Roy Adams, de Austin, Texas. Conforme seu histórico, tinha 42 anos, tinha sido um próspero fazendeiro e apesar da pouca cultura tinha amealhado uma fortuna considerável. No passado próximo tinha mulher e três filhos. No presente esta no corredor da morte, assassino confesso de todos eles.
- Se ele estivesse em busca de redenção o mínimo que deveria fazer era tirar a própria vida e não buscar o consolo de um padre. A mulher eu até entendo, mas tirar a vida dos próprios filhos? Um cara desses vai arder no inferno – respondeu o guarda enquanto se dirigia para conduzir o padre que aguardava na sala ao lado.
Enquanto caminhava com o padre pelos corredores, o guarda fez questão de alertar sobre o que ele iria encontrar:
- Tome cuidado com este homem, ele não é apenas um assassino. Ele é completamente maluco. Lembro muito bem quando ele chegou, assim que o colocamos isolado em uma cela ele começou a gritar para tirarmos a cama e ficava completamente histérico quando as luzes eram apagadas. Dizia que algo maligno poderia sair de baixo da cama. Ele se atirava contra as grades como um animal selvagem, só parava quando desmaiava de tanto bater a cabeça. Por mim eu teria deixado este animal se matar, mas hoje em dia, com todos estes movimentos dos direitos humanos e estas ladainhas, o senhor sabe como é... O diretor resolveu deixar somente um colchão e autorizou que ele utilizasse uma lâmpada a bateria. Pior que depois disso o maluco nunca mais deu problema, mas nunca se sabe quando se trata de um sujeito desses. Mas não se preocupe que vou ficar ao seu lado.
O Padre Josh apenas assentiu com um leve gesto da cabeça, com a calma característica de quem já estava acostumado a lidar com homens de todos os tipos, mas que quando se depararam com a hora da verdade parecia que voltavam a ser como crianças inseguras, eles buscavam conforto e agressividade era uma coisa rara nestes momentos. Mais alguns minutos e chegaram à cela do prisioneiro.
- Quero falar com o padre em particular – disse Roy.
Rindo do pedido o guarda respondeu: - Isto esta fora de questão.
- Conheço meus direitos, se o padre concordar você não pode impedir. E então padre? Vai negar o último desejo de um homem?
- Pode nos deixar meu filho, vim para dar o último conforto para este homem, e além do mais, não estou sozinho. Há uma força que me acompanha – falou o Padre Josh enquanto olhava calmamente para o guarda.
- Tem certeza padre? Este homem é muito perigoso.
- Tenho certeza meu filho, pode ir que eu ficarei bem.
- O senhor é quem sabe – falou o guarda incomodado enquanto fechava a sela e retornava para seu posto.
A cela era bem pequena, como o guarda havia dito havia um colchão diretamente no piso, uma pia, uma latrina e dois banquinhos feitos de um material leve que parecia plástico. Em um cantinho do piso, acondicionados sobre um jornal havia um álbum de fotografias. Assim que ficaram a sós, o padre retirou a bíblia da batina com a intenção de ler algumas passagens para o prisioneiro.
- Meu filho, estou aqui para lhe ajudar neste momento difícil, você se arrepende dos seus atos?
- Pode ir guardando a bíblia, não estou em busca de perdão, pedi para vê-lo porque quero contar minha história antes de partir – dizia o homem com um semblante que misturava cansaço e resignação.
O Padre Josh guardou a bíblia e com um ar de compreensão, sentou-se em um dos bancos ao lado do prisioneiro para ouvir sua história.
Roy estava com uma aparência desoladora, cada músculo do seu corpo tenso. Sua respiração descompassada demonstrava todo o nervosismo que sentia, como se estivesse prestes a saltar de um penhasco sobre o mar sem ter a certeza se iria sobreviver.
- Eu matei minha mulher. E também matei meus filhos. Matei tudo que eu mais amava na vida.
- Eu sei meu filho, você já confessou isso perante a lei dos homens e agora você...
- Não – um gesto firme do corpo todo. – Não os matei realmente, mas foi tudo culpa minha. Quero lhe contar como tudo aconteceu.
O Padre Josh permaneceu em silêncio. Pensou que Roy estava em um processo de negação devido ao desespero causado por seus atos. Seu cabelo estava desgrenhado, seu rosto muito pálido. Seus olhos refletiam toda a dor que sentia em sua alma.
- Eles foram assassinados. Todos eles. Um a um. Só que ninguém acredita nisso. Se as pessoas acreditassem que certas coisas acontecem, talvez eu pudesse ter evitado.
- Mas se não foi você, quem os assassinou?
- Não se trata de quem padre, e sim de “o quê” os assassinou.
Roy parou de falar e levantou-se subitamente, os olhos fixos na bolsa acondicionada ao lado do padre.
- O que é isso? – ele falou entre dentes. O corpo todo retesado como se estivesse sob a ameaça de uma arma.
- O que é o quê?
- Esta coisa do seu lado que parece um saco.
- A bolsa? – disse o Padre Josh. – É o que eu uso para guardar minha batina e outras...
- Abra. Eu quero ver.
O Padre Josh, em meio a um suspiro de complacência abriu a bolsa e a virou para Roy. Lá dentro havia somente a carteira do padre e algo que parecia uma bíblia de bolso. Era tudo.
- Esta tudo certo? – questionou o Padre Josh.
- Tudo certo. – Após um breve momento de hesitação Roy voltou a sentar.
- Você estava dizendo como seus entes foram assassinados.
- Não tente me pressionar. – Disse Roy enquanto lançava um olhar cheio de ódio – Vou lhe contar tudo, não se preocupe. Não sou como estes assassinos sem escrúpulos que você esta acostumado a ouvir, dispostos a mentir que estão arrependidos em busca de remissão de seus pecados. Não tenho nada a perder, já me tiraram tudo que importava. Sei que provavelmente não irá acreditar em mim. Mas não dou à mínima. O simples fato de contar já vai ser suficiente.
- Muito bem, minha missão é ouvi-lo independente do que disser – disse o Padre Josh em meio a mais um suspiro.
- Eu me casei com Sally muito jovem, éramos namorados desde a adolescência e ela havia engravidado. Nossas famílias eram muito conservadoras e tivemos que casar rapidamente para ninguém perceber. Mas não é o que você esta pensando, não foi um fardo e sim uma dádiva porque nós nos amávamos. O pequeno Peter era lindo e eu estava muito orgulhoso. Éramos uma família feliz.
- Sally engravidou novamente pouco depois de Peter ter nascido e Rose nasceu cheia de saúde e com os olhos azuis da mãe. Liz nasceu uns três anos depois, mas a essa altura meu querido Peter já tinha morrido. Tem gente que acha que quando os filhos nascem começa a enfraquecer o amor entre marido e mulher, dependendo de alguns aspectos não deixa de ser verdade. O senhor não acha?
Padre Josh deu um suspiro evasivo.
- Mas o que isso importa? Não é mesmo? Problemas todo casal tem e no fim das contas éramos felizes – disse isso em um tom tão baixo que parecia que falava consigo mesmo.
- Roy, quem matou eles?
- Um demônio – Roy respondeu de imediato – Um demônio matou todos. Simplesmente apareceu e os matou – ele se virou para o padre e sorriu, mas era um sorriso estranho. – O senhor acha que sou louco. Nem precisa dizer, esta estampado na sua cara. Mas pouco me importa se você acredita ou não.
- Estou ouvindo meu filho.
- Começou quando Peter tinha uns dois anos e Rose era apenas um bebê. Ele chorava muito quando Sally o colocava na cama. Morávamos em uma casa grande e Rose dormia num berço no nosso quarto. Primeiro achei que ele chorava porque não estava acostumado a dormir sozinho, passou muito tempo no nosso quarto quando nasceu, sabe?
- Depois de algum tempo, como ele não parava de chorar, eu mesmo o colocava na cama. Na maioria das vezes tinha que lhe dar uma palmada. Ele não falava quase nada, mas ficava repetindo “luz” a toda hora, eu não sei se era bem isso, mas Sally garantia que sim e tem coisas nas crianças que só as mães entendem. Nunca duvide disso.
- Sally insistiu para que eu deixasse as luzes acesas, um abajur, ou algo do tipo. Eu não deixei. Acreditava que se uma criança não consegue superar o medo do escuro quando é pequena, nunca conseguirá.
- Na manhã do dia seguinte o encontramos na cama deitado de bruços, todo o corpo envolto num verdadeiro mar de sangue. Ele havia sangrado pela boca, nariz, ouvidos e até os olhos. Os médicos atestaram que ocorreu um distúrbio grave na coagulação do sangue que culminou numa crise hemorrágica fulminante. A polícia acreditou, e confesso que na época eu e Sally também.
Roy começou a chorar, não era um pranto alto, mais parecia um gemido débil e sincopado. Permaneceu assim por vários minutos parecendo buscar forças para continuar. Padre Josh não encontrou as palavras certas para dizer, por fim ficou em silêncio e apoiou levemente a mão no ombro de Roy num gesto que nem ele próprio entendia muito bem o que significava.
Secando as lágrimas, após um longo suspiro o homem continuou:
- Nos mudamos. Simplesmente não conseguimos mais permanecer naquela casa, achamos que iria ajudar, mas não foi o que aconteceu, pois a lembrança de um filho perdido nos acompanha. É algo que fica no nosso coração, na nossa alma. Sabe aquela história que dizem que quando os pais perdem um filho eles só continuam vivendo se tem outros filhos para criar? Afirmo-lhe que é a mais pura verdade – disse ele em um tom de conformidade.
- Sinceramente, não sei o que lhe dizer – disse o padre em meio a um suspiro.
- Não precisa falar nada, como eu disse no início, somente me escutar até o fim será o bastante.
O padre apenas assentiu com a cabeça.
- Sou um homem de convicções fortes, mas Sally não abriu mão de Rose dormir no nosso quarto daquela noite em diante, e uma coisa eu lhe aconselho: nunca tente desafiar uma mulher que esta defendendo a prole. Quando Liz nasceu foi a mesma coisa, tive que comprar uma cama maior para caber nós quatro.
- Os anos passaram e nessa altura Rose já estava com cinco anos de idade, nada de anormal tinha acontecido até então e com muito custo convenci Sally que ela deveria dormir no seu próprio quarto. Não atendi ao pedido de Peter, mas com Rose foi diferente. Quando ela me pediu para deixar as luzes acesas foi o que eu fiz.
- Ela já estava dormindo a uma semana no seu quartinho, até que aconteceu o sinal que eu mais uma vez não consegui identificar. Quando fui lhe dar um beijo de boa noite ela falou: - Feche bem o roupeiro papai, sinto que à noite algo ruim fica ali dentro me espiando. – Mais uma vez, achei que era coisa de criança. Afinal, qual a criança que não tem medo de alguma coisa no quarto durante a noite? Fui até o roupeiro e me certifiquei que ele estava bem fechado, com direito a uma performance teatral como se eu fosse um príncipe trancando um dragão numa caverna. Rose sorriu da minha atuação. E foi a última vez que vi o sorriso dela. Foi a última vez que vi minha princesa com vida.
Agora Roy soluçava em verdadeiro desespero.
- Aquela noite caiu uma tempestade e houve queda de luz durante a madrugada. Acordei com um grito aterrorizado de Rose e vi a casa envolvida na mais completa escuridão. Corri até seu quarto, vi a janela estilhaçada e nem sinal da minha filhinha. Tomado pelo desespero vasculhei o quarto com os olhos em meio à penumbra, foi quando notei que o roupeiro estava com uma porta semi aberta. Eu já estava desviando o olhar quando o clarão de um relâmpago iluminou o quarto por um breve momento. Foi durante este átimo de tempo que eu o vi. Algo de dentro do armário me encarava com um sorriso bizarro no rosto. Ele tinha os olhos completamente escuros e seus dentes... seus dentes lembravam dentes de tubarão. Quando me encarou senti como se toda a tristeza do mundo estivesse dentro do meu peito.
- Demônios não existem meu filho – falou o Padre Josh, ao mesmo tempo em que sua expressão corporal traia suas palavras ao se flagrar inconscientemente fazendo o sinal da cruz.
- Pois eu penso justamente o contrário padre, hoje eu tenho certeza que demônios existem. E se eles existem, esta é minha única esperança que Deus também possa existir – falou Roy dando sinal que já tinha se recomposto para continuar sua história.
- Após aquele hiato de breves segundos, corri em direção ao roupeiro em busca de Rose, mas já não havia nada além de roupas ali. Fui até a janela e vi minha pequena, seu quarto era no segundo andar e ela estava caída no gramado com o corpo numa posição impossível, pois estava de bruços enquanto seu pescoço havia girado completamente sobre o próprio eixo.
- Novamente a polícia acabou concluindo que havia sido uma fatalidade, que ela deve ter se assustado por algum motivo por causa da tempestade e em desespero acabou se atirando pela janela. Eu disse a eles o que havia no roupeiro, mas é claro que não acreditaram em mim. Os médicos falaram que eu havia entrado num surto, que estava em choque devido à perda de dois filhos de modo absurdamente traumático.
- O pouco de mim que ainda teimava em estar vivo morreu neste dia. E o pior de tudo é que agora eu tinha certeza que esta presença maligna havia escolhido minha família para aniquilar. Eu simplesmente não sabia o que fazer. O senhor tem idéia de como um homem se sente ao se ver impotente para defender sua família, ou melhor, o pouco que restava da sua família? Tentei de tudo, mas a partir daquela noite ele começou a aparecer na minha mente enquanto eu dormia. Ele sorria e dizia coisas do tipo: eu estou esperando... tenho todo o tempo do mundo... vou lhe deixar viver, mas elas não...
- E aconteceu exatamente como ele falou. Foram anos depois, quando Liz estava com quatro anos de idade que ele conseguiu. Eu havia saído pela manhã para uma entrega na cidade vizinha e quando fui retornar a ponte estava bloqueada... não me pergunte como, mas ela havia sido destruída num acidente. Fiz de tudo para voltar antes do anoitecer, mas quando cheguei a casa estava escura e Sally e Liz... bom, basta dizer que eu as encontrei deitadas na cama ainda abraçadas como se estivessem dormindo, mas com filetes de sangue escorrendo dos olhos através da face, estavam com a pele roxa como se estivem sido asfixiadas. Foi isso que a polícia concluiu: morte por asfixia.
- Desta vez o desfecho foi um pouco diferente, pois quando perguntaram o que havia acontecido eu simplesmente falei que as havia matado. Que havia matado toda a minha família. Porque no fundo, para mim foi isso mesmo que aconteceu.
Roy suspirou, não foi um suspiro qualquer, mas sim a sensação de um homem que tinha conseguido fazer a única coisa que queria ou que estava ao seu alcance fazer.
- Sei que o senhor deve continuar achando que eu sou louco padre, mas fiz a única coisa que estava ao meu alcance fazer. Alerte as pessoas padre, o senhor é um homem de Deus, esta coisa ainda vai continuar por aí destruindo famílias. É muito tarde para a minha, mas talvez algo possa ser feito para salvar outras crianças.
Padre Josh estava com um ar de compaixão pelo homem, apenas isso, mas quando estava prestes a dizer para Roy que não acreditava, algo nos olhos dele lhe deu a certeza que falava a verdade, pois o que ele viu naqueles olhos foram apenas tristeza e impotência.
- Padre, eu lhe imploro: um pai tem o direito de proteger seus filhos, tiraram isso de mim. Não deixe que tirem de outros. Acredite em mim.
Após um breve momento de introspecção, o padre falou com convicção: - Meu filho. Eu acredito em você, e a partir de hoje serei um guerreiro de Deus contra este mal.
Não foi preciso dizer mais nada. Simplesmente se abraçaram e Padre Josh pediu desculpas por não poder fazer mais nada para ajudar Roy.
Pouco tempo depois o guarda já estava em frente à cela com cara de poucos amigos aguardando a saída do padre.
Já estavam se afastando quando Roy agarrou as grades e falou:
- Não se esqueça do que eu lhe falei padre. Ajude as crianças.
- Tenha certeza disso meu filho, e que sua alma encontre paz.
Já estavam a um bom tempo caminhando pelos corredores, próximo a uma ala escura e isolada quando o guarda não se conteve:
- E então padre? Não vai me dizer que acreditou na inocência deste maluco assassino.
Estavam ingressando na penumbra quando o Padre Josh respondeu:
- Existem mais mistérios entre o céu e a terra do que a gente pode imaginar, este homem sofreu coisas inimagináveis. Às vezes nem tudo é o que parece...
- Tem razão padre, nem tudo é o que parece – falou o guarda enquanto vinha em sua direção.
Ao se virar, Padre Josh reparou pela primeira vez que o guarda parecia ter dentes de tubarão...
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