O MESTRE
Nunca fui muito adepto às tendências tecnológicas, mas confesso que alguns adventos ajudam, e muito, a minha vida, sobretudo nas questões profissionais. Bem, pelo menos era isso o que eu pensava até perceber que o GPS do carro não correspondia às expectativas depositadas sobre sua capacidade.
O mais estranho era que a tela, num instante, funcionava perfeitamente bem, mas no outro simplesmente se mostrava tão nula quanto a minha compreensão a respeito daquele lugar. Ao olhar para aquele fundo negro, confesso que nunca senti tanto a falta de um mapa. Maldita hora que resolvi abrir mão de uma vaga na comitiva do jornal, para me aventurar nesse fim de fim de mundo por conta própria.
Naquele momento, eu só achava que fazer a cobertura do bendito rally daria muito mais trabalho do eu poderia supor. Porém, quando resolvi tomar o rumo daquela estrada empoeirada, eu mal podia imaginar que trabalhar no evento seria a menor das minhas preocupações.
O caminho era estreito, e, quanto mais eu me aprofundava nele, mais ficava intrigado com a imagem refletida no espelho retrovisor. Parecia que o espaço às minhas costas mal seria capaz de comportar as dimensões do veículo. Que diabos de ilusão de ótica seria aquela? Mas, não se tratava de nenhuma miragem, pois, ao colocar a cabeça pelo vão da janela, pude constatar que, de fato, a estrada se afunilava conforme eu passava!
Rodei por mais de uma hora, isto é, se o meu relógio estivesse realmente funcionando corretamente. Eu não tinha certeza disso, porque o aparelho celular, além de não acusar um mínimo de recepção, ainda revelava um turbilhão de dígitos desconexos no display.
Mas não havia como retornar. Um espesso matagal havia tomado conta do caminho por onde vim. Só era possível seguir em frente, através da escura e, aparentemente sem fim, trilha barrenta.
Segui por mais não sei quanto tempo. Já começava a achar que não chegaria a lugar algum. Para piorar, os solavancos do carro indicavam que o combustível estava no fim. Pelo menos nessa evidência era possível confiar, porque os ponteiros do painel já não serviam para absolutamente nada.
No entanto, quando parecia que o meu destino seria ficar preso naquela estrada, surgiu uma luz ao longe. Literalmente. Era um clarão enorme no meio do nada. Um círculo de fogo envolto pela mais completa escuridão.
Com o fim da gasolina, precisei abandonar o veículo e seguir o restante do percurso à pé. Pelo menos a lanterna que peguei no porta-luvas demonstrou boa vontade e não se opôs em me emprestar seu olho luminoso.
A noite estava terrivelmente quente, não havia uma só brisa a balançar as folhas da vegetação. A presença da lua num céu livre de nuvens proporcionava uma iluminação extraordinária à frente. Na verdade, parecia que uma rota natural era apontada até o ponto brilhante, o qual, para a minha surpresa, acabou por revelar-se como as luzes de um povoado.
Não sei, mas foi só constatar que a bola de fogo era, na verdade, uma cidadezinha, para que uma estranha sensação se apoderasse de mim. Sabe aquela impressão de que algo nos espreita sem que consigamos definir, ou mesmo enxergar, o que é? Pois bem, era exatamente isso o que eu sentia.
Não precisei de outro estímulo para transformar meus passos acelerados em desabalada corrida. Quando percebi, o cansaço da mal fadada viagem havia abandonado meu corpo. Algo me dizia que se eu não ignorasse as súplicas dos meus músculos, eu teria muito mais a lamentar do que uma simples fadiga.
Ao chegar às portas da cidade, senti o peso do mundo sobre os ombros. O ar teimava em não querer preencher meus pulmões. Com as mãos nos joelhos e a cabeça baixa, demorei a perceber o inimaginável adorno sobre o portal de entrada, e, ao notá-lo, não consegui manter o equilíbrio diante de tamanho susto.
Sobre a mureta estavam inúmeros crânios, muitos mesmo. No centro da armação estava uma outra cabeça óssea, maior, e com algumas particularidades, embora não diferenciasse muito dos contornos humanos típicos. O maxilar apresentava uma inegável deformação, e a mandíbula escancarada exibia duas fileiras de dentes longos, aguçados e perfeitos. Ao mesmo tempo em que o adorno recepcionava os visitantes, também deixava clara a mensagem de que o ato de cruzar aquela passagem compactuava com a aceitação incondicional dos riscos inerentes ao processo.
Mas, não tive escolha. Era tarde demais para retornar. Além disso, o perigo insinuado de maneira velada por aquele crânio não poderia ser maior do que aquele que pressenti por conta do que estava encoberto pelas trevas na estrada.
Resignado, entrei nos domínios da cidade. Muitas pessoas aglomeravam-se ao redor de um coreto. A julgar pelas dimensões do povoado, não seria exagero supor que todos os habitantes locais estivessem ali. Mesmo sob os olhares curiosos, não fui hostilizado, pelo contrário, uma calorosa recepção me abraçou. Inclusive, tive a oportunidade de me encontrar com o prefeito, o qual era muito mais do que uma referência política, ele era um líder natural da comunidade.
Apesar da aparente juventude, compreendi, através de suas próprias palavras, que naquele local, um homem se fazia cedo, com a ajuda dos céus e com o fio da faca.
O motivo das inúmeras tochas, o tal sinal luminoso que avistei da estrada, era por conta do ritual local denominado Candança. Uma espécie de celebração de agradecimento, mas que naquela ocasião assumia, também, uma outra função. O rito seria a preparação para um grande desafio, uma caçada, na realidade.
O prefeito me disse que aquela Candança em especial seria um evento muito importante, além de perigoso. A ameaça respondia pelo retorno do chamado Mestre, após um período de treze anos. Ele desejava retomar o que havia perdido.
Devo dizer que não enxerguei uma só gota de medo nos olhos daquelas pessoas. Homem ou mulher. Velho ou novo. Nenhum deles parecia temer o que estava por vir. Talvez, estivessem apenas tentando exorcizar os próprios fantasmas com todo aquele festejo e destemor. Era uma possibilidade, e eu estava muito inclinado a acreditar nela.
Não tardou para que eu fosse envolvido pelo tom cativante da celebração. Por alguns instantes, as preocupações a respeito do caminho errado, do trabalho por fazer e tudo mais, ficaram em segundo plano, quase esquecidas para ser mais exato.
Porém, enquanto eu girava no meio da praça, embalado pela sonoridade de flautas e tambores, não percebi que a maior parte das pessoas já não estava no local. Os que haviam ficado conferiam a munição das espingardas e o fio das lâminas.
Já não existia felicidade naqueles rostos. As feições carregadas deixavam transparecer muito mais do que apreensão. Elas exalavam ódio, na essência mais pura da palavra. Não sei o que eles pretendiam caçar, mas a julgar por aquela cena, muito sangue estava prestes a jorrar.
Confesso que a coragem nunca foi uma das minhas virtudes, mas o ambiente formado por aquela situação fez despertar em mim o instinto básico do jornalismo. Tudo bem que eu era um repórter esportivo, mas a ânsia pela elucidação dos fatos corria em minhas veias. Eu não poderia perder a oportunidade de testemunhar, e registrar, seja lá o que fosse acontecer.
Como se adivinhasse minhas intenções, o jovem prefeito insistiu para que eu os acompanhasse na empreitada. Ora, eu não perderia aquilo por nada nesse mundo. No entanto, quando já estávamos cercados pela vegetação espessa, tendo somente a lua como testemunha, não posso negar que senti uma pontada de arrependimento.
Meu coração estava disparado. Juro que era possível ouvir o som oriundo do meu peito. As batidas funcionavam como um dueto em compasso com o farfalhar do matagal. O receio do desconhecido é uma das piores sensações que podemos experimentar. A contração involuntária dos músculos prejudicava, e muito, o meu avanço em relação aos demais. Eu sabia que algo estava prestes a acontecer, só não sabia quando.
Percebi um movimento às minhas costas, instintivamente me abaixei. Então, algo cruzou o ar sobre o local onde eu estava. Ouvi um grito. Em seguida, um urro. Mas não foi um simples urro. Assemelhava-se mais a um som proveniente das profundezas do inferno. Gritei, mas meus apelos não se comparavam àquela sinfonia de terror. Com as mãos sobre os ouvidos, tentei evitar que meus tímpanos fossem rompidos por tamanha bestialidade.
Tiros, muitos tiros foram efetuados. Procurei ficar abaixado para não ser atingido. Eu chorava como uma criança apavorada. Vozes exaltadas misturavam-se ao som dos disparos. No entanto, o ruído que se destacava era o proferido pela criatura.
Estava escuro, muito escuro, mas ainda assim eu conseguia descrever as silhuetas humanas em meio ao matagal. Algo grande e esguio se lançava sobre os homens. Seus movimentos decepavam membros. Sua cabeça abria caminho na fragilidade do corpo dos seus agressores, ou seriam vítimas?
A criatura continuava a ser alvejada por todos os lados, mas não se intimidava ou recuava, pelo contrário, parecia que ganhava mais ânimo, mais força, conforme os projéteis se instalavam em seu corpo.
Notei um movimento num arbusto à minha frente, era um dos caçadores que se debatia em agonia. Mesmo apavorado, senti que deveria ajudar. Ele estava em choque. Agarrei seus braços e puxei. Ele não se moveu. Investi mais uma vez, mas a resistência aumentou. Então, eu vi. O homem estava sob o domínio da criatura, ela o devorava vivo.
Senti uma vergonha imensurável. O mais vil dos homens. Os braços fortes do egoísmo se apoderaram da minha alma, fazendo com que eu largasse aquele ser humano à própria sorte. Mas não havia como lutar, não contra o que vi no reflexo daqueles olhos. Aquilo era a morte, e contra a morte não há escapatória. Então, corri. Corri, pois não havia mais nada a fazer. O sentimento de auto-preservação me impulsionava. Não olhei para trás, não tive coragem para isso.
O desespero me levou às margens de um rio. De lá, pude acompanhar o tormento incessante em forma de gritos, dor, disparos, urros e morte. O caminho estava bloqueado pela ameaça em forma de garras e dentes. Pensei em me atirar nas águas escuras, mesmo sabendo que tal ato significaria a inevitável morte nas profundezas. Não havia como nadar até a outra margem.
Ainda assim, permaneci na dúvida por algum tempo, mas como disse antes, a coragem nunca foi uma das minhas qualidades. Com isso, decidi permanecer onde estava e esperar por um milagre. Foi quando me lembrei do pequeno gravador na mochila, e achei por bem relatar tudo nele. Se eu não sobrevivesse, o que era bem provável, alguém que viesse me procurar poderia ter a sorte de encontrar o relato contido no aparelho e, com a mente limpa, entender o ocorrido.
Desabafar com a pequena caixa serviu como um alento para minha alma. Envolto pelas palavras, não percebi que o movimento na vegetação havia cessado, assim como todos os indícios sonoros da batalha. O silêncio imperava. As primeiras luzes de um novo dia ameaçavam surgir. Um par de lágrimas escorreu pela superfície marcada do meu rosto, um misto de estarrecimento e alívio.
Pensei em milagres, pois parecia que eu estava experimentando um naquele momento. Agradecido, postei-me de joelhos no terreno pantanoso. Depositei a mochila ao meu lado, bem como o gravador, o qual ainda capturava os ruídos do ambiente.
Ainda na mesma posição, percebi que não estava só. Comecei a tremer descontroladamente. Eu pedi! Implorei aos céus para que os contornos de um homem de bem surgissem daquele redemoinho de horror. Mas, como se o destino debochasse da minha dor, o que surgiu diante de mim fez com que eu me arrependesse amargamente de não ter tentado uma sorte improvável nas águas infinitas.
À primeira vista, a criatura não diferenciava muito de um homem comum. Porém, mesclados a sua fisionomia, estavam traços animalescos evidentes. O ser trazia um fêmur ensangüentado entre os dentes. Uma perna, ainda revestida por carne, era arrastada por uma de suas patas. Ele arfava ruidosamente e, mesmo de longe, seu odor putrefato empesteava minhas narinas.
Ele caminhava pausadamente em minha direção, parecia que não havia pressa em seus movimentos. A batalha estava ganha. Eu não representava a menor ameaça para ele. Como eu gostaria de ter uma arma. Perna e osso foram abandonados. Certamente, ele me considerava uma refeição muito mais agradável, um prêmio pela vitória.
As últimas horas me transformaram no mais religioso dos homens. Iniciei uma prece fervorosa, mesmo sem ter a convicção de salvação. Fechei os olhos, não queria ver mais nada.
Não cheguei a dizer “amém”...
Um estampido estrondoso ribombou no ar. Senti o toque de um líquido quente e pegajoso. Abri os olhos. A criatura jazia à minha frente, a menos de um metro de distância. Uma verdadeira cratera se mostrava em sua nuca. O autor do disparo caminhava vitorioso até mim, era o prefeito. O garoto havia conseguido. Eu estava a salvo, afinal!
Ele me deu a mão, no intuito de me ajudar a levantar. Agradeci imensamente por sua presença na hora exata. Ele me disse que tal fineza não era necessária. Continuei a agradecer assim mesmo.
O rapaz acendeu um cigarro e me ofereceu outro. Nunca fumei em minha vida, mas o acompanhei de qualquer modo. Enquanto decapitava a criatura, ele me perguntou se eu compreendia o que havia acontecido. Dei de ombros, pois, de fato, tudo ainda estava muito confuso.
O garoto riu e, entre uma tragada e outra, me disse que para a Candança funcionar, era preciso um pequeno detalhe. Então, com a palma da mão estendida, ele me apresentou uma descomunal bala prateada.
“Só isso o abate com eficiência”, ele me disse.
“Um tiro certeiro na cabeça”, complementou.
A cabeça da criatura foi posta numa sacola de pano, enquanto a bala era devolvida ao rifle.
O prefeito sorriu e, mesmo desconfortável, também sorri. O sol derramava seu esplendor num amanhecer totalmente oposto ao terror da noite passada.
Quando eu me preparava para recolher os pertences do chão, fui surpreendido por um questionamento enigmático. O rapaz me perguntou se eu sabia o porquê da criatura ser chamada de “Mestre”.
As palavras não quiseram sair da minha boca. Ele continuou. O demônio é chamado de “Mestre” porque sempre há um discípulo. Aquela cabeça que você viu na entrada da cidade era a do último aprendiz. Agora, treze anos depois, ele retornava para reclamar um novo aluno. Sabe quem seria este?
Temi, pois a resposta se formava em minha mente. Assim como a certeza do que estava para acontecer.
“Você! Sempre foi você, desde o início”, ele afirmava.
Ele me disse que a criatura havia me escolhido na estrada, e que seu chamado silencioso tornara confusa a minha percepção acerca da realidade.
“Você foi guiado pela lua no meio da escuridão, não foi?” Assenti com a cabeça. Ele riu.
“Só as bestas noturnas são capazes de tal feito”, sentenciou.
Eu quis perguntar sobre o que aconteceria, mas não consegui. Seu ato seguinte já serviu como resposta. A bala de prata encontrava morada em minha cabeça.
Antes de a escuridão absoluta me dominar, fui assaltado por uma última inquietação: a de que, provavelmente, o gravador, como todos os outros dispositivos, também não estivesse funcionando...