O senhor dos Mortos - Prólogo

Fato

No dia 27 de agosto de 1983, o italiano Guillermo Vicenti, maníaco homicida conhecido pela alcunha de “O Violador” foi condenado a 10 anos de prisão por roubo, posse de arma e estupro. Apenas algumas semanas depois foi novamente julgado, sendo dessa vez considerado culpado pelo assassinato de 32 mulheres, entre elas, sua companheira, Cristina Diacomo, cujo couro cabeludo foi completamente arrancado e que teve suas partes intimas removidas e guardadas em um vidro com formol. Na casa de Guillermo foram encontradas partes de outros 22 corpos, entre elas, pernas, braços e dedos, em avançado estado de decomposição, todos guardados em um antigo baú de madeira, embaixo da cama do assassino, desprovidos de qualquer vestígio de sangue. Guillermo foi condenado à morte, sentença essa que foi cumprida no dia 19 de abril de 1985. Seu ultimo pedido antes da execução (que jamais foi atendido) foi besuntar-se em um litro de sangue de porco. No dia 22 de Abril de 1985 o corpo de Guillermo desapareceu do necrotério estadual da Carolina do Sul e jamais foi encontrado.

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"Abriram-se os túmulos e muitos corpos santos que estavam mortos ressuscitaram, e saindo dos túmulos depois da ressurreição de Jesus, entraram na cidade santa e apareceram a muitos."

Mateus: 27:52-53

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Prólogo

Por que, afinal de contas, nutrimos a crença insubstancial no sobrenatural? O que busca o ser humano, senão a compreensão total daquilo que lhe é, a primeira vista, incompreensível? Por que buscar a razão em territórios obscuros, onde na maior parte do tempo não há sequer a lógica irrefutável da própria razão? Essas foram apenas algumas, das muitas perguntas que me atormentaram desde a minha tenra infância.

Compreensível;

Se pararmos para analisá-la a fio, pesando os prós e os contras.

A propósito...

Meu nome é Gabriel.

E eu sou um vampiro.

Perdoem-me pela forma um tanto quanto rude de dar inicio a essa narrativa, mas acredito que não haja qualquer termo, em todo o globo terrestre, ou mesmo fora dele, nos confins inexplorados do universo, que sequer se assemelhe a tal e que seja suficientemente amplo para qualificar a criatura na qual eu me tornei.

Egocentrismo? Talvez.

Imaturidade? Provavelmente.

Ignorância?

Não... Em absoluto... Não.

Possuo cabelos negros e encaracolados, amontoando-se nos cantos de meu rosto bem delineado em pequenos e desorganizados ninhos. Meus olhos são tão negros quanto uma noite sem estrelas, e meu rosto é magro e ligeiramente bronzeado. Possuo aproximadamente um metro e oitenta e cinco de altura, ombros largos que fazem companhia aos braços fortes e de músculos bem trabalhados. Não sou uma massa definida de musculatura, mas não me abstenho em dizer que também não sou nenhum raquítico anormal, de pele extremamente branca, olhos azuis e cabelos loiros, como a maioria dos vampiros apresentados nas telas do cinema e nas paginas dos inúmeros romances que possuem essa temática.

Sou oriundo do século passado. Nasci precisamente no dia 7 de fevereiro de 1925 em um casebre com paredes feitas de barro, moldadas ao chão de terra batida e teto de palha, em uma pequena cidade do interior do estado de São Paulo, chamada “Santa Clara”. Lá vivi a maior parte da minha infância, antes de me integrar as forças armadas do exercito brasileiro. Do pouco que ainda consigo me recordar, puxando pela memoria cada dia mais precaria, foi um periodo tranquilo de minha vida. Simples, por que não dizer gratificante? Não vivíamos de regalias, pois éramos, além de tudo, mais uma entre as inúmeras famílias pobres que habitavam aquela pacata cidadela. Vivíamos basicamente da ordenha de vacas e da plantação de cana. Era assim com a nossa família, com a família de nossos vizinhos, e dos vizinhos de nossos vizinhos. Mas não é o meu passado que importa (ao menos, não por enquanto) e sim o presente. Prometo me ater a ele o máximo que conseguir para não tornar a historia monotona ou demasiadamente cansativa.

Sou o que meus companheiros de espécie costumam de chamar de "Criatura Recente" ou "Filho da Nova Era". Essa é a maneira como tratam as criaturas nascidas fisicamente a menos de três séculos atrás, durante o periodo estabelecido por estudiosos como “a época negra dos vampiros”, sobre o qual falarei um pouco mais posteriormente. Talvez soe um pouco arrogante, num primeiro momento, mas não os culpo por isso. Apesar da curta experiência, possuo bagagem suficientemente ampla para compreender melhor o intelecto apurado de seres tão fascinantes como aqueles que me julgam, ainda que prematuramente.

Hoje não me encontro mais em território Brasileiro. Fugi de meu país de origem, assim que comecei a ser caçado pelos nativos. Os mesmos que me acolheriam tão calorosamente bem, em um futuro não muito distante, quando eu retornasse ao meu amado Brasil, trazendo comigo riquezas de valor inestimável, frutos de minhas andanças e descobertas pelo mundo. Também não me transformei na criatura que sou hoje em território brasileiro. Pelo pouco que sei sobre nossa espécie, não existem vampiros tipicamente brasileiros. Os que ali convivem nos dias atuais, vieram da Europa e da Ásia em grandes caravelas, ainda no inicio da colonização pelos portugueses. No inicio aglomeraram-se e formaram uma sociedade quase civilizada, se não fosse o estranho e soturno habito de sorver sangue. Com o passar do tempo, novos "irmãos" se juntaram aos antigos e a sociedade se expandiu por todo o território nacional, formando uma grande e organizada cadeia de sugadores de sangue.

Durante muito tempo reinamos secretamente, mas ainda assim soberanos, influenciando diretamente em decisões importantes, desde a época da recém descoberta "Terra de Vera Cruz" até o final do primeiro reinado, com a abdicação de Dom Pedro I, em 7 de Abril de 1831. Participamos direta e efetivamente do período de povoamento, de 1500 até 1530. Também participamos do ciclo da cana de açúcar e do ciclo do ouro. Foi exatamente nesse ponto da historia que muitos dos conceituados vampiros dos dias atuais obtiveram suas riquezas. Enquanto os humanos limitavam-se a coleta e transporte do "pau-brasil" em rápidas expedições pela mata densa e fechada, nos nós ocupávamos da exploração mineral, extraindo as riquezas escondidas naturalmente nas grutas e cavernas. Nossa ultima influencia importante nos país deu-se no dia 13 de maio de 1888, com a assinatura da Lei Áurea por parte de Dona Isabel Leopoldina de Bourbon e Bragança, comumente mente conhecida como "Princesa Isabel".

Alguns anos mais tarde nossa espécie seria assolada por uma praga de proporções catastróficas, que dizimaria pelo menos metade dos sugadores de sangue que outrora se aventuraram a viver em terras coloniais. Entre eles, a própria princesa Leopoldina, que viria a falecer no dia 14 de novembro de 1921. Mas foi bem antes deste fato que nosso "império particular" começou a declinar. Em meados de 1900, os poucos que ainda enfrentavam a doença que ficou conhecida como "A Peste" (uma variante da peste bubônica, que assolou a Europa durante o século XIV e acabou com aproximadamente 75 milhões de vidas humanas) passaram a viver como a maioria dos de nossa espécie, nos dias atuais; Escondidos em porões, antigas construções, mausoléus, cavernas e criptas abandonadas em cemitérios. Apesar de não ter ser criado durante esse periodo, atualmente convivo como uma dessas criaturas. Habito um porão decrepto, escondido sobre os restos mortais de uma antiga igreja que sobreviveu parcialmente aos ataques das forças inimigas, durante a segunda guerra mundial. Escrevo esse romance para apresentar-me a humanidade não como um ser incompreensível, que povoa o imaginário, com poderes sobrenaturais que se encontram além da compreensão humana, mas sim como alguém que, assim como vocês, tem (ou que algum dia já teve) alma. Alguém que vaga pelas noites obscuramente modernas, mas ao mesmo tempo clássicas, de Paris, buscando o elo há muito tempo perdido, cuja principal responsabilidade era ligar-me ao mundo que me fora renegado há muitos anos. A monotonia se fez presente, se não completamente, mas ao menos parcialmente, em minha vida, durante essa busca desenfreada pela razão de minha fútil e insignificante existência. Mas antes, uma breve explicação sobre o que é ser uma criatura da noite, nos dias modernos.

Antes de qualquer coisa, esqueça tudo o que você aprendeu vendo aos filmes, lendo os livros e as historias em quadrinhos de terror e ficção cientifica. Bom... Ao menos grande parte disso tudo. Somos semelhantes aos personagens de livros, radio-novelas, Hqs e etc., somente em alguns poucos aspectos. Tomarei o cuidado de frisá-los, com o decorrer dessa historia.

O fato mais importante de todos, talvez seja a tão falada aversão à luz. Sim. Nos a possuímos. Infelizmente não sou dotado de todo o conhecimento necessário para especificar o porquê disso acontecer, mas o fato é que ao menos nesse quesito, os filmes e livros não mentiram. A exposição prolongada a luz do sol pode nos matar. Carbonizar-nos, nos transformando em um monte inofensivo de cinzas, espalhadas pelo vento de uma manhã fria de outono. Aqueles que já enfrentaram destino semelhante jamais tiveram uma segunda oportunidade. Ao contrário de um ferimento, que se regenera com incrível rapidez, a luz do sol possui um poder atemporal sobre nossos corpos, sendo a única maneira (além da decapitação) de assassinar um vampiro.

Não possuímos aversão de qualquer espécie a crucifixos, água-benta ou alho. Isso tudo faz parte do folclore popular. Caso ainda não acreditem, o fato de morar nos restos mortais de uma igreja talvez acrescente alguma credibilidade as minhas palavras.

Uma estaca de madeira cravada em meu peito pode matar-me. Assim como também pode matar a você e a qualquer outro humano ou animal, que tenha a infelicidade de cruzar com esse cruel destino. A diferença é que nos possuímos uma resistência maior a isso. Nosso coração possui o dobro do tamanho do coração de um humano considerado "normal.". Imagine sua mão fechada e multiplique-a por dois. Eis o tamanho do coração de um vampiro. Conseqüentemente é mais fácil encontrá-lo em meio a uma investida impensada. Porém, nossa pele não pode ser tão fragilmente maculada, como o folclore popular insiste em ressaltar. Se compararmos à pele humana, a pele de um vampiro é dez vezes mais resistente. Desse modo, não é tão fácil assim cravar uma estaca de madeira, por mais pontiaguda que seja, no coração de uma criatura das trevas.

Outro fator importante que devo ressaltar nas entrelinhas desse texto, é sobre a nossa linhagem. Existem basicamente dois tipos de vampiros. Os seres "puros", vitimados pela dor incomensurável da morte desde o parto, e os seres "impuros", transformados a contra gosto em pessoas que não estão completamente mortas, mas também não estão completamente vivas. São "Mortos que andam".

Como citei anteriormente, os seres "puros" já nascem vampiros. São filhos de uma longa linhagem, que provavelmente desponta das origens da própria humanidade. Ao mesmo passo que são considerados "puros" também podem ser vistos como criaturas "impuras", no sentido literal da palavra, já que não existe um caso sequer, durante todos os séculos pelos quais essa raça já passou, de um vampiro que tenha nascido do ventre de uma mulher da mesma espécie. Parece ser necessário haver um toque de humanidade fluindo em nossas veias mortas, para que o milagre da vida (no nosso caso, da morte) continue a levar adiante seu fluxo.

Um vampiro "puro" nasce com o sangue de um morto vivo correndo em suas veias e não necessita repô-lo, até que seu ciclo de maturidade esteja completo (o que ocorre por volta dos vinte e dois anos mortais). Durante esse período, a criatura denominada simplesmente de "novo morto" se alimenta de frutas, verduras, legumes, e etc... Como qualquer ser humano comum, apesar de possuir um apresso especial pela carne. Seu corpo evolui normalmente, mas para de se formar quando o ultimo dente siso cai. A partir desse ponto ele já pode vangloriar-se para humanidade, pois faz parte de uma elite secreta de criaturas que se alimentam não só do sangue, mas do medo, das desesperanças e da essência da humanidade. É também nesse ponto que os caninos pontiagudos se formam. A sede por sangue tem seu inicio exatamente neste estagio da "vida", e as transformações, tanto físicas quanto psicológicas, são demasiadamente drásticas para uma criatura tão jovem e inexperiente (como os impuros) conseguir administrar.

Assim como acontece entre os humanos, existem diversas crenças que permeiam o mundo dos vampiros. Algumas delas contam que quanto maiores forem os caninos, mais poderoso esse vampiro será. Particularmente não acredito nisso. Graças a pouca instrução que consegui assimilar com o decorrer dos anos, cheguei à conclusão de que essa "lenda" provavelmente tem sua origem localizada nos idos de uma era muito antiga, onde ainda relacionava-se o tamanho fálico ao poder. Mas agora falemos um pouco dos seres impuros.

Os seres "impuros" (ou "Mongols", como são vulgarmente conhecidos) são considerados por muitos a "escoria" desse mundo mergulhado nas trevas. São humanos que foram incitados a beber o sangue de vampiros puros, a maioria deles em rituais cabalísticos sem qualquer tipo de real significado, cultos supostamente satânicos ou pagãos. Procuram por uma resposta satisfatória a mesma pergunta que me atormentou e permanece atormentando-me; "Qual o sentido da vida?". Por que alguns são abençoados com o Dom da imortalidade, flertando diretamente com a senhora da foice e capuz negro, enquanto outros apodrecem em um caixão de madeira, mergulhados sete palmos abaixo do chão, comendo terra pela raiz? É obvio que a maioria não consegue encontrar uma resposta satisfatória. Isso faz com que se transformem em criaturas da noite, sem sequer uma gota de humanidade que possa distingui-las dos verdadeiros vampiros.

Para sobreviverem e permanecerem jovens, os vampiros impuros necessitam avidamente de sangue, seja ele de origem animal ou humana. É claro que para a maioria dos impuros não há distinção alguma entre essas vidas. Ambas são igualmente insignificantes. Já os vampiros puros são, em sua maioria, dotados de intelecto aprimorado e raciocínio lógico, criaturas extremamente racionais, capazes de selecionar com o devido cuidado suas vitimas, sem que para isso acabem prejudicando o equilíbrio natural das coisas. Os vampiros impuros são completamente o oposto. Agem guiados pelos impulsos, como maquinas sugadoras de sangue, excetuando raras exceções, como eu.

Muito raramente um vampiro puro torna-se responsável pela morte de um humano. Geralmente sugam apenas o suficiente para satisfazerem suas necessidades básicas. Somente aquilo de que o corpo necessita. Funciona como uma espécie de cumplicidade entre as espécies. Com os "impuros" acontece exatamente o contrario. Eles nunca se contentam em sugar apenas o necessário. Sentem um prazer irresistível, durante o ato de tirar a vida de uma pessoa. Na maioria dos casos, quando estes andam em bandos, promovem uma verdadeira chacina por onde quer que passem, não se importando com nada mais, além de ceifar a vida de inocentes. Mas existe uma explicação lógica para isso. Encontrei-a certa vez em um antigo livro de paginas amareladas (algumas rasgadas) com capa e miolo confeccionados a mão, em meio aos escombros do lugar que um dia já fora a biblioteca da igreja. Estava jogado embaixo de uma pilha de tijolos, encoberto pelo mato alto que começava a se adensar mais naquele ponto. Sua capa de couro exibia grandes e desbotadas letras garrafais, com os dizeres: "Le livre des morts" (O livro dos mortos). Parecia uma espécie de guia sobre civilizações antigas (na maioria delas pagãs) onde se encontravam gravadas em uma tinta "vermelho-desbotada", informações (Verdadeiras ou não... Até hoje não consegui definitivamente distinguir o mito da realidade) rituais, costumes de vida, e inúmeras outras informações, em um francês quase arcaico, mas ainda assim compreensível.

Segundo o livro, vampiros recém-formados são como crianças pré-adolescentes separadas a força dos pais. São forçados a conviver com um mundo completamente diferente do qual estavam acostumados. Sons são ampliados, cheiros e odores, até mesmo a noção de tempo e espaço é distorcida. O paladar se torna mais acentuado. Vampiros impuros sentem a mudança trágica da transformação em qualquer estagio da vida, ao passo de que os puros já nascem e crescem, convivendo até a fase adulta com essa concepção. Sentem os cheiros como realmente são, degustam da boa carne, aproveitando-se do verdadeiro paladar e até ouvem o tilintar prazeroso de um sino no alto de uma capela, como ele realmente é. Belo. Magnífico em todo o seu esplendor. Já os vampiros impuros, em alguns casos, são afetados tão drasticamente pela mudança, que acabam se esquecendo quase completamente de que um dia já foram humanos. O livro relata esse tipo de caso como uma anomalia. Uma doença. "A doença de Nosferatu".

Ambas as espécies, tanto as puras quanto as impuras, são naturalmente imortais. O tempo, com suas mil facetas impiedosas, não exerce efeito algum sobre nós. Estou prestes a completar oitenta e quatro anos, e apesar disso ainda conservo toda a extensão da tola beleza da juventude, impregnada sobre a aparência física de um homem de aproximadamente vinte e cinco anos. Pois foi com essa tenra idade que acabei finalmente por encontrar o sopro frio da morte, que eternizou minha imagem.

Não me transformei em um ser impuro por livre e espontânea vontade. Muito pelo contrario. Batalhei até que minhas ultimas forças se exaurissem, para que finalmente me desse por vencido. Passei os dez primeiros dias após minha transformação ao relento, deitado a beira de um pequeno lago, observando hipnoticamente os sapos, rãs e grilos se amontoarem em suas margens. Quando a lua se escondia por entre o manto claro das nuvens, dando lugar ao astro rei, eu me abrigava em uma gruta próxima, esperando avidamente pelo por do sol, para que pudesse voltar à beirada do lago, pois era lá que eu encontrava forças. O lugar era meu refugio, meu abrigo.

Não tive sede durante muito tempo. Não tive fome durante muito tempo. Mas tive sorte. Muita sorte por não ser repentinamente atacado pela incoerência mental, característica de criaturas impuras. A "Doença de Nosferatu" não se manifestou em mim. Na época eu não sabia e nem tencionava descobrir nada sobre minha espécie. Ao invés disso, queria por tudo no mundo arrancar de dentro de mim qualquer vestígio de semelhança para com aqueles que me criaram. Fui forjado sobre o calor da batalha, e como resultado obtiveram uma criatura repleta de ódio e revolta, ambos direcionados a sua própria espécie. Mas antes de entrar em detalhes que englobam esse ponto em particular de minha historia, deixem-me concluir minha rápida analise sobre nossa espécie.

* * *

"Le Livre des Morts" não trata apenas do vampirismo em si, mas existem inúmeros casos no mínimo curiosos, relatados nas paginas velhas e amareladas do livro, que demonstram o quão afetada é a humanidade pela nossa presença. O Livro não apresenta uma conclusão lógica sobre o que somos realmente ou de onde viemos, o que me frustrou bastante em um primeiro momento. Se analisado em um contexto geral, percebe-se que o autor do livro ignora o fator psicológico e se detém bastante a crença espiritual. Isso me levou a crer que fora escrito por algum bispo, ou padre, ou monge, ou qualquer outra coisa semelhante, piamente apegado

às crenças religiosas.

Segundo "Le livre des morts" (cujo autor preferiu permanecer no anonimato, já que não consegui encontrar qualquer referencia ao mesmo em todas as 325 paginas do manuscrito) o vampirismo está estreitamente ligado a crença em feiticeiros, bruxas e etc, com exceção de que não somos humanos, como os feiticeiros, e sim fantasmas que não podem ser mortos. Vampiros são corpos reanimados que foram sepultados e que deveriam descansar em paz em seus túmulos, mas que por uma causa desconhecida, passaram a vagar por entre os vivos, sugando o sangue dos mesmos para encontrarem energia suficiente para se reerguerem na noite seguinte.

"Le Livre..." cita diversos meios de proteção contra vampiros que chegam a parecer tolos, levando-se em conta que a crença atual torna-se cada dia mais desmistificada pelos céticos. Segundo o livro, alguns acreditam que aquele que for mordido por um vampiro deve comer terra da sepultura na qual o mesmo foi enterrado, ou mesmo besuntar-se com o sangue dele. O alho também é citado como proteção. Passa-se a idéia de que quando esmagado e borrifado nas portas e janelas, transforma-os em barreiras intransponíveis contra uma suposta criatura que vaga pela noite em busca de sangue fresco.

Geralmente os métodos de extermínio citados no livro incluíam desmembramentos. Além disso, são vários os relatos sobre aldeões que após morrerem tiveram suas sepulturas abertas e grandes estacas de madeira cravadas em seus corpos. Acreditava-se que o fato de encontrarem o corpo disposto na sepultura de uma maneira diferente da qual foi originalmente enterrado (lábios rosados, unhas compridas, roupas abarrotadas) era prova o suficiente de que aquela pessoa transformara-se em um vampiro. Em alguns distritos da Alemanha acreditava-se que caso não fosse colocado dinheiro na boca do morto durante seu sepultamento, ele se tornaria um vampiro e seu fantasma sairia do corpo em forma de porco.

O autor salienta, porém, que não se deve ignorar por completo os fatos, a ponto de acreditarmos que aqueles que acreditavam no vampirismo sejam pessoas místicas em excesso ou ignorantes, pois em alguns casos, após exumarem os cadáveres, as pessoas realmente encontraram corpos em perfeito estado de conservação, como se ao invés de mortos, os cadáveres apenas dormissem. E esses corpos ainda foram verdadeiramente exterminados das mais diversas formas, incluindo as que foram citadas no livro.

No apêndice quinze (pagina 247, parágrafo 2) do livro, o autor narra uma historia supostamente autentica, de um austríaco chamado Arnold Paole - historia essa contada freqüentemente como verdade, levando-se em conta um documento que teria sido assinado em 1732 por três cirurgiões do exercito, um coronel e um subtenente, em uma declaração conjunta que foi aceita sem contestação.

Arnold teria admito na época para a sua jovem esposa que teria sido mordido por um vampiro, ainda enquanto aventurava-se no exterior. Isso, segundo dizem, o condenou a voltar como vampiro depois de morto. Morreu muito jovem, o pobre Arnold. Posteriormente passou a assombrar a região que habitava, e todos aqueles que cruzavam seu caminho começavam a enfraquecer, mostravam-se cansados, abatidos e anêmicos, e depois vinham a óbito. Após uma intensa investigação as autoridades locais decidiram exumar o corpo de Arnold, que jazia sepultado há pelo menos quarenta dias. Quando o fizeram, encontraram-no virado de lado no caixão, e de seus lábios rosados escorria um pequeno filete de sangue. Tendo em vista a única solução plausível para um suposto caso de vampirismo, as autoridades prosseguiram as investigações cravando-lhe uma estaca no peito e posteriormente queimando seu corpo.

Ainda hoje, na Europa oriental (Hungria, Polônia, Moravia, Bulgária...) muitas dessas crenças são disseminadas como verdade, e muitos dos ataques promovidos por criaturas ainda desconhecidas pelos humanos, são creditadas a nossa espécie, sem qualquer tipo de contestação.

A verdade é que, baseando-se em determinados aspectos, atualmente a crença no vampirismo é sumariamente ridicularizada em algumas partes ditas como "civilizadas" do globo. Isso deve-se, em grande parte, ao fato de que na maior parte do tempo passamos despercebidos por entre a sociedade, como se fossemos pessoas normais. Algumas características físicas são alteradas quando a transformação finalmente se dá por concluída; A pele fica ligeiramente mais pálida e incrivelmente mais resistente. Os dedos alongam-se e as unhas acabam ganhando uma característica peculiar, semelhante a garras. Crescem até certo ponto e depois caem por si sós, dando lugar as novas camadas substitutas.

Como citei anteriormente, se quiséssemos, poderíamos passar despercebidos em meio aos humanos. Com o auxilio de apenas um pouco de maquiagem para disfarçar a pele ligeiramente pálida e as olheiras, nos tornamos praticamente indetectáveis. Alguns até o fizeram com bastante êxito. A lista de mortos-vivos responsáveis por grandes feitos prestados à humanidade é enorme. Dentre eles podemos destacar o imperador Mongol Temudjin (também conhecido como Gengis Khan – "Imperador do Mundo"), o imperador romano Flavius Valerius Constantinus (Constantino I), e o rei da Macedônia Alexandre Magno (Alexandre – O Grande). Sei que isso de certa forma desmistifica um pouco o mito do vampiro, e talvez seja até decepcionante sabê-lo, mas não posso me abster de transmitir tais informações, ao passo que são de suma importância para a compreensão total do quão importante foi e é o vampirismo, mesmo para a vida dos mortais.

O fato é que, apesar disso, a maioria dos vampiros prefere seguir a rotina fixada no mundo ocidental por Teotônio, no inicio do século XVIII. Ou seja: Dormem durante a maior parte do dia e acordam a noite. Percorrem as ruas de vielas estreitas e becos sujos em busca da carcaça de algum animal morto, sugando-lhe o pouco sangue que ainda resta. Outros, mais refinados, não se contentam com os restos em decomposição de algum animal qualquer. Esses se satisfazem apenas com o sangue doce e fresco. Sangue humano. Particularmente falando, não os culpo por isso também, já que em certos momentos a sede parece simplesmente irresistível. É necessária uma grande força de vontade para se opor aos desejos naturais da carne. Agora, se me permitem, falarei um pouco sobre nossos dons. Acredito que este trecho em particular de minha narrativa despertará um grande interesse.

***

Em primeiro lugar, não somos criaturas invencíveis. Possuímos nossos pontos fracos, assim como qualquer ser vivo possui. Não carregamos conosco o dom da transmutação. Ao menos, não comprovadamente. Alguns casos são relatados em livros antigos (a maioria deles queimados ou escondidos durante o período da santa inquisição da igreja católica, no século XV). Casos que falam sobre homens de aparência parda e dentes pontiagudos, transformando-se em lobos ou cachorros, durante noites de lua cheia. Esse tipo de historia não foi muito disseminada na época, graças à intervenção da igreja que tratava de excomungar qualquer um que fosse contra seus conceitos éticos e morais. Apesar de ter exercido forte influencia sobre a cultura ocidental moderna, com seus mitos sobre os lobisomens, nunca se comprovou realmente o fato de um vampiro poder se transmutar em outra criatura.

Somos fortes. Possuímos a força de cem homens, e alguns acreditam que essa capacidade possa ser aumentada infinitivamente, ao passo que consumimos sangue. Acredita-se que o sangue seja como combustível para nossos dons. Quanto mais sangue, mais poder. Mas é claro que para isso também existem limites, que também tomarei o cuidado de abordar posteriormente.

Somos rápidos. Conseguimos nos mover a velocidades imperceptíveis ao olho humano sempre que quisermos. Apesar de que tal capacidade exige muito, fisicamente falando, pois assim como os humanos, também possuímos nossas limitações em um corpo que está sujeito ao frio, ao calor, e até mesmo ao cansaço. Sensações demasiadamente mortais para serem simplesmente ignoradas.

Em "Le Livre..." também se encontram relatos de antigos "caçadores" que usavam a mente, ao invés de armas, para capturarem suas presas. Acredito que seja algo relacionado à telepatia, mas particularmente falando, com exceção do dia em que conheci Demétrius, nunca passei por experiência sequer semelhante. Acredito que seja necessário um grau muito avançado de vampirismo para que tal fenômeno comece a se manifestar. E ao que tudo indica, sou apenas uma criança começando a engatinhar em uma escala evolutiva milenar.

Talvez o fato mais significativo, relacionado aos nossos dons, é que possuímos todos os cinco sentidos humanos extremamente aguçados. Neste exato momento, enquanto passeio os dedos longos pelas teclas grossas e redondas de minha velha maquina de escrever, consigo ouvir nitidamente o som de inúmeros corações mortais, batendo descompassadamente, há apenas poucos quilômetros da masmorra sobre a velha igreja em ruínas na qual me encontro. Provavelmente brindam, fartando-se de boa comida e bebida. Festejam, e com razão, já que essa é a trigésima noite da qual me abstenho de caçar. Os mortais comemoram a colheita farta e o fato de que suas cabeças de gado e ovelhas atravessaram, pela primeira vez em dez anos, o período de um mês inteiro sem serem defloradas pelos dentes aguçados dessa criatura que vos fala. Mas acredito que a alegria deles durará pouco, pois sinto sede. Sinto fome. Consigo captar o odor fétido do suor escorrendo de seus corpos em grossas e transparentes gotas. Posso sentir o cheiro do sangue fluindo em suas veias, fazendo-as pulsarem no mesmo ritmo de seus corações; acelerado. A brisa gélida da noite se encarrega de me levar até essa mistura peculiar de cheiros e odores. Sinto por esses mortais uma inigualável sensação de repulsa e ao mesmo tempo um prazer incomensurável. Anseio pelo toque de seus corpos, da mesma forma como anseio pelo sangue que corre em suas veias, tão diferente do liquido pastoso e quase coagulado de ratos, cachorros, gatos ou até mesmo vacas e cabras mortas. Tenho a impressão de que se a sede fosse apenas um pouco maior eu acabaria por alçar vôo e cairia por sobre eles, como uma praga de morcegos sugando-lhes o sangue em proporções bíblicas. Tão pobres são esses humanos e ao mesmo tempo tão ricos. Todos fascinantes, e cada um à seu modo. Alguns compartilham tranquilamente do doce sabor da ignorância, enquanto outros perdem suas noites de sono, vangloriando-se por gozarem de uma mente aberta, repleta de sabedoria.

Fui carinhosamente apelidado por eles de “Seigneur des Morts” (Em uma tradução vulgar: “O Senhor dos Mortos”), por motivos que, creio eu, ficarão bem claros com o decorrer dos fatos narrados nas entrelinhas desse diário. O que, afinal, quero dizer, é que mesmo convivendo a certa distância, ocultando-me sobre a camada de mistério supersticioso com a qual tive de me acostumar, aprendi muito com essas criaturas, antes e depois de me tornar o que sou. Possuo por eles um carinho inestimável, mas em alguns momentos, onde quase posso sentir o toque surreal da "Doença de Nosferatu" sobre meu corpo, passo a pensar neles apenas como carne. Alimento. E é exatamente assim que me sinto agora. Sinto que a hora do banquete se aproxima. Porém, devo conter-me, pois a hora ainda não chegou. Sou uma criatura cruel, vil e rasteira, por isso?

Talvez.

Mas acredito que se vocês fossem capazes de compreender minha historia, desde o inicio, enxergar-me-iam sobre outra perspectiva. Pois deixem-me contá-la, para que vocês possam tirar suas próprias conclusões.

Continua...

***

Edilton Nunes
Enviado por Edilton Nunes em 05/11/2010
Código do texto: T2599085
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