O espelho

Ela despertou em uma madrugada fria, seus olhos permaneceram fixados no criado mudo onde estava o rádio relógio marcando três e um. Uma sensação terrível tomou conta daquela mulher, sentia uma presença em seu quarto, alguém mais estava ali. Enquanto estava meio sonolenta, no limiar entre o sono e a vigília, ouviu a porta do quarto abrindo num rangido assustador, pensou que ainda estava sonhando, mas agora que estava completamente desperta sabia que havia mais alguém no quarto.

Permaneceu estática olhando para o radio relógio sem coragem de se virar para o lado da porta, tinha medo do que poderia ver. Quem estaria ali? Ela estava sozinha em casa, o marido estava viajando e os filhos estavam dormindo na casa dos avôs. Foi então tomada por um medo terrível, se não era nenhum dos familiares poderia ser um ladrão. Ficou paralisada de medo, não conseguia se mover. Porém se fosse algum bandido já a teria atacado, mas nada acontecia só sentia aquela presença que parecia não fazer barulho, era apenas aquela sensação que lhe fazia gelar a espinha, estaria ela sonhando ainda?

Ela tentou se virar, mas um medo incondicional a mantinha virada para o canto como se seus instintos quisessem que ela mantivesse seus olhos longe do que estivesse em seu quarto. Aqueles momentos podem ter durado apenas alguns minutos, mas para aquela mulher parecia que era uma eternidade, era como se muitas horas tivessem passado, mas cada vez que ela fechava e abria os olhos nenhum minuto separava aquele momento de agonia do momento que ela havia despertado.

Pensou em gritar, mas para quem? Ela estava só naquela escuridão, apenas o radio relógio emitia uma luz tímida e avermelhada. A agonia e o terror começavam a se tornar insuportáveis, ela queria olhar, queria acabar com aquela agonia, mas não conseguia se virar. Todos os seus medos de infância vieram à tona, quem estaria lá, que criatura infame havia saltado da escuridão para assombrá-la naquela madrugada fria e escura?

Ela fechava os olhos tentava dormir, quem sabe pudesse manter aquela situação terrível até o amanhecer, mas o tempo não passava. Lembrou-se imediatamente seu seus terrores noturnos, de como a noite não passava, de como as noites de terror são longas. Mas lembrou-se que não era mais criança, lembrou-se que era uma mulher e que era apenas um medo irracional, aquele tipo de medo que costuma nos visitar à noite quando estamos sozinhos, nos deixando apavorados, mas que no final nos faziam apenas rir de nossa tolice durante a manhã, quando a luz do dia os espanta para a próxima noite.

Decidiu então se virar, tinha que encarar seu medo, tinha de derrotar aquele terror noturno que teimava em voltar após longos anos. Ela abriu os olhos que até então estavam fechados e encarou novamente o relógio, marcava três e um. Deduziu então que estava sonhando, o relógio não havia mudado, estava marcando a mesma hora de vinte minutos, talvez trinta, atrás, aliviada ela se virou.

Porém todo o medo que ela sentira até esse momento não foi nada diante de seu assombro ao deparar-se com um sujeito estranho parado em frente ao grande, e velho, espelho que havia em seu quarto junto ao guarda roupas. O homem lhe encarava sorrindo, vestia uma roupa toda branca e a olhava com ternura. Um pavor tomou conta da mulher que tentou gritar, mas estava paralisada e não conseguiu emitir nenhum som, o homem não parecia querer fazer mal a ela, mas o pânico a dominara.

Após algum tempo o homem se virou e entrou no espelho, sem dizer uma só palavra. Ela olhou fixamente para o espelho enquanto o homem desaparecia dentro dele, depois pode apenas contemplar seu próprio reflexo, e nele ela dormia serenamente. Ela sentou-se na cama enquanto só podia ver sua imagem adormecida, tentou acordar assustada, bateu em sua face, beliscou o braço e nada, ela continuava a contemplar seu reflexo desacordado. Ao se levantar percebeu no chão vários comprimidos e uma garrafa de uísque vazia. Ela não recordava o motivo, mas havia se matado. Ela olhou para o espelho e lá estava o homem de branco lhe encarando, quando ela olhou fixamente para ele imagens começaram a se formar em sua mente. Durante aquela noite seu marido havia anunciado o divórcio e disse que iria requerer a guarda das crianças, desesperada e alterada pelo consumo do álcool ela só viu uma saída.

Do outro lado do espelho o homem de branco a esperava. Triste ela deu uma última olhada no quarto parando exatamente no rádio relógio, que ainda marcava três e um. Olhou novamente para o espelho e lá estava o homem de branco simpático e sorridente esperando-a com toda calma. Ela então o seguiu para dentro do espelho segurando sua mão. Após entrar olhou pela última vez para trás, somente para ver, tomada por um horror indescritível, seu marido deitado ao seu lado na cama, abraçando-a. Mas a mulher naquela cama não era ela, não mais, ela soltou a mão do homem de branco e tentou voltar, porém deparou-se apenas com o vidro, rígido e inquebrável, do outro lado, no criado mudo o relógio marcava três e dois.

O desespero tomou conta da mulher, lembrou-se imediatamente do que sua avó louca, antiga dona daquele espelho, sempre dizia: “o homem do espelho levou meu marido”, mas ninguém dava ouvidos a ela. Que seres eram aqueles capazes de mexer com a mente e os sentimentos das pessoas a fim de atraí-las para tal armadilha?

Durante um longo tempo ela bateu desesperada no espelho tentando quebrá-lo, até se lembrar do homem de branco que ainda estava perto dela. A mulher se virou trêmula para encarar aquele ser, mas não encontrou aquele homem simpático de outrora, viu apenas uma criatura macabra, como um vulto em um espelho embaçado, seu largo sorriso era a única coisa perceptível em sua face distorcida. Ele a encarava e parecia se divertir com seu desespero. A agonia da mulher era tanta que chegou a desejar a morte, porém aquele ser medonho e sádico não a matou, pois o destino reservado a ela era pior. Durante longos anos ela pode apenas observar do outro lado do espelho a vida de sua família e daquilo que havia tomado conta de seu corpo.

Getúlio Costa
Enviado por Getúlio Costa em 04/11/2010
Reeditado em 05/11/2010
Código do texto: T2596991
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