A Redenção
O jovem permanecia escorado na parede de tijolos à vista, sentado no chão lamacento enquanto ao seu lado escorria a enxurrada suja e pestilenta que trazia os odores da cidade que o cercava. Do quarto andar do prédio ressonava através do ar a triste melodia que ele tanto amava, “Stairway to heaven”... A chuva agora não passava de uma fina garoa que, trazida pelo vento, lhe molhava a face. Mas ele não se importava.
Pensava na música que irrompia na crueza da noite com seus acordes delicados e melancólicos, rompia sua própria alma atormentada. A última vez que a ouvira, sua vida ainda lhe pertencia.
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A algumas quadras do centro da cidade, um homem vestindo uma longa capa preta e um chapéu de couro de abas largas, mas esganiçadas pelo uso, caminhava lentamente como se houvesse chumbo sob os pés. A água empoçada nas ruas abria-se antes que a borracha dos coturnos as tocasse. As pessoas desviavam inconscientemente daquela figura sombria, os cães ladravam enquanto ele passava cortando a neblina como se uma afiada navalha o precedesse. Mas ninguém o via. Apenas os mais sensíveis tinham um leve estremecer nas pálpebras quando sua energia os atravessava, enquanto prosseguia naquele frenético marchar que na madrugada se iniciou.
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Uma sirene ruidosa o fez perder o último trecho da música, mas ele mesmo já a tinha em mente de forma tão nítida que enquanto seus lábios se mexiam, seus ouvidos captavam a letra que era sua própria súplica. Porém o encanto quebrou-se com um arrepio repentino que subiu pela sua coluna, acelerando seu coração num ritmo convulsivo que ele mesmo sabia não passar de um sinal. Então ouviu em sua mente a respiração que antecedia a vibração demoníaca daquele ser que se aproximava.
_ Eduardo... Eduardo...
De súbito, Eduardo pôs-se de pé no beco escuro em que se metera para fugir da chuva. Uma forte náusea tomou-lhe o estômago assim que se levantou, fazendo-o levar as mãos à boca para evitar que vomitasse ali. Era ele. Estava próximo, podia sentir.
Eduardo ainda vestia o smock que alugara na noite anterior, mas seus pés estavam descalços e a carteira havia sido roubada meia hora atrás. Então correu o máximo que podia através da cerração que tomava o coração da cidade naquela noite de sábado.
O único pensamento que lhe vinha à mente era encontrar uma igreja. Uma igreja católica, com um padre louco o bastante para acreditar no que estava acontecendo à ele. Louco o bastante para acreditar que um anjo caído vestido de negro o perseguia desde a madrugada anterior para lhe cobrar uma promessa. Ele mesmo havia feito a promessa quando estava bêbado, lendo o livro proibido para impressionar sua namorada. Só percebeu que a menina havia morrido quando acordou pela manhã na garagem de um prédio abandonado. O ritual estava feito.
O anjo negro continuava sua caminhada, sorrindo taciturno enquanto ouvia os devaneios desesperados do jovem que havia feito o ritual e lhe negara a alma em seguida.
Ninguém lhe privaria a alma prometida – pensava. E se deliciava enquanto sentia o desritmado coração mortal bater alucinado, apenas algumas quadras à frente. Seus dedos de aparência bulbosa contorciam-se à medida que imaginava o terror estampado no rosto do jovem quando o encontrasse definitivamente.
Suas pernas não lhe obedeciam mais, mas Eduardo ainda corria trôpego pelas ruas encharcadas até que ouviu o distante badalar dos sinos da catedral central. Seu coração encheu-se da mais cruel esperança enquanto tomava o rumo daqueles ruídos que lhe ofereceriam a redenção. E quando o hálito doentio quase tocava sua nuca ele viu à frente a escadaria que se erguia magistral até às portas do maior templo católico da região. Os sinos soavam ininterruptos anunciando aos céus que aquela alma seria salva.
_ Eduardo...
Mas quando atingiu o primeiro patamar, sentiu as garras venenosas rasgarem-lhe a carne e uma ferida supurante tomou suas costas infligindo-lhe a dor mais terrível que já imaginara sentir. Eduardo estava caído ao chão em profunda agonia e sentia a razão abandonar-lhe a mente quando virou-se para a criatura que o perseguia. E levantou-se sobre as pernas bambas, controlando a dor lancinante que o invadia em ondas pelo corpo. E olhou aqueles terríveis olhos negros e vazios, olhos esmagadores de uma criatura invocada dos reinos subterrâneos para tomar posse de sua alma pueril.
A criatura sorriu escarnecida e levantou a garra pronta para tomar o que lhe pertencia e quando a unha aguçada afundou no peito do jovem, um grito demoníaco foi ouvido pelos céus e pelos mais profundos círculos do inferno. O anjo negro caiu na lama que cobria o chão, desfazendo-se em pus e horror e um livro vermelho de folhas amareladas pelo tempo soltou-se do paletó de Eduardo, desaparecendo nas pedras brancas que cobriam o chão.
O jovem permaneceu letárgico, de olhos fechados em frente à escadaria da catedral e sentiu uma onda de calor tomar-lhe o corpo. Sentiu que mil agulhas atravessavam sua pele ao mesmo tempo em que uma forte carapaça parecia emergir do chão, cobrindo seu corpo por completo. E quando abriu os olhos, viu uma luz de confusos raios dourados surgir repentina. De dentro uma voz que primeiramente parecia reconfortante, mas depois tornou-se dolorosa aos seus ouvidos veio falar-lhe:
_ Agora fuja Eduardo, e busque através dos séculos o novo detentor do livro para libertar-se. Até lá eu o caçarei, demônio...
_ Não! Não...
Mas o anjo havia desaparecido e quando Eduardo abriu sua boca nodosa para gritar o horror que agora percebia ter ocorrido, entendeu que ninguém o ouvia.
Ninguém o via.
Apenas uma mulher que por ali caminhava sentiu suas pálpebras levemente estremecerem quando por ele passou.