Minha femme fatale predileta
Por Ramon Bacelar
Minha femme fatale predileta tem cabelos loiros, pele branca e olhos amendoados. O click, click dos saltos altos no piso de mármore do saguão e seu perfume adocicado, invadem meus sentidos e reaviva minha opaca memória para aquilo que poderia ter acontecido, mas...não aconteceu? Acho que sim, embora ela me passe a impressão de um, digamos, perfeccionismo obsessivo, um senso de vazio e incompletude que parece a perseguir e dominar (assim como o meu profundo e crônico ennui amnésico) como um espírito obsessor. Ela atravessa o saguão e a sigo com os olhos, levanto e mantenho certa distância.
Quanto tempo se passou do nosso último encontro? Não me lembro, nem faz importância pois o que está vivo dentro de mim não se expressa em palavras, simplesmente... “Sinto”.
Fragmentos desconexos de recordações retornam como peças de um quebra cabeça hermético e incompleto e ela, emoldurada em uma única peça, me vem à mente como parte de um cenário que não consigo montar ou... Talvez as peças pertençam à outra existência emoldurando outra situação: a certeza da incerteza.
***
Enquanto a sigo na calçada, esforços de memória fragmentam e dissolvem em disformes borrões vermelhos que parecem sinalizar algo que...Simplesmente sinto. Olho para a calçada e percebo o quão próximo estou de sua forma no mesmo instante que um caudaloso universo de vermelhidão invade meu sentido de visão: sapatos, vestido, esmalte, batom, ela, eu, dentro e fora amalgamando em uma única existência monocromática: fundindo, diluindo, confundindo: a indefinição da indefinição.
Ela olha para trás e com um sutil movimento labial me vem à mente a certeza (?) que ela traduz os meus passos, sabe que a sigo; mas porque haveria de ser diferente? Ela sabe quem eu sou, e eu... Simplesmente a sinto.
***
Continuo seguindo, medindo distância, costurando esquinas, atravessando avenidas e na parada do semáforo, do outro lado da faixa de segurança, por entre o poluído verniz de indefinição do crepúsculo do fim da tarde, vejo-a amalgamar-se e fundir-se a outros corpos: formas disformes de contornos indefinidos e opacidade enegrecida, fundindo e dissolvendo como sombras ansiosas à procura de preenchimento; tento resgatá-la desta catividade de indefinição crepuscular, mas meu impotente sentido de visão abarca a totalidade mas não define detalhes.
***
Atravesso a avenida inconsciente dos perigos e estridências do microcosmo urbano ao meu redor: não ouço, não enxergo, mas sinto sua presença no mesmo instante que um barulho áspero e cheiro de borracha queimada me resgata do meu sonho desperto: à minha frente, a luz do semáforo anuncia com sua cor proibitiva a realidade ao meu lado: a meio metro de mim um motorista enfurecido me alerta para as conseqüências de minha estupidez. Fujo do engavetamento alcançando o meio fio, costurando a calçada com passos ansiosos e um desejo de me confundir a outros corpos, amalgamar, fundir e fugir da realidade carmim do semáforo (da minha realidade... De mim...), desta cor que me persegue, embota meu raciocínio e dissolve minha memória: a fuga que não é fuga.
O cinza escurece e percebo que o cair da noite, dentro e fora, conquista território, finca suas garras e, manchando de negro-acinzentado o que era vermelho-enegrecido, me distancia da existência-cor-de-sangue, emaranhando meus sentidos, embotando meu senso de direcionamento.
Cercado pela manta de escuridão que me enegrece e indefine, sento no banco de uma praça enquanto me recupero da turbulência do crepúsculo: meus inúteis esforços de foco e memória, possuídos que estão pela cor da indefinição, se traduzem em uma latejante dor nas têmporas: pensamentos e recordações navegando em um denso e infinito mar de piche, desbravando a incerteza com visão enevoada e remos de chumbo.
***
Desperto, abro os olhos e percebo que a consciência que me situa e direciona é a mesma que, inutilmente, tenta dissipar a escuridão: dentro-fora...fora-dentro.
Sento no banco no mesmo instante que uma indefinida manta carmim mancha a escuridão e acoberta momentaneamente minhas retinas: à minha frente, intercalado por dois canteiros de rosas vermelhas, um luminoso neon-carmim inflama minha memória, encaixa uma peça, reacende uma recordação: flores, letras, rua, odor, ela, eu: Floricultura Floris Bella.
Penetro no universo de odores e sugestões, e com o pretexto de enviar outro bouquet de flores, anoto mentalmente seu endereço enquanto a atendente consulta meu fichário com data e dados de minha última visita.
***
Pego um táxi em direção a minha recordação, mas os números das casas não correspondem, as peças não se encaixam, meus esforços mentais encalham momentaneamente em um recife e, embora meus remos agora perfurem uma superfície menos adensada, a aparente infinitude do oceano estafa minha visão e me rouba a esperança de terra firme.
Sigo a pé beirando o meio fio na esperança que meus esforços se traduzam em claridade e definição, que o meu penumbroso oceano particular se transmute em um mar límpido e cristalino e que eu vislumbre em suas profundezas, meus tesouros de passados, memórias e recordações, enterrados nas turvas águas do esquecimento.
Uma súbita rajada de vento frio penetra em meu peito e invade minhas narinas carregando consigo um odor intenso e nauseabundo; olho para o lado e em cima da calçada ao lado de uma casa, gargalhando zombeteiramente com sua boca de ferrugem e latão, uma lata de lixo me impulsiona timidamente em direção a claridade e definição: um cartão com seu nome por sobre um bouquet de rosas murchas penetra em minhas retinas com a intensidade de um choque elétrico: sua rua, minhas palavras, sua casa, minhas rosas, meu desejo, sua obsessão, tudo se funde em um estranho senso de propriedade e entendimento enevoado.
Atravesso o portão e dou de encontro a uma porta envidraçada e enegrecida que me retorna como a personificação material de minha covarde e desmemoriada memória; olho por entre o filme do vidro ... Não defino... Tento, tento...Sim, não, não... uma aglomeração de ofuscações e indefinições, oceano denso, enegrecido, remos de chumbo(?)... Vazios, nadas... Minha cabeça dói, arrasto minhas bochechas na frieza da vidraça , a escuridão ganha corpo e se adensa, pesa em minhas pálbebras, tento abri-las, tento, tento, tento...
***
Frio, frio em minha mão, em minha palma que emoldura uma forma lisa e fria, e por sobre meus dedos outra palma acaricia a minha, acaricia e pressiona meu punho que se fecha por sobre a forma, abro os olhos... Estirado no chão frio de sua casa, meus olhos umedecidos encontram os seus amendoados, sua mão direita pressionando meu punho cerrado obriga meu renovado sentido de visão a identificar a forma de uma faca Bowie que emana do seu fio brilhos, manchas e coágulos que perturbam meu passado, movimentam uma peça.
Ela me olha, eu me espanto, ela sorri, eu a sigo: meus passos se traduzem como remadas lentas porém contínuas, os remos, agora de madeira, desbravam um oceano ainda negro porém fluído; aperto o cabo da faca que se encaixa em minha mão com a precisão de uma peça feita sob medida, e ela à minha frente, passos firmes e decididos, me direciona a minha claridade, ou talvez a novas ofuscações e brutalidades de pesadelos.
Atravesso a sala e penetro em uma área estreita parcamente iluminada; a extinção dos sons dos meus passos me faz supor um piso acarpetado. Olho à minha frente, suspiro e percebo que ela, antes sólida e definida, agora desintegra do meu campo de visão como uma substância dissolvente.
-Cadê você!
Grito mais de uma vez e a ausência de eco me retorna como uma carência sonora, um excesso de vazio; pressiono o cabo da faca com um estranho senso de propriedade e com uma paradoxal sensação de que “ela” é que me pressiona, guia e possui: olho para a lâmina sentindo com a palma da mão a textura carmim das manchas e coágulos, percorro o fio afiado manchando meus dedos, no mesmo instante que uma cegante lâmina de luz beija o fio incomodando minhas retinas com um reflexo: à minha direita uma luz escapa da fresta de uma porta; vou em direção a minha claridade (?) com um senso de intimidade e familiaridade: meus remos tocam pedras: meus pés a areia: minha visão ...
***
Alcanço a porta, mas antes de tocar a maçaneta, ela se abre e me revela aquilo que não deveria ter acontecido: à minha frente, emoldurado pela vermelhidão coagulada vazando de cortes, lacerações e perfurações, um corpo agonizante, acorrentado a uma cama, clama por socorro e piedade: alcanço terra firme, as peças se encaixam, o cenário se compõe: eu instrumento de prazer e preenchimento, ela, com seu senso de vazio e perfeccionismo obsessivo... fecha a porta e olha para o meu punho esbranquiçado pressionando a faca: olho para ela, para o corpo... A “cor”... Sim, agora me lembro, preciso preencher seu vazio, terminar o que comecei, encaixar a última peça.
Minha femme fatale predileta olha para a faca e sorri com os olhos, e eu, indo em direção ao seu preenchimento, retribuo com uma pressão no cabo porque sei quem sou, “o que” sou: sou eterno e infinito, contenho totalidades, e agora sei... Agora sei que sou o seu psicopata predileto...Simplesmente SOU.
FIM
Ramon Bacelar é contista, crítico e ensaísta. Mantém um blog sobre cinema, quadrinhos, literatura e cultura underground (Maquinário da Noite: www.maquinariodanoite.blogspot.com) publica contos no Recanto das Letras http://www.recantodasletras.com.br/autores/ramonbacelar e em seu site pessoal, Miragens Ofuscantes: http://www.miragensofuscantes.blogspot.com
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